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segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Liberdade e solidão

Joan Abelló i Prat - Competición motorista en la Isla de Man (1967)

A vida social é marcada por duas orientações que, aparentemente, entram em choque: a competição e a cooperação. Na verdade, estas formas de viver em sociedade referem-se à necessidade de adaptação ao meio que é dado ao homem para viver. A liberdade está, todavia, para além do competir e do cooperar. Começa na assumpção da solidão como ponto de partida da vida do espírito, a qual não se coaduna nem com o fascínio competitivo nem com o instinto gregário do rebanho. A liberdade, como tudo o que é essencial na vida espiritual do homem, exige o confronto com a singularidade de si mesmo e a solidão que essa singularidade exige.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

O mistério do mal

Marc Chagall - Caim e Abel (1911)

A narrativa bíblica sobre Caim e Abel não nos fala apenas do traumático que é a ruptura da fraternidade. É certo que o episódio desenha o modelo de todas as guerras - civis e outras -, mas há mais do que isso. Há duas camadas de sentido presentes. Numa primeira, a mais superficial, vê-se Caim ressentido com Abel e Deus perante a diferença com que são tratados. Uma leitura sociológica diria que a diferenciação entre os homens é causa de ressentimento e geradora de perturbações no comportamento dos indivíduos e na ordem pública. Não deixando de fazer sentido, esta leitura é limitada e tornaria o agrado de Deus para com Abel uma mera injustiça. 

Em Génesis 4: 6-7 é dito a Caim e perante o seu ressentimento: "Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te (...)”. Fica sugerido uma falta prévia, a prática de um mal não determinado, que terá estado na origem na diferenciação de tratamento dado às oferendas de Abel e de Caim. É esta misteriosa falta prévia que é o núcleo da história de Caim e Abel. O mal, esse mal originário, é misterioso. E é ele que dá que pensar, pois gera os outros, como aqueles que se simbolizam no homicídio de Abel pelo irmão e todos os que decorrem na relação entre seres humanos. Isto significa, também, que a diferenciação é já o resultado da acção do mal.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Confusão geral

Stanislaw Ignacy Witkiewicz - Confusão geral (1920)

Há na vida quotidiana um estado geral de confusão, estado esse inimigo da vida espiritual do homem. A sociedade, ao complexificar-se e ao centrar-se na dimensão da produção/consumo, tornou-se estruturalmente confusa. Ao mesmo tempo, os indivíduos, uma vezes seduzidos outras amedrontados, perderam a capacidade de tornar para si mesmos claras as verdadeiras razões pelas quais vale a pena viver. A confusão social e a confusão individual intensificam-se uma à outra, tornando cada vez mais a vida caótica. O triunfo dos interesses materiais sobre o espírito, apesar de fortemente apoiado na razão científica e calculadora, está a rasurar todo o sentido da existência humana. Para onde quer que o homem se volte, apenas encontra ruído, poluição e uma confusão generalizada.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O tempo dos vendilhões

Stanley Spencer - Expulsion of the Money Changers (1921)

O episódio da expulsão dos vendilhões do templo é, juntamente com o dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, um dos elementos matriciais da cultura ocidental. Se a separação entre Deus e César prefigura a separação entre religião e política, a expulsão dos mercadores do templo revela um topos cuja estrutura merece ser meditada. Há múltiplas leituras do acontecimento. Por exemplo, Mestre Eckhart, num dos seus sermões, faz uma leitura simbólica e espiritual, sem qualquer incidência política e social. A natureza simbólica dos textos evangélicos implica a existência de múltiplas leituras que não se excluem mas complementam. Este episódio, do ponto de vista social, não significa apenas a divisão dos espaços, a separação rigorosa do locus do espírito do locus do mercado. Significa também a sua hierarquia. As coisas espirituais estão acima das questões de mercado, de tal maneira que estas estão impedidas de se misturar com aquelas. No ideal regulador da vida do ocidente, esta separação e hierarquização sempre esteve presente, as coisas do espírito estão acima das questões do mercado e têm sobre estas preeminência.

A modernidade pode ser vista como um processo de subversão desta velha hierarquia. Lentamente, os mercadores expulsos do templo começaram a invadir as esferas que não lhe diziam respeito. Infiltraram-se na ciência e na política. Transformaram a ciência numa cadeia de apoio aos negócios e converteram a política à protecção do lucro privado dos vendilhões expulsos do templo. A vingança contra o templo de onde foram expulsos veio a seguir. Veio não apenas através da conivência entre os guardas do templo e os vendilhões, mas no acto de substituição do próprio templo. Os bancos são as novas catedrais onde os mercadores se entregam à corrupção do espírito e à corrosão do carácter dos homens. A vida, que um dia foi organizada em função do espírito, é agora toda ela voltada para o mercado e vivida em função do dinheiro. Os mercadores expulsos por Cristo voltaram e criaram os seus templos, onde o espírito não tem lugar, para invadirem e contaminarem todas as esferas da vida. No entanto, no fundo dos homens o episódio evangélico da expulsão dos vendilhões não deixa de ecoar, gerando a sensação de que alguma coisa está mal, de que alguma coisa insensata inverteu a natureza das coisas, de que o mundo está fora dos eixos.