René Magritte - Eternidade (1935)
Naquele tempo, disse Jesus aos
judeus: «Em verdade, em verdade vos digo: se alguém observar a minha palavra,
nunca morrerá.» Disseram-lhe, então, os judeus: «Agora é que estamos certos de
que tens demónio! Abraão morreu, os profetas também, e Tu dizes: 'Se alguém
observar a minha palavra, nunca experimentará a morte'? Porventura és Tu maior
que o nosso pai Abraão, que morreu? E os profetas morreram também! Afinal, quem
é que Tu pretendes ser?» Jesus respondeu: «Se Eu me glorificar a mim mesmo, a
minha glória nada valerá. Quem me glorifica é o meu Pai, de quem dizeis: 'É o
nosso Deus'; e, no entanto, não o conheceis. Eu é que o conheço; se dissesse
que não o conhecia, seria como vós: um mentiroso. Mas Eu conheço-o e observo a
sua palavra. Abraão, vosso pai, exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e
ficou feliz.» Disseram-lhe, então, os judeus: «Ainda não tens cinquenta anos e
viste Abraão?» Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: antes de
Abraão existir, Eu sou!» Então, agarraram em pedras para lhe atirarem. Mas
Jesus escondeu-se e saiu do templo. (
João 8,51-59) [Comentário de Gregório Magno
aqui]
Este é um dos textos evangélicos com maior carga filosófica. Opõe ser e existir. Sem a compreensão desta oposição, uma oposição relativa,
não será possível compreender a afirmação inicial se alguém observar a minha palavra, nunca morrerá. Abraão e os
profetas existiram. A sua vida foi balizada pelo tempo, começou, durou e
terminou. O tempo é a sua condição. Estavam, como todos aqueles que vêm à
vida condicionados pela temporalidade. A resposta que Jesus dá à objecção de
que ele não teria idade para ver Abraão mostra que ele se coloca num outro
plano que não é o da duração. Antes de
Abraão existir eu sou.
Antes não significa uma mera anterioridade temporal. Significa a
pertença a uma realidade anterior – mais essencial – àquela onde o tempo é a
condição de existência. Cristo diz
aos interlocutores que está no tempo mas que não pertence à temporalidade,
por isso não será afectado pela morte. Mas o que o texto põe claramente em jogo
é outra coisa. Também o homem não pertence ao tempo, também a sua existência
condicionada é uma limitação que ele pode ultrapassar.
São dois os momentos em que essa condição não condicionada do homem é
manifestada. Uma delas está expressa nos enunciados constatativos Abraão, vosso pai, exultou pensando em ver o
meu dia; viu-o e ficou feliz. O dia, apesar da sua carga temporal, surge
como símbolo daquilo que está para lá do tempo e do condicionamento que este
impõe à existência. Abraão só de pensar em ver esse dia exultou. Dir-se-á que
era o júbilo da esperança, a alegria da expectativa. A felicidade, porém, nasce
da experiência directa dessa realidade, da experiência do Cristo em si mesmo.
O outro momento está no início do texto. Ele manifesta-se num acto de
linguagem promissivo ou, na linguagem de John Searle, comissivo: se alguém observar a minha palavra, nunca
morrerá. A promessa (nunca morrerá),
todavia, está antecedida por uma condição (observar
a minha palavra), sem a qual a promessa deixa de ter efeito. Nos actos
comissivos, o locutor fica comprometido com um estado futuro. O escândalo do
texto – escândalo que se expressa na violenta reacção dos interlocutores de
Cristo – reside no paradoxo que ele contém: o futuro prometido é o da abolição
do próprio futuro, a saída para lá do tempo, do qual o futuro é apenas uma das
suas instâncias.
Abraão atingiu a felicidade porque fez do Verbo (Logos) a sua casa e o
seu modo de ser. Quem assim o fizer, quem observar
a Palavra (Logos) elevar-se-á a
uma condição onde o condicionamento temporal – com as suas três instâncias,
passado, presente e futuro – deixará de ter efeito. Desse modo, segundo a
promessa, deixará de existir para
passar a ser, ser que não contém um fui nem um serei, mas um
eterno sou.