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segunda-feira, 4 de março de 2013

A expatriação da verdade

Giorgio de Chirico - O Profeta (1915)

Naquele tempo, Jesus veio a Nazaré e falou ao povo na sinagoga: «Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. Posso assegurar-vos, também, que havia muitas viúvas em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou durante três anos e seis meses e houve uma grande fome em toda a terra; contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas, mas sim a uma viúva que vivia em Sarepta de Sídon. Havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão o sírio Naaman.» Ao ouvirem estas palavras, todos, na sinagoga, se encheram de furor. E, erguendo-se, lançaram-no fora da cidade e levaram-no ao cimo do monte sobre o qual a cidade estava edificada, a fim de o precipitarem dali abaixo. Mas, passando pelo meio deles, Jesus seguiu o seu caminho. (Lucas 4,24-30) [Comentário de João Crisóstomo aqui]

Dois temas ligam-se no texto de Lucas. O da verdade e o do acolhimento. O tema da verdade surge logo no início do discurso de Cristo ao povo na sinagoga de Nazaré: Em verdade vos digo. Esta fórmula sublinha o lugar de onde o discurso é proferido e este lugar é o da verdade. O tema da verdade é de imediato retomado quendo é dito: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. O profeta é aquele que transporta uma verdade e a revela. É o portador e revelador da verdade que não é bem recebido na sua pátria, que não é reconhecido como tal. O problema do reconhecimento da verdade – um tema crucial nos dias de hoje e que a cultura actual, seja numa visão moderna ou numa visão pós-moderna, desvaloriza – conduz directamente ao tema do acolhimento.

Este acolhimento não é a mera recepção, mas contém em si a ideia de abrigo e de refúgio. A verdade mostra-se aqui na sua plena fragilidade e pobreza. E é esta sua natureza que faz com que nenhum profeta seja bem recebido na sua pátria. A verdade não pertence à esfera do poder, não traz com ela o conjunto de superstições ou de violências com que o poder compra a sua recepção em cada pátria. O poder da verdade é um não-poder, é exposição da sua fragilidade e humildade. É esta sua natureza que requer acolhimento que seja abrigo contra as intempéries e refúgio contra as perseguições.

Apesar da fragilidade da verdade perante as potências do mundo, apesar das perseguições de que é alvo, ela seguirá o seu caminho, de acolhimento em acolhimento, de refúgio em refúgio. O confronto entre a verdade e a utilidade, subjacente à recepção irada de Jesus pelos nazarenos, continua tão vivo hoje como  naqueles dias. A fácil promessa de uma felicidade geral, animada pelo princípio de utilidade, continua a exercer a sua função idolátrica, alimentando a alienação do homem pelas superstições do mundo. Acolher a verdade, abrigá-la e dar-lhe refúgio continua a ser um sinal que as pátrias, diversas que elas sejam, recusam a fazer. O destino da verdade é a sua expatriação contínua, a busca de um abrigo, a viagem a que foi condenada por aqueles que estão eles mesmo na mais pura e radical das errâncias.