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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Gramáticas

Paul Serusier - Grammar (1892)

As línguas estruturam-se através de uma gramática. Tendencialmente, apesar dos movimentos centrífugos do discurso, a gramática tende a ser única, nem que seja por pressão das necessidades comunicativas. A vida do espírito, seja em que área for, começa com uma rebelião contra a gramática. O caminho que cada um faz é único e incomunicável. Essa singularidade incomunicável não dispensa uma gramática, mas impõe uma morfologia única e uma sintaxe própria, isto é, uma gramática não partilhável. A vida do espírito começa para além da dimensão do comum, da comunicação e da própria comunhão.

sábado, 21 de junho de 2014

Um ponto de passagem

Hengki Koentjoro - Netting (2014)

Cada um tem o seu próprio caminho. Mas todo o caminho tem as suas encruzilhadas, esses pontos onde os homens, por um instante, se encontram e fazem comunidade, para, depois de usarem a palavra, continuar na solidão que cabe a cada um deles. Não, a comunidade não é o destino do homem, não é o seu fim, nem, tão pouco, o lugar onde os homens se devem exibir. Ela é um ponto de passagem para quem veio de longe e vai para longe.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

As mãos na massa

Ramón Rivas - Amassando o pão (1978)

A imagem do pão e do vinho é recorrente na cultura ocidental, nomeadamente na poesia. O seu poder evocador é associado à ideia de partilha - a última Ceia de Cristo, por exemplo - e, através dessa ideia, chegamos à vida comum, a uma forma, sempre sonhada e jamais realizada, de comunidade. É verdade que o pão e o vinho tornam-nos próximos uns dos outros, ampliando os vínculos e consolidando alianças. Todavia, a potência poética do pão e do vinho residirá noutra coisa, residirá na sua própria poeticidade, no facto de também eles serem uma produção (poiesis - ποίησις), de resultarem de uma dinâmica onde os homens são obrigados, literalmente, a pôr as mãos na massa. É este poder operativo que se manifesta na transformação dos produtos da natureza em pão e vinho que ressoa na poesia, como se o poeta intimasse o leitor a transformar-se, também ele, em pão e vinho.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Inocência e prudência

Thomas Gainsborough - Study of a Sheep (1755-57)

Envio-vos como ovelhas para o meio dos lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes e simples como as pombas. (Mateus, 10:16)

O texto de Mateus - um único versículo, na verdade - desenha uma complexa rede de analogias para, em última análise, retratar a situação do homem no mundo social e para lhe propor um determinado modo de acção que está, ao mesmo tempo, ligado a um modo de ser. O que é de imediato visível, porém, nessa rede de analogias é que "aqueles que são enviados" são analogados com animais (ovelha, serpente e pomba) e "aqueles para o meio dos quais os enviados são remetidos" são também comparados com um animal (o lobo). Com isso, o texto sublinha de imediato a nossa condição animal e é perante ela que ele se torna significante.

A relação entre ovelha e lobo, entre presa e predador, está fundada também na analogia. O "ser como" de toda a analogia introduz uma ambiguidade na definição que reflecte uma ambiguidade ontológica. Os homens são como ovelhas ou como lobos. Isso significa um estatuto aberto na natureza humana, significa que o homem é dotado de livre-arbítrio. Nem as ovelhas são definitivamente ovelhas nem os lobos têm o destino fechado na lupinidade. E é por isso que as ovelhas, libertadas do rebanho, são enviadas para o meio da alcateia. De certa forma, todos nós somos enviados para o meio da alcateia, essa é a nossa condição.

Ao exercício da predação não é contraposto o sacrifício da presa. Pelo contrário, o texto liberta o homem da praxis sacrificial e propõe como caminho a prudência (a palavra usada para prudentes é φρόνιμοι) e a simplicidade (o termo usado para simples é ἀκέραιοι). Desta maneira, é resgatada a razão prática da filosofia grega, ao mesmo tempo que, com a analogia com a serpente, se dá a ver o seu limite. A prudência pode ser um mero cálculo da serpente e, por isso, não é suficiente para que a ovelha enviada não se transforme em lobo. A prudência deve ser incrustada na simplicidade, na pureza, na inocência. O modo de agir - ser prudente - deve ter a sua raiz nesse tornar-se inocente, simples, puro.

