sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (344)

344. É UM MOMENTO SEVERO DE DESAMPARO E OCLUSÃO


É um momento severo de desamparo e oclusão.
As folhas deslizam secas na terra quente
e os gatos, a noite os semeia, ocultam-se na sombra
que escorrega de alguma nuvem perdida no céu.
Não é tempo de discórdia nem de harmonia,
apenas as horas passam exaustas e brancas,
transpirando na indecisão dos teus dedos.

Ouve-se um grito ou a fala apressada de quem
não tem idade e da vida tudo espera.
A cidade macera lentamente ao ritmo dos que passam,
vielas e recantos albergam olhares furtivos,
traços de luz suspensos na caliça das paredes.
Os dias estão semeados de terríveis hesitações,
símbolos puros à espera de precária decifração.

No pórticos das igrejas, pedintes e pombos traçam
roteiros e mapas, e toda a miséria ganha um rosto,
a cor designada que irrompe na lividez da alma.
Os dias que nos cabem estão cansados,
e aqueles que um dia amaram desmedidamente
sentam-se à espera de uma carta longínqua,
de um amor que o tempo vendeu ao esquecimento.

Uma paliçada de canas separa a tua da minha casa
e, quando o vento sopra trazido pelo norte,
escuto a música perdida na lira de Orfeu.
Um tremor floresce na esplêndida  fronteira traçada,
e irrompe na clareira onde um animal,
cru e selvagem, esboça uma dança luminosa
e, ambulante, se perde na sombra que cai no umbral.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (343)

343. DE QUANTAS PALAVRAS PRECISAMOS PARA DIZER

De quantas palavras precisamos para dizer
tudo o que o silêncio nos pede?
De quantas horas será feito o caminho
por onde voltamos ao chegar a noite?
Vivemos ainda num tempo de turistas,
artesãos inspirados no puro caminhar,
amantes insaciáveis da cegueira
com que tocam tudo o que o comércio traz.

O peregrino tem a sua casa no caminho
e em cada instante a renova,
criando um silêncio no coração dos campos
e a breve eternidade no fluir das horas.
Esta, porém, não é a sua estação.
Fecharam o templo e o santuário oferecido
mostra uma mácula de bolor e ruína,
no lugar onde floresciam as buganvílias.

Quando erguemos os pés pela estrada,
não sabemos quem somos ou o que esperar.
Um sonho cresce no bosque de cedros
e alimenta o devaneio que escorre da vida.
Interrogamos o voo dos milhafres
ou o uivo longínquo dos lobos matinais,
mas apenas escutamos o silêncio do sino,
o regresso da noite na luz que se esvai.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (342)

342. NAQUELA HORA, ANTES DO DIA SE DESVANECER

Naquela hora, antes do dia se desvanecer,
há um brilho nos céus e um cheiro a erva húmida,
odor vindo do tempo da inocência,
anunciando a estação das lamparinas,
os velhos candeeiros a petróleo.
O vento chegava com a frescura da serra,
para a distribuir casa a casa, as portas abertas
e as janelas onde se contrabandeava a solidão.

A noite precipitava-se com uivos vacilantes,
enchia as casas de tenaz escuridão
e traçava mapas misteriosos
nas paredes, férteis planícies brancas.
Ainda não tínhamos uma biografia,
a vida não passava de uma recolecção de
sensações, tiras rasgadas no papel pardo,
aquele que embrulhava sonhos e mercearias.

Se chovia, escutávamos as águas a cair no telhado,
a escorrer nos beirais, a precipitar-se nos baldes.
Era um tempo de minúcia e ardor
e a vida um cálculo contínuo,
a persistência da flor no jardim encantado.
Cada gesto rasgava um horizonte,
que logo o murmúrio dos pinheiros cerzia,
fazendo pensar num conto de fadas
ou na quimera de um oásis no furor do deserto.

Voltaram, nesta hora tardia, os sonhos,
promessas de vida já esquecidas.
Chegam um pouco antes da madrugada
e acordam-me para as paisagens abandonadas,
que um forasteiro tenebroso saqueou,
deixando um rasto de cinza e desolação
naquelas planícies brancas batidas pelo vento,
rasgadas pelas águas da invernia.
Sonâmbulo, ergo as mãos para a tua face
e oiço-te respirar no silêncio da escuridão.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (341)

341. NÃO A MORTE MAS O ECLIPSE DE DEUS, DISSE

Não a morte mas o eclipse de Deus, disse
outro filósofo, e eu fiquei por terra
a tremer de pavor pelo astro grandioso
que, no seu fluir momentâneo, ocultou
o Sol maior que todos os sóis,
e deixa apenas vir uma penumbra de granito
tecida de voraz esquecimento.

