domingo, 29 de agosto de 2010

Poemas do viandante

127. TEMPO (4)

regato arruinado
o jardim
esquecido
sob a sombra
de uma pedra
o granito

se grasna um corvo
se a noite ondula
se a tua voz se cala

rosa
branca rosa
que ave te roubou
o jardim materno

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Poemas do viandante

126. TEMPO (3)

o murmúrio da erva
na terra a arder
a porta que se abre
quando chamas
sombra da sombra
o que resta do coração

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Poemas do viandante

125. TEMPO (2)

a friagem
o outono a trouxe
branca
ilha de sal
e cinza
e calcário

fruto caído
no refúgio
esquecido do
calendário

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Poemas do viandante

128. A CANSADA MÃO

exausto chegou
o viandante
a chuva sobre os ombros
um vento de floresta
zune nos ouvidos
e o rumor de todas as
cidades
aberto como um punho
de mirtilos e framboesas
a escorrer da tua boca

de que vale a viagem
se o silêncio
pontua a sombra
que desce nesses olhos
e vela a flor
que o verão escondeu
sob os seios
que se arrancam
à cansada mão
que deseja

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Poemas do viandante

124. TEMPO

uma ruga
no silêncio da areia
a lágrima caindo
o dedo decepado
do verdugo

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Poemas do viandante

123. ROMÃ

o resto de romã
a arder na boca
a madeixa
tocada pelo vento
o silêncio entreaberto
dos lábios

tudo isso
testemunho
se aguardo
o toque dos sinos
num mar de lilases
e cristais de seda

um cão uiva
o coração afogado
na boca de lilás
nos lábios presos
ao fértil anoitecer
da breve romã

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Poemas do viandante

122. INVERNO

o crepitar da sombra
abre uma rua
de luz sob o olhar
com que incendeias
o mundo

casas árvores um rio
tudo arde na encosta
do inverno que
se anuncia
coração tolhido
pela cor extasiada
do frio

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Poemas do viandante

121. LINGUAGEM

a linguagem
flor obscura
que me atormenta
abre-se tempestuosa
no rumor do meio-dia

como pétalas
caem palavras
constelações de letras
um suspiro de algas
a breve folha da laranjeira

na névoa
agora desfiada
resta o eco de um nome
promessa de areia
na penumbra dos sentidos

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Tudo o que não sou

A suposição de ser alguma coisa, essa herança construída pela coligação entre as gramáticas indo-europeias e a filosofia grega - onde aquelas se pensaram e tomaram consciência de si -, é a imagem de uma infância nunca abandonada. Não daquela infância onde tudo é inédito e uma ânsia conduz à descoberta do mundo, mas da outra infância, concomitante dessa, aquela em que se luta desesperadamente para se convencer a si mesmo que se é alguma coisa, que se tem um lugar no mundo e uma voz que deve ser ouvida. Aquilo, porém, que poucos confessam é que esse convencimento é precário e que, no fundo de nós, uma dúvida persistente lança uma sombra sobre o que somos, o lugar que ocupamos, a voz que fazemos ouvir. Se deitarmos borda fora tudo isso, será que perdemos alguma coisa? Posso perder tudo o que não sou. Isso bastará? Não. É preciso ir mais longe. Não basta perder aquilo que não se é. É preciso perder aquilo que se é, mesmo que não saibamos o que somos. Aí haverá, então, a esperança de encontrar a voz do coração. Não a do nosso, porque o coração que fala não tem proprietário. É só uma voz, vinda sabe-se lá de onde, que clama no deserto.

Poemas do viandante

120. A MINHA ALDEIA

a súbita fome
esse olhar que escondia
as últimas cerejas e
o cansaço de ser tão humano
disposto na luz e nas trevas
a mão hirta a rasgar oceanos

de joelhos na madrugada
deixo correr o silêncio
aí vazam os sinos –
um dia encheram de vida
o desvão da memória
a que chamo minha aldeia