domingo, 21 de abril de 2019

O sal do silêncio (13)

Hippolyte Flandrin, The Resurrection

Não apenas o sal habita no silêncio, mas também o fermento. É ali, no silêncio sepulcral que habita o centro do mundo, que fermenta vida, corroendo os grilhões de aço da morte. Chegada a hora, ela irrompe banhada pela luz do segredo. Em cada irrupção há um ressurgir no qual, sob o véu silente, se escuta a música  eterna das esferas celestes.

sábado, 20 de abril de 2019

Diálogos morais 5. Partilha

Stanley Kubrick, Life and Love on the New York City Subway, 1946

- Contem-te, está ali um homem a dormir. Se ele acorda...
- Não acorda, está morto.
- Que horror. Não brinques com coisas sérias.
- Horror seria ele estar vivo e ter de te partilhar com ele.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Poesia do Viandante (717)

Meyer Schapiro - Surreal Rocks (1960)

717. rochas gânglios

rochas gânglios
de pedra
na crosta da terra
inflamações
a arder
na planície
espelhos
espalhados
na cinza do mar

(25/12/2016)

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Pintura e haikus (9)

Chaim Soutine, Cagnes Landscape with Tree, 1923-24

Paisagens de verde
sombreadas de amarelo.
Luz da Primavera.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

O sal do silêncio (12)

Paul Wolff, Housewife, grass-bleaching the linen, 1930s

Há gestos, tão vivos, congelados no passado que parecem querer soltar-se das férreas grades do calendário, para abraçarem o húmus da terra e entregarem-se ao ardor que, na maresia das manhãs, se desprende já dos raios solares. 

terça-feira, 16 de abril de 2019

Diálogos morais 4. Prazeres

Irving Penn, Man Lighting Girl’s Cigarette (Jean Patchett), New York, 1949

- Obrigada.
- É um prazer.
- Compreendo. Tem prazer no que me faz mal, no que me pode matar.
- E que prazer poderia eu ter no que lhe fizesse bem?

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Meditação Breve (100) Abandono

Foto de Graciela Iturbide

Quando alguém se sente chamado para um território inóspito, então é porque chegou a hora do abandono. Não de se sentir abandonado, mas de abandonar-se, para que o vento que sopra onde quer lhe possa falar e indicar-lhe o caminho que o espera.

domingo, 14 de abril de 2019

Poesia do Viandante (716)

Meyer Schapiro, Landscape, 1940

716. paisagens de granito

paisagens de granito
e grafite
rasgadas na cera
dos campos
paisagens húmidas
untuosas
sedadas no sono
da noite
paisagens de poeira
e seixo
vidradas no visco
de um verso

(25/12/2016)

sábado, 13 de abril de 2019

Impressões 28. Larvas na noite

Yale Joel, Night traffic on the Major Deegan Expressway. New York, June 1958

Os carros deslizam como larvas no território da noite. Abrem valas de luz por onde caminham em busca de um destino, dessa morada onde o silêncio lhes paga cada pergunta com o mistério de uma resposta.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Micronarrativa (15) Indecisão

Elliott Erwitt, Jacksonville, Florida, 1968

Uma inquieta presença insinuava-se à entrada. A sua vida fora sempre um lago de indecisão. Chegava ali e hesitava longamente se devia entrar ou ir-se embora. Acabava sempre por se ir. No dia que entrou, a sua mão ficou agarrada longas horas à porta entreaberta, como se fosse possível apagar o precipitado passo.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Adeus

Fotografia de Jacques Henri Lartigue

Sentava-me ao lado dela e observávamos o oceano, comentando os veraneantes, a ondulação, o destino dos barcos que passavam. Por vezes, convidava-a a jantar, mas ela nem sempre acedia, protestando cansaço ou algum incómodo ocasional. Era uma amizade intermitente. Num dia à tarde, sentados um ao lado do outro, brilhavam-lhe os olhos. Disse-me: acabou a minha pena, posso voltar para casa. Olhei-a estupefacto. Pena? Sim. Venha comigo. Pegou-me na mão e levou-me para o mar. Dentro de água beijou-me longamente. Depois, dando umas braçadas, disse-me adeus. Volto para casa, acrescentou. E enquanto se afastava mar adentro, soltou um canto belíssimo. Quando se calou, o seu silêncio quase me enlouqueceu.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Diálogos morais 3. As trevas e a luz

William Holman Hunt, The Lantern-Maker's Courtship, 1854-56

- Ah essa boca velada de negro, como eu...
- Contém os teus desejos, os meus lábios...
- Os teus lábios cerra-os tão terríveis trevas.
- E para que te serve a luz de uma lanterna, se não os iluminas?

terça-feira, 9 de abril de 2019

Poesia do Viandante (715)

Antonio Clavé - 23-11-75 (1975)

715. leves os ladrilhos

leves os ladrilhos
da casa latem
latejam
tocados
na porosidade
pura da pedra
pela límpida
luz do ladrilhador

(25/12/2016)

segunda-feira, 8 de abril de 2019

O sal do silêncio (11)

Chin-San Long, Tree with cranes, 1966

Expectante, a ave olha o rumor do silêncio, enquanto o tempo, levedado pela brisa, passa em direcção ao futuro. Na ramagem das árvores, sob um céu anónimo, esconde-se a esperança e a mão que há-de pintar de cinza a sombra efémera que a luz sempre consigo traz.

domingo, 7 de abril de 2019

Impressões 27. Esfinge

Anónimo, Sphinx, Egypt, 1890s

Olho e reconheço-me na imagem que a esfinge me devolve. Se pergunto quem sou, nunca oiço a resposta, apenas o ecoar da pergunta no impenitente vazio do deserto chega aos meus ouvidos, devolvendo-me a angústia da pergunta e a incerteza que me habita. 

sábado, 6 de abril de 2019

Haikai do Viandante (368)

George Inness, A Passing Shower, 1860

Chuva passageira
desce dos céus de Abril.
Balem os cordeiros.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Diálogos morais 2. Eu não desisto

Jean Dieuzaide, Aveiro, Portugal, 1954

- Parece uma bola de luz. Quero-a.
- Não podes querer o Sol. Está longe, é muito grande e quente.
- Não interessa. Eu não desisto.
- Não desistes? Como assim?
- Vou crescer, vou ser maior que tu e então, este barco maior que o sol leva-me até ele. Quando lá chegar, mergulho-o na água e ele arrefece. Então trago-o comigo. Eu não sou como tu. Eu não desisto.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Poesia do Viandante (714)

Georgia O'keeffe - Dark Iris No. 11 (1922-23)

714. o lírio negro

o lírio negro
levita
na loucura
da leda
madrugada

(24/12/2016)

terça-feira, 2 de abril de 2019

O sal do silêncio (10)

Jean Dieuzaide, Castelo dos Sarmiento, Ribadavia, 1960s

O murmúrio das pedras foi arrastado pelo vento para o desfiladeiro do silêncio. Feitas ruínas, as muralhas são agora fantasmas mudos que dormem embalados pelo arbusto do esquecimento.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Meditação Breve (99) Tempestade

Francisco Gutiérrez Cossío, Tempestad, 1946

A chuva cai impiedosa, dilacera a terra seca, enquanto a trovoada abre, com o frenesim de um caçador em busca da presa, um buraco no coração dos homens. Uma tempestade é sempre uma ameaça, mas também é uma porta por onde a luz, por breves instantes, relampeja.