É como se entre a tua luz e o meu coração
se erguesse densa parede
e a pedra branca de calcário me roubasse
os teus olhos e a promessa que em ti havia
no deslizar das ancas
ou na fértil  flutuação dos seios…
e nada mais restasse, apenas a súbita descrença
no sabor da boca, da minha se perdia.

Tornemo-nos, nesta meia-luz, crianças
e levedados na palavra escutada
procuremos nos quartos e no jardim,
subamos ao sótão,
espreitemos entre cortinas e veludos.
O que procuram? – ouviremos.
Como no fugaz jogo da infância, dirás:
Um hálito, o leve tremor do soalho, a poalha
suspensa na atmosfera, a sombra de um insecto,
o rasto das horas que passam na tarde de verão.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (340)

340. ESTA É A HORA EM QUE O POETA SE SENTA

Esta é a hora em que o poeta se senta
e olha a vastidão das praças,
o deambular confuso do tráfego
e, suspenso sobre o enigma do tempo,
pergunta quem por aquelas avenidas virá
e quais as palavras que se soltarão para
que outro mundo venha sobre os jardins
e novos arquitectos desenhem
a luz e a sombra, a água pura e a fonte
onde rebanhos metálicos virão matar a sede.

Deram-te a cegueira por destino
e a placidez do sentimento no lugar da exaltação.
As palavras que te saem dos dedos
de pouco servem, menos ainda para anunciar
futuros ou uma graça salvífica.
São apenas traços na areia, pedaços de cana
seca pelos ardores de um estio que não acaba.
Apontam-te o dedo pelo silêncio da acção
e esperam de ti o dom da profecia,
o empenho do soldado na batalha vencedor.

Este não é um tempo de indigência,
apenas os poetas estão presos ao destino das
palavras, ao sangue da língua,
pela qual vieram cegos ao mundo,
e na ausência de luz tomam uma sílaba,
uma letra, a precária sintaxe,
e com tudo isso compõem um stabat mater dolorosa
para que o mundo possa rumorejar
e a natureza ferida encontre uma voz,
o suspiro das agulhas do pinheiro,
o cântico da água ao despenhar-se na montanha. 

domingo, 26 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (339)

339. O CORPO, PEQUENO MÓBIL SOBRE O CARREIRO

O corpo, pequeno móbil sobre o carreiro
do jardim, herança confusa de múltiplas origens,
arquitectura genética vinda da noite,
essa noite que espia e espera
para te embalar nos destroços da eternidade.

Sobre ele o imperativo do prazer faz lei,
inscreve nas células o súbito desejo de água,
o rumor de outro corpo,
uma geografia de ânsias e desejos
a arder na incandescência do tacto.

Sonho-te, pobre corpo, desprovido de gravidade,
liberto de leis, cântico silvestre
no calendário vazio, pássaro de seda ou
balão de hélio nos precários dedos
de uma mão egoísta e desmemoriada.

Quando agora chega setembro, pesas-me
e a graciosa leveza outrora sonhada
é um traço de silvas, o espinho que ulcera
as pétalas cansadas da rosa
que, sem porquê, de aberta se faz fechada.

sábado, 25 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (338)

338. RETORNO PARA O SEGREDO DO MAR E FLUTUO

Retorno para o segredo do mar e flutuo
nas águas frias do oceano.
Sou peixe a dançar na melodia das águas
e suspiro pela música das ondas
ao bater na rocha íngreme da pele.

Ao longe, deslizam veleiros, brancas muralhas
contra a altivez anil do céu.
Mais perto, barcos vindos da pesca
e alcateias de gaivotas, suspensas dos ares,
aguardam tardias o banquete.

Perdido na selva azul, avisto o sol,
uma promessa silenciosa desenhada
nas encostas verdes da praia.
As águas vão e vêm
ao ritmo breve da respiração.

