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sábado, 11 de julho de 2015

Cegos conduzem cegos

Pieter Brueghel el Viejo - The Parable of the Blind Leading the Blind (1568)

Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala. (Mat. 15:14)

A ideia de cegos a conduzirem outros cegos emerge num debate sobre o respeito pela tradição. Os fariseus parecem muito preocupados pela letra da lei e pelo cumprimento literal dessa mesma lei. O que Cristo torna patente, através do confronto entre os lábios (uma metonímia para discurso) e o coração, é o problema constitutivo de todo o logos humano, o de as palavras poderem estar radicalmente separadas das coisas. Cegos - sejam condutores ou conduzidos - são aqueles que falam, que dirigem, que executam mas que perderam o sentido essencial da palavra e da acção. São eles que se entregaram à errância. E quanto mais perdidos mais ferozes são na exigência da literalidade. Na verdade, a tradição, tomada assim, é uma traição ao espírito e um exercício do mal, como a história da humanidade nunca deixa de mostrar. A tradição, num outro e mais decisivo sentido, não é outra coisa se não a atenção ao coração, ao essencial, ao que está para além do discurso, do Verbo que está para além da palavra.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Designações vazias

Agnes Martin - A rosa (1964)

A pintura contemporânea tende a estabelecer uma relação arbitrária entre o quadro e a designação que lhe é atribuída. Esta arbitrariedade deriva do choque entre o que é visível e a palavra. Talvez a finalidade desta estratégia seja a de marcar a diferença abissal entre o pictórico e a sua interpretação, já que toda a denominação pode ser pensada como interpretação. O espectador, desconcertado, tem de encontrar um caminho para a experiência estética e esquecer a palavra. Isto, contudo, é apenas um dos lados do problema. O outro é a revelação do carácter vazio - um vazio de grande plasticidade - da própria linguagem, onde as palavras estão disponíveis para acolher aquilo que se possa colocar dentro delas. O que é válido para a arte é válido para qualquer forma da vida do espírito, nomeadamente para a experiência religiosa. Entre as palavras e a