Lecomte du Noüy - White slave (1888)
Naquele tempo, dizia Jesus aos
judeus que n'Ele tinham acreditado: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem,
sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos
tornará livres.» Replicaram-lhe: «Nós somos descendentes de Abraão e nunca
fomos escravos de ninguém! Como é que Tu dizes: 'Sereis livres'?» Jesus
respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o
pecado é servo do pecado, e o servo não fica na família para sempre; o filho é
que fica para sempre. Pois bem, se o Filho vos libertar, sereis realmente
livres. Eu sei que sois descendentes de Abraão; no entanto, procurais matar-me,
porque não aderis à minha palavra. Eu comunico o que vi junto do Pai, e vós
fazeis o que ouvistes ao vosso pai.» Eles replicaram-lhe: «O nosso pai é
Abraão!» Jesus disse-lhes: «Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de
Abraão! Agora, porém, vós pretendeis matar-me, a mim, um homem que vos
comunicou a verdade que recebi de Deus. Isso não o fez Abraão! Vós fazeis as
obras do vosso pai.» Eles disseram-lhe, então: «Nós não nascemos da
prostituição. Temos um só Pai, que é Deus.» Disse-lhes Jesus: «Se Deus fosse
vosso Pai, ter-me-íeis amor, pois é de Deus que Eu saí e vim. Não vim de mim
próprio, mas foi Ele que me enviou. (
João 8,31-42) [Comentário do Concílio Vaticano II
aqui]
O texto de hoje gira em torno do tema da libertação. É grande a perplexidade
dos judeus ao escutarem a ideia de libertação, pois eles nunca foram escravos,
como poderão ser libertos? Esta reacção denota que a questão da libertação
ultrapassa o par antitético escravo – homem livre. Tão servos podem ser os
escravos como os homens livres. Aquilo que emerge no texto está antes – no
sentido de ser mais essencial – da mera categorização social e política. O que
nos ensina João?
Surpreendentemente, ensina-nos que a liberdade é uma questão de
aprendizagem, que ela implica um processo – um processo de libertação – e,
sendo assim, ela, a liberdade, não é um dado natural do homem. Essa
aprendizagem está indicada na primeira fala de Cristo, que a tradução acomoda de
tal forma a uma visão banal que se perde a originalidade do texto grego. Ele
poderia ser traduzido antes assim: se
permanecerdes (ou persistires) na minha palavra, sereis verdadeiramente meus
discípulos. A relação ao logos
(palavra ou verbo, de preferência a mensagem) não é de uma mera adesão do
espírito, não é uma fidelidade de crença, mas antes um permanecer na palavra.
Na fidelidade ou na crença, a relação do fiel ou do crente em relação ao
objecto da sua crença ainda é marcada pela exterioridade. O texto de João
propõe outra coisa, propõe um estar em
(estar no logos), um ser em. Creio, pois estabeleci-me e
persisti no logos.
A aprendizagem, o discipulato, é essa persistência no logos. Ao viver no logos (na palavra), conheço a verdade. A verdade, porém, não é o
mero acordo entre uma proposição e a realidade. A palavra grega utilizada no
texto (ἀλήθεια) remete para a ideia daquilo que se desoculta, que se revela. E
é isso que se desoculta pela persistência no logos (na palavra ou no verbo) que liberta o homem. Não menos
misteriosa, porém, é a palavra grega (ἐλευθερώσει) utilizada para a ideia de
libertação. Ela remete para ἐλεύθερος que significa livre e
livrado (ou libertado) de uma obrigação, i. e., desobrigado.
Todo o diálogo com os judeus está marcado por uma
incompreensão essencial. Estes falam da sua natureza e julgam-se livres segundo
a natureza, pois nunca foram, social ou politicamente, escravos. Mas o que
Jesus lhes diz é que essa natureza representa uma obrigação que os torna
servos, que os obriga à servidão. É uma natureza que, em última análise, se
pode dizer desnaturada. Só a verdade liberta. Mas a verdade não é da dimensão
do discurso mas da vida vivida na palavra (logos), de uma vida que permite desocultar
uma outra natureza, desocultação que liberta e desobriga o homem da servidão a
essa natureza desnaturada. O pecado, mesmo entendido como errância, não é outra
coisa senão a servidão, enquanto a aprendizagem pela permanência no logos é desocultação daquilo que nos desobriga e, desse modo, nos retira da servidão e torna livres.