Se a tarde se inclina e escorrega para o mar
o sol entrega-se à solidão do poente
e os dias de infância caem sobre mim,
cheios de barcos e castelos de areia,
orquestra flamejante no concerto da memória.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (337)

337. UM SÍTIO DE PEQUENAS LAGOAS E GRANDES NEBLINAS

Um sítio de pequenas lagoas e grandes neblinas,
lugar de mistérios sombrios e vorazes, perdidos
na lenda, casa branca que todos habitamos,
do pôr do sol ao raiar da aurora.
Sopra um vento fresco e as águas agitam-se,
tremem sob o império do hálito montanhoso,
adormecem se a respiração se suspende na tarde.

Os dias de rancor, um ódio vindo pela estrada
de alcatrão, exercício de perfídia e adultério,
a paisagem entregue ao voo do abutre,
a flora esfacelada e os campos rasgados,
corpo ensanguentado deixado sobre a terra.
Silvas e amoras, as pequenas emboscadas,
ruídos breves que te fazem tremer a mão.

Ao entrar na água fria, o corpo freme e hesita,
para se entregar, de súbito, rendido ao enigma,
à pureza das montanhas, ao voo do falcão.
Não sou camponês, nem em mim habita o desejo
da lavoura. Basta-me olhar os campos
e, perdido nas ruas da cidade, deixar o coração
voar para os cumes agrestes da serra escarpada.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (336)

336. O VENTO DO CREPÚSCULO SOPRA PELAS RUAS

O vento do crepúsculo sopra pelas ruas,
faz tilintar as folhas do coração,
abre alamedas de poeira nos campos,
um rasto de luz e água
no naufrágio do teu peito incendiado.

Como uma seta, chega a noite
e o murmúrio das árvores cresce,
desenha bandos de pássaros escuros,
um exército de flores devastado
sobre um jardim preso ao luar.

Sentado, leio-te um livro nocturno,
a história inacabada de uma princesa,
o rumor de uns passos na escuridão.
Adormeces e tapo-te com o linho do lençol
e leio o pudor do teu rosto até amanhecer.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (335)

335. O QUE PROCURAS DENTRO DAS PALAVRAS?

O que procuras dentro das palavras?
Uma nuvem, o solstício de inverno,
o segredo da árvore perdida
na floresta?

O que procuras em cada verso
que te escapa dos dedos
e inflama o coração
com a palha dos campos?

O mar de agosto enche-se de azul
e ao florir nas areias
deixa um rasto de espuma,
a breve ilusão de uma quimera.

Sentas-te nas rochas húmidas
e pensas no íntimo de cada palavra,
o silêncio que se desprende
na rebentação do poema.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (334)

334. CHEGUEI AO CENTRO DO MUNDO

Cheguei ao centro do mundo,
a esse ponto secreto
onde um estranho rei,
envolto em brumas e sedas,
governa em palácio de vidro e safiras.

Cheguei ao centro do teu corpo,
ao lugar vazio,
o negro buraco que deglute
a minha luz, pedra
de jade perdida nas ruínas do tempo.

Cheguei ao centro de mim,
ao feroz nada,
pequena pérola selvagem
que ruge na noite
e arde com uma chaga sem fim.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (333)

333. TODAS AS COISAS QUE ESQUECEMOS JAZEM NO FUNDO

Todas as coisas que esquecemos jazem no fundo
que há no centro do coração, pequeno baluarte
abandonado às intempéries, ao vento ocioso
que do norte chega, inunda ruas e traça mapas
de desespero nos teus olhos cansados de solidão.
Por vezes, há tumultos nas ruas ornadas de silêncio,
homens correm no desvario e ouvem-se gritos,
palavras repetidas como se a língua minguasse
e nada mais houvesse do que aqueles sons.

Pegas no que é teu e leva-lo para dentro de ti,
é agora um segredo, matéria vegetal para combustão,
memória que busca no futuro o rasto do passado.
Estremeces, se te olho deste lado do mundo,
e as tuas mãos tornam-se imprecisas, sombras delidas,
uma chaga tardia a arder sob o império da noite.
Depois, olhas o céu e contas angústias e desencantos,
tortuosas estrelas com que inventas constelações,
uma leitura da vida, o breve rosário da ressurreição.

Quando chega o mês de setembro e o verão moribundo
regurgita de vida, começam contagens e balanços,
exercício inútil de um deve e haver que corrói a alma,
a inunda de ferrugem e a abre para a secura do jardim.
A falta de água trouxe a morte à pequena flora,
inscreveu, no solo bravio, uma poeira persistente e
infinita, o traço de um desejo que se extraviou no calor.
Sentas-te perante o tumulto das ruas e ouves cantar os ralos,
o imperativo da vida num campo semeado pela morte.