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sábado, 13 de abril de 2024

A memória do ar (29)

Mário de Oliveira, Paisagem, 1973 (Gulbenkian)

Os campos que se abrem ao peso do ar florescem em Primaveras tardias, onde a memória do passado se constrói na lentidão com que o tempo, embalado pelas brisas matinais, se apodera da terra e perscruta aquilo que o ar esconde na opacidade da sua pura transparência.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

A memória do ar (28)

Inês Cannas, s/título (PIQ 6), 2000 (Gulbenkian

Atmosferas tomadas pela corrupção trazida pelo tempo cercam de verde e oblívio o vigor ancestral das montanhas. Onde havia o apaziguamento dos olhos humanos, há, agora, um mundo de perturbação envolto pelo ar sulfuroso dos dias de cólera e pela alucinação de quem pensa sobre o devir daquilo que é tocado pela mão dos homens.

sexta-feira, 22 de março de 2024

A memória do ar (27)

William Henry Jackson, Yucatan, 1889

O vento transporta a memória do ar, uma memória feita das coisas que toca, das árvores e dos arbustos, dos animais e das montanhas, dos rios e dos homens, dos artefactos e dos objectos naturais. É uma memória, se entregue ao próprio ar, imóvel. Permanece em pura quietude, até que o vento a transporta, cada vez mais longe, até que ela se dissolva ou se resguarde naqueles lugares de eterna quietação.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A memória do ar (26)

Maria Helena Vieira da Silva, L'air du vent, 1966 (Gulbenkian)

Voar, eis o vício do vento. Deslocar-se sobre os segredos dos homens, para os envolver no tremendo da ventania, no terrível do vendaval. Por vezes, o ar toma o nome de ciclone, corre apressado numa fúria desmedida, desloca-se em turbilhão, como se fosse habitado por uma raiva despida de razões, como se tivesse cansado de segredos e de homens.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A memória do ar (25)

Sérvulo Esmeraldo, Vibrations, 1963 (Gulbenkian)

O ar divide-se em camadas. Se o vento o anima, então cada uma começa a vibrar e ondas sonoras propagam-se sobre a Terra, umas violentas, outras dóceis, outras ainda saturadas de harmonia e equilíbrio. Os homens pensam então escutar a música das esferas celestes, mas é apenas uma canção da Terra vinda da púrpura ébria da atmosfera.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A memória do ar (24)

Cândido Costa Pinto, sem título, 1945 (Gulbenkian)

Para lá do cosmos imaginado, resta um mundo aéreo, fabricado por correntes de ar presas à luz de cada dia. É um mundo oculto na sua transparência, onde germina a disposição para o voo e o medo da queda. Existe, se deixarmos a imaginação cavalgar os prados da consciência. Desaparece, se sujeitamos os grandes espaço à gramática das pequenas coisas. 

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

A memória do ar (23)

Chas. A. Hellmuth, Broadway, N. Y., 1920-25 (Photoseed)
 
Pessoas caminham como estátuas enlouquecidas pela desmedida da cidade. Vão presas ao talento aéreo da sua loucura. São pássaros inflamados pelo desejo de voar, mas faltam-lhes as asas. Quando o ar irrompe no seu caminho, trazido pela força rolante do vento, elas olham os céus e apenas vêem sombras. Os seus corpos são de pedra e nem a vontade mais pura as consegue erguer  ao éter dos céus.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

A memória do ar (22)

Carl Philipp Fohr, Cloud Study, c. 1816/17

A transumância das nuvens pinta de cinza e negro os grandes espaços onde o ar circula como uma sombra transparente e silenciosa. São um rebanho sem pastor nem cão de guarda. Vão, mas mas a memória lembrar-lhes-á o retorno, na hora aprazada, ao lugar de onde partiram para observarem, das aéreas alturas, vales e planícies ou as inquietantes montanhas.

sábado, 18 de novembro de 2023

A memória do ar (21)

Thomas Cole, A tornado, 1835

O invisível ar faz-se vento e vendaval, coluna que se ergue ciclónica e arrasta consigo o sinal da destruição e o símbolo do terror. Os animais escondem-se em abrigos frágeis, as árvores, porém, entregam o seu corpo à carícia devastadora do deus irado.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

A memória do ar (20)

Felix Vallotton, Landscape in the Jura Mountains near Romanel, 1900

O ar puro das montanhas repousa sobre o solo incerto. É uma promessa para o viandante perdido ou para os pastores cansados de guiar os rebanhos no Inverno. Na sua transparência, vêem-se os desejos que tocam o coração dos homens e os anseios que lhes fervilham no peito. 

