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sábado, 11 de julho de 2015

Cegos conduzem cegos

Pieter Brueghel el Viejo - The Parable of the Blind Leading the Blind (1568)

Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala. (Mat. 15:14)

A ideia de cegos a conduzirem outros cegos emerge num debate sobre o respeito pela tradição. Os fariseus parecem muito preocupados pela letra da lei e pelo cumprimento literal dessa mesma lei. O que Cristo torna patente, através do confronto entre os lábios (uma metonímia para discurso) e o coração, é o problema constitutivo de todo o logos humano, o de as palavras poderem estar radicalmente separadas das coisas. Cegos - sejam condutores ou conduzidos - são aqueles que falam, que dirigem, que executam mas que perderam o sentido essencial da palavra e da acção. São eles que se entregaram à errância. E quanto mais perdidos mais ferozes são na exigência da literalidade. Na verdade, a tradição, tomada assim, é uma traição ao espírito e um exercício do mal, como a história da humanidade nunca deixa de mostrar. A tradição, num outro e mais decisivo sentido, não é outra coisa se não a atenção ao coração, ao essencial, ao que está para além do discurso, do Verbo que está para além da palavra.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A tradição e o coração

Albert Bloch - The Blind Man (1942)

Deixai-os; são cegos condutores de cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova (Mateus 15:14).

Cegos condutores de cegos. Esta referência, sempre tão citada, emerge, segundo Mateus, numa discussão sobre as tradições. O que está em jogo é a distinção entre uma tradição formal e ritualista, a dos escribas e dos fariseus, e uma orientação do coração proposta pelo Cristo. O coração, porém, deve ser entendido num espectro semântico muito mais amplo que o do mero sentimento. Trata-se antes da disposição do espírito e da luz que dele irradia. Quando a luz do espírito é substituída pelo código dos rituais, os homens tornam-se cegos. Eis um debate que preserva toda a sua actualidade.

sexta-feira, 1 de março de 2013

A forma e a vida

Vincent Van Gogh - The Red Vineyard (1888)

Naquele tempo, disse Jesus aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo: «Escutai outra parábola: Um chefe de família plantou uma vinha, cercou-a com uma sebe, cavou nela um lagar, construiu uma torre, arrendou-a a uns vinhateiros e ausentou-se para longe. Quando chegou a época das vindimas, enviou os seus servos aos vinhateiros, para receberem os frutos que lhe pertenciam. Os vinhateiros, porém, apoderaram-se dos servos, bateram num, mataram outro e apedrejaram o terceiro. Tornou a mandar outros servos, mais numerosos do que os primeiros, e trataram-nos da mesma forma. Finalmente, enviou-lhes o seu próprio filho, dizendo: 'Hão-de respeitar o meu filho.’ Mas os vinhateiros, vendo o filho, disseram entre si: 'Este é o herdeiro. Matemo-lo e ficaremos com a sua herança.’ E, agarrando-o, lançaram-no fora da vinha e mataram-no. Ora bem, quando vier o dono da vinha, que fará àqueles vinhateiros?» Eles responderam-lhe: «Dará morte afrontosa aos malvados e arrendará a vinha a outros vinhateiros que lhe entregarão os frutos na altura devida.» Jesus disse-lhes: «Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram transformou-se em pedra angular? Isto é obra do Senhor e é admirável aos nossos olhos? Por isso vos digo: O Reino de Deus ser-vos-á tirado e será confiado a um povo que produzirá os seus frutos. Os sumos sacerdotes e os fariseus, ao ouvirem as suas parábolas, compreenderam que eram eles os visados. Embora procurassem meio de o prender, temeram o povo, que o considerava profeta. (Mateus 21,33-43.45-46) [Comentário de Ireneu de Lyon aqui]

O confronto de Jesus com fariseus e sumos sacerdotes sublinha que alguma coisa se tinha perdido na tradição de Israel. Os representantes intelectuais e sacerdotais dessa tradição não entregavam o fruto a quem de direito. Na verdade, o seu saber erudito e a sua praxis religiosa tornaram-se meras formas secas, de onde o espírito e a vida tinham sido expulsos. A tradição mosaica transformara-se em letra morta e a vida dos homens, sem o fruto que lhes era devido, secava, perdia o rumo, abria-se à errância.

O texto vai mais longe na disputa com os representantes da tradição de Israel. Eles não são apenas acusados de não dar fruto. São acusados de se terem apropriado daquilo que não lhes pertencia e de o terem assassinado. A rejeição da pedra angular não é um rejeição fundada na ignorância mas no deliberado não reconhecimento da Verdade, numa vontade de falsificar a realidade e de impor uma normatividade a que nenhuma vida já animava. O Reino já não era por eles convenientemente administrado.

O confronto central joga-se, deste modo, entre a forma vazia e a vida plena. Não é que as formas morais, religiosas e espirituais sejam destituídas de importância. Contudo, quando tomadas por si mesmas, quando se separam da vida – e por vida há que entender uma ampla gama que vai do espírito ao corpo – deixam de dar fruto. Fórmulas ocas e rituais vazios matam o espírito, expulsam-no, não permitem que ele se derrame sobre os homens e os faça viver nele.

Mas sempre que o espírito e a vida são rejeitados transformam-se noutro momento e noutro lugar na pedra angular de um novo edifício, de uma nova comunidade e forma de vida, que possa produzir novos frutos, para que a tradição persista numa nova figura.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Haikai do Viandante (1)

Shakuhachi/Shamisen Duo

Um pássaro voa,
pedra de espuma e mar.
Floresta sombria.