No mundo social, perante o eterno jogo do predador e da presa, perante o ciclo da animalidade e a visão sacrificial da existência, Cristo propõe uma ruptura onde se combina uma natureza inocente - que se inocenta - e uma atitude prudente, um ser puro e uma razão prática dele dependente, como caminho para a instauração de uma comunidade verdadeiramente humana.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Separação e reconhecimento

Edvard Munch - Separação (1894)

Naquele tempo, disse Jesus aos fariseus: «Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e fazia todos os dias esplêndidos banquetes. Um pobre, chamado Lázaro, jazia ao seu portão, coberto de chagas. Bem desejava ele saciar-se com o que caía da mesa do rico; mas eram os cães que vinham lamber-lhe as chagas. Ora, o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. Na morada dos mortos, achando-se em tormentos, ergueu os olhos e viu, de longe, Abraão e também Lázaro no seu seio. Então, ergueu a voz e disse: 'Pai Abraão, tem misericórdia de mim e envia Lázaro para molhar em água a ponta de um dedo e refrescar-me a língua, porque estou atormentado nestas chamas.' Abraão respondeu-lhe: 'Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em vida, enquanto Lázaro recebeu somente males. Agora, ele é consolado, enquanto tu és atormentado. Além disso, entre nós e vós há um grande abismo, de modo que, se alguém pretendesse passar daqui para junto de vós, não poderia fazê-lo, nem tão pouco vir daí para junto de nós.' O rico insistiu: 'Peço-te, pai Abraão, que envies Lázaro à casa do meu pai, pois tenho cinco irmãos; que os previna, a fim de que não venham também para este lugar de tormento.' Disse lhe Abraão: 'Têm Moisés e os Profetas; que os oiçam!' Replicou-lhe ele: 'Não, pai Abraão; se algum dos mortos for ter com eles, hão-de arrepender-se.' Abraão respondeu-lhe: 'Se não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, tão-pouco se deixarão convencer, se alguém ressuscitar dentre os mortos.'» (Lucas 16,19-31) [Comentário de Isaac, o Sírio aqui]

Como na generalidade dos textos aqui comentados, também neste há uma multiplicidade de leituras possíveis. Por exemplo, este poderá ser lido a partir da alusão final à ressurreição e à incapacidade dos contemporâneos crer nela ou ser tomado como núcleo central de uma espécie de apologia de uma justiça de classe de carácter transcendente. As possibilidades são inúmeras. A hipótese que se segue aqui centra-se, porém, numa reflexão sobre a separação. Em vários momentos do texto a temática da separação é central.

Em primeiro lugar, a separação encontra-se já presente nos interlocutores de Cristo, os fariseus. Um dos significados centrais do termo é o de “separados”, aqueles que se afastam dos outros, que, em nome do estudo da tradição, quebram os vínculos e rasgam a comunidade. Em segundo lugar, a separação está presente logo no início do discurso de Cristo, na separação radical entre o homem rico e Lázaro, o pobre coberto de chagas. Uma terceira separação surge na distância intransponível que afasta, no mundo dos mortos, o lugar do tormento e o lugar da consolação. Por fim, a separação dos irmãos do homem rico relativamente à tradição (Moisés e os profetas) ou ao ressuscitado.

A separação é, na sua essência, a quebra de um vínculo, o desfazer de uma aliança, a ruptura de um reconhecimento do outro. Por três vezes, no texto e em resultado do estado de separação, o reconhecimento do outro é obliterado. O rico não reconhece Lázaro como digno da sua atenção. Abraão não reconhece o rico como merecedor de consolação. Os irmãos do rico não haveriam de reconhecer nem a tradição nem o ressuscitado.

A separação é, deste modo, compreendida como fechamento em si, como um exercício solipsista (de um indivíduo ou de uma comunidade particular) que quebra a partilha de um destino comum com os outros homens. É a separação, com a concomitante ausência de reconhecimento do outro, que anula não apenas a compaixão como a própria comunicação inter-humana. A crítica das várias figuras da separação surge como um processo que visa a restauração da comunidade dos homens, do reconhecimento da fraternidade essencial que existe entre eles, da compreensão da sua complementaridade. Note-se que o texto não é uma proposta de dissolução das subjectividades individuais, a sua imersão num nós indiferenciado, mas um sublinhar da responsabilidade que cada subjectividade tem perante as outras, a atenção que lhes deve e a abertura que o cuidar do outro necessita. A comunhão, digamos assim, é uma comunhão de indivíduos.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Caminhos entrelaçados

Virginia Lasheras - Caminos entrelazados (1993)

A viagem, à primeira vista, parece um acto solitário. Um viandante sente o apelo à procura de si, à busca da verdade, e toma, em solidão, o caminho. Com o decorrer do tempo, quer a viagem se faça por senda direita, quer o viajante se perca em labirintos, descobre-se que toda a viagem é um entrelaçamento de caminhos, dos caminhos vários que cabem ao viandante percorrer, mas também um entrelaçamento com os caminhos de outros viandantes que, também eles, sentiram um solitário apelo à viagem. Torna-se assim a viagem num exercício de comunidade, na construção de uma comunhão entre indivíduos que procuram, um exercício de solidões discretamente partilhadas.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Uma economia do dom

Tiziano - La venida del Espíritu Santo (1545)

L'un possède le don de parler avec sagesse ; l'autre, avec science. Un autre, le don de la foi ; un autre, le don de guérison ; un autre, le don des miracles ; un autre, le don de prophétie ; un autre, le don de parles diverses langues ; un autre, le don de les interpréter. Or, c'est un seul et même Esprit qui opère toutes ces choses : Haec autem omnia operatur unus atque idem Spiritus. (Jean-Joseph Gaume (1865) Traité du Saint Esprit)

Esta tradição viva da Igreja Católica de atribuir o conjunto das capacidades e potências presentes nos indivíduos, sob a denominação de dons, ao Espírito Santo sublinha uma coisa que, nos dias de hoje, se tornou quase incompreensível. Nenhum mérito nos pertence pela posse dessas qualidades. Elas foram-nos doadas, como sublinha a própria palavra dom. Pode haver em nós algum mérito na manutenção e desenvolvimento desses dons, mas a sua posse ou a sua falta não deixam de constituir para o indivíduo um mistério, um verdadeiro mistério do Espírito Santo, para usar os termos da tradição cristã. 

Este carácter misterioso presente na herança ou nos dons recebidos tem três consequências. Uma primeira coloca-nos no nosso lugar. Por mais dotado que eu seja, isso nada tem a ver com um mérito pessoal do qual possa orgulhar-me. Uma segunda consequência sublinha que os dons, não sendo mérito meu, apelam para a sua realização segundo uma perspectiva de serviço aos outros. Por fim, o dom, por não ser origináriamente meu, implica o dever de o desenvolver e de o consumar na realização do bem que ele contém. O dom traz consigo o imperativo da sua realização, da realização do Espírito doador que nunca deixa de estar presente em cada um dos dons com que presenteia os indivíduos. 

Nesta economia do dom, para usar uma expressão que remete para Marcel Mauss, percebe-se que somos parte de uma cadeia de reciprocidades, a qual estrutura a comunidade humana enquanto tal. E aqui podemos pensar mais fundadamente no mistério do Espírito Santo como o mistério da instauração das comunidades humanas, nas quais ele toma corpo e carne através dos dons distribuídos gratuitamente.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O escandaloso modelo crístico

Marc Chagall - White Crucifixion (1938)

Aquilo que faz a atracção do cristianismo também está na origem da sua repulsa. A morte na cruz do filho de Deus veio abolir, na economia das religiões, todo o sacrifício humano. Abolir significa aqui tornar ilegítimo do ponto de vista religioso. Esta suprema dádiva de Cristo, o acto de morrer pela salvação dos outros, é o que faz a força do cristianismo. Mas também é aquilo que causa, nos seres humanos, a maior repulsa. Não a sua morte, mas o facto de Cristo se ter tornado, por esse acto, em modelo de humanidade, em protótipo do homem novo, aquilo que todos os homens deveriam seguir. O que estes deveriam seguir, contudo, não era a morte na cruz, mas pura e simplesmente a limitação, a crucificação, das suas pulsões egoístas. Esta limitação do desejo tem a função de criar a abertura onde os outros se possam instalar ao nosso redor. 

Há na morte de Cristo também um modelo de constituição da comunidade humana. Ela é possível no sacrifício que cada um faz de si. É este sacrifício que gera a cooperação justa. O cristianismo não se confunde com as doutrinas do contrato social, as quais são pensadas segundo um modelo de homem antagónico, o homem que segue os seus impulsos egoístas e que procura, através do direito, torná-los legítimos. Neste caso, a limitação dos impulsos egoístas não deriva de uma decisão de sacrifício pessoal, mas do medo da lei, que representa a vontade geral. É perante este modelo liberal do contrato social que o modelo do sacrifício crístico é escandaloso. A sua proposta representa uma enormidade: não esperes pela lei para te conteres, mas fá-lo como princípio originário da tua existência. O escândalo do cristianismo está todo aqui. Não por acaso, nas sociedades modernas e liberais o cristianismo perdeu poder de atracção. Ele propõe um modelo que desconstrói a narrativa que suporta os actuais contratos sociais, desconstrói a ideia de que a comunidade justa pode resultar dos egoísmos exacerbados limitados pelo medo da sanção humana.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Solidão e silêncio

George Pierre Seurat - Port-en-Bessin (1888)

A aprendizagem da solidão e do silêncio  não significa um exercício de afastamento dos outros, uma negação da dimensão social e comunitária que nos constitui, o pôr fim à comunicação, mas uma viagem para si próprio, para aquilo que há de mais fundo em nós. Todo o nascimento significa um acto de separação, mas um acto de separação que constitui um nós. Ao nascer, a criança separa-se da mãe. O corte do cordão umbilical, porém, significa que agora há novas realidades. Não apenas um novo ser, mas uma nova comunidade entre mãe e filho, um terceiro termo. O importante é que o nós instituído, os vários nós que se instituem, sejam um caminho para uma cada vez mais completa individuação. Tornar-se indivíduo é o enfrentar o mistério que nos constitui. Este exige a solidão e o silêncio. O essencial é tornar-se só mesmo estando com os outros, silenciar-se mesmo se comunicamos e partilhamos palavras. Solidão e silêncio não são coisas negativas que se sofram, mas aquilo que activamente se procura nessas horas em que estamos rodeados e conversamos. Só aqueles que amam a solidão e o silêncio têm alguma coisa para dizer. Mas nada melhor do que a silenciosa conversa de solitários.