terça-feira, 12 de setembro de 2023

A memória do ar (19)

Egon Schiele, Arboles otoñales, 1911
Os Outonos nascem dos ares que vagueiam pela Terra. Levados pelo hábito, os homens chamam-lhes ventos, se agressivos, vendavais, mas o ar, esse elemento esquivo, de textura subtil, é como um espírito livre, sopra onde quer, fecunda o que se abre para a surpresa da sua passagem.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

A memória do ar (18)

Theodor und Oskar Hofmeister, Elbstrand im Schnee, 1897

A devastação de Inverno liberta o ar da sua submissão ao sopro do Sol. Corre, então, frio e seco sobre paisagens desoladas, rasurando as suas histórias, para que outras e mais tentadoras sejam possíveis. Onde se suspeita a desordem por ele introduzida, deve-se também crer que haverá outro mundo que florirá quando a Primavera, com os seus imperativos, voltar.

sábado, 5 de agosto de 2023

A memória do ar (17)

Alexandre Estrela, O som no ar, 2010 (aqui)

O ar é o meio memorial onde o som encontra o modo de se propagar, fazer um caminho até que descubra uns ouvidos que transformem as ondas sonoras em signos significantes, em música ou ruído, em promessas de um antigo paraíso ou na ameaça de um inferno de estrépitos e de estrondos, prontos a derramar sobra a terra o tumulto do mal.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

A memória do ar (16)

Dr. S.B. Ward, Winter, 1889
O ar transporta em si a memória de todas as estações. Carrega-a como se sonhasse. Quando é tocado pelas recordações de Inverno, arrefece e corre o mundo, trazendo as águas pluviais que limpam as cidades ou algum nevão que cobre montanhas e planícies com o imaculado véu da brancura.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

A memória do ar (15)

Imogen Cunningham, Dream Walking, 1968
Esqueça-se a solidez dos corpos, com a sua submissão aos imperativos da gravidade. Esqueça-se o desenho da sua figura, com o sublinhar espesso dos contornos. Deixemos que os sonhos se sonhem em corpos feitos de ar, para que a leveza do desejo se possa expandir do centro da terra para o universo sem fim. 

sábado, 3 de junho de 2023

A memória do ar (14)

Rudy Burckhardt, Flatiron in Summer, 1948

Essas avenidas largas retêm entre prédios as memórias vertiginosas do ar. O vôo dos pássaros, o desejo dos homens, o silêncio dos anjos, a sombra da aurora, os sonhos da matéria. Tudo ali circula, preso à lentidão, pois a memória é um exercício que exige tempo e cuidado. A pressa traz consigo a ruína por onde se escapa tudo aquilo que o coração quer conservar.

terça-feira, 16 de maio de 2023

A memória do ar (13)

Maria Helena Vieira da Silva, L’air du vent, 1966

A precipitação com que o ar se enovela ao transformar-se em vento anuncia que, sob a capa de um mundo sólido e perfeito, se escondem, secretas e sulfurosas, as moléculas do caos, compostas por miríades de átomos instáveis e energias ferozes que se aniquilam entre si, anunciando o nada de onde tudo, mais uma vez, se haverá de extrair.

domingo, 30 de abril de 2023

A memória do ar (12)

A grande abertura do horizonte, a ausência de obstáculos trazidos pela natureza ou feitos por mão humana, deixam que o ar circule suspenso da liberdade de tudo o que é invisível. Oferece-se então como um velho repositório de memórias, onde se escondem o voo dos pássaros, os sonhos dos homens.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

A memória do ar (11)

Imagem obtida com IA da CANVA

O ar tece uma rede invisível e nela a realidade deixa-se prender até à imobilidade. São de aço flexível os fios com que a rede se tece, para que se ajuste aos prisioneiros que caem sob o seu império. Então, eles respiram lentamente e deixam correr o tempo, esquecidos da subjugação ao soberano que não se vê.

quinta-feira, 23 de março de 2023

A memória do ar (10)

Robert Doisneu, La gargouille de Notre Dame, 1969
Rainhas dos ares, quase anjos, quase animais, pura matéria inerte, as gárgulas  olham o horizonte, vigiam as nuvens, perscrutam os aviões, oferecem o seu corpo de pedra ao cansaço das aves. Diante delas, o ar rodopia num turbilhão, para depois, bonançoso e invisível, pousar sobre a terra como uma canção que lentamente se silencia.