domingo, 27 de fevereiro de 2011

Poemas do Viandante

163. TARDES DE DOMINGO

voltou o sol aos dias
agora menos frios
e uma luz provisória cai
suavemente
sobre o casario das aldeias
ao longe

tudo é feito de uma teia
suave e silenciosa
como se uma promessa
a cantar no meu olhar
esperasse a voz
que do teu virá


Thomas Merton - Dancing in the Water of Life

Ontem, de forma inusitada, comecei a leitura dos diários de Thomas Merton. Não pelo princípio, mas pelo quinto volume referente aos anos de 1963 - 1965. Merton ia registando a vida que ia vivendo no mosteiro, mas o registo apresenta uma linguagem muito distante da retórica banal e infantil, excessivamente adocicada, de uma certa piedade que se apoderou há muito do mundo católico, e que ainda subsiste. A primeira impressão é a de se estar perante um homem do seu tempo. Isto significa que o monge cisterciense, apesar da natureza contemplativa da sua vocação, estava atento aos sinais do tempo e ao mundo. Lia, na altura, Santo Anselmo e Karl Barth, o teólogo protestante. Mas lia ainda, e muito atentamente, Sartre, então no fulgor da sua influência. Referência também para a leitura de Compreender o Islão, de Fritjhof Schuon. Um livro que ainda hoje merece leitura (talvez, noutra altura, se fale aqui dele). Pelas páginas de Merton, perpassam os conflitos raciais nos EUA, o assassinato de Kennedy, o problema do Vietname, mas também a trivialidade da vida. Idas ao médico, as dores no braço, o conflito com os caçadores que invadem as terras do mosteiro, a morte do Abade Geral dos cistercienses, os encontros com pessoas vindas de todo o lado, católicos ou de outras confissões, o cansaço com a correspondência, até uma tentativa de sedução, ou violação, de que foi alvo por uma mulher, de aspecto beatnik, que se introduziu no mosteiro, alegando ser sua familiar. O que se vai descobrindo é que a vida de um contemplativo não é muito diferente da dos outros seres humanos, e um mosteiro, apesar de estar protegido do mundo, não deixa de pertencer a esse mesmo mundo. Mais do que uma preocupação sobre a possível invasão da vida monacal pela superficialidade mundana, abre uma esperança sobre a possibilidade de uma vida contemplativa no mundo, uma vida onde, apesar de tudo, o espírito possa trazer um pouco de luz à cega acção dos homens.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Poemas do Viandante

162. ESCUTAR

abrir a porta
se o dia clareia
e no limiar da casa
escutar
no rumor do mar
a voz de alguma
sereia



segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Poemas do Viandante

161. PALAVRAS

restam-me ainda estas palavras
sem redenção

o jardim cansado
entregou-se à volúpia
do meio-dia
e as sombras que
sobre mim caem
são sílabas tão pobres
que palavra alguma ousará
com elas compor o metro
onde te ouvirei cantar

resta-me ainda a redenção
desta pobreza


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Poemas do Viandante

160. MNEMOSYNE

a memória
que desfolhavas
entre dedos
era um céu
que se abria
para a luz
onde guardavas
rios e segredos


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Poemas do Viandante

159. VENTO

sob a copa da velha tília
em tarde esquecida
deixavas o vento
sombrear o rosto
e desenhar ao de leve
os seios sob
a límpida camisa
de algodão

se o cão rosnava
ou um pássaro
vinha poisar nos ramos
os olhos cerravam-se
e um alvoroço
acendia-se no peito
que trémulo
se abandonava ao vento
como se fora
a carícia desta mão


terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Poemas do Viandante

158. TROVA

a labareda ateia
silêncio no bosque
e canta-te
ó promessa
de água

trova tão pura
ao arder no peito
lembra o dia –

irrompe sob a lua
que o anuncia


terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Poemas do Viandante

157. A FACE

poisas o corpo
sobre a poeira
e arrasta-te o vento
os cabelos
para trás

a tua face
esse riso tão puro
cresce para
o deserto
que se abre
nestas mãos


domingo, 6 de fevereiro de 2011

Poemas do Viandante

156. TERRA BALDIA

a terra baldia
onde ficou o coração
– campo de ervas
ao sol da tarde –
lembra a pele branda
desse corpo
afogueado
de água e mar


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Poemas do Viandante

155. CIFRA

a mão que poisarei
em tua pele
treme
ondula ao fogo
respira na ânsia
dessa solidão

se uma ave canta
se arde lentamente
como um segredo –
tudo estremece
desprende-se
voa para o silêncio

– decifra-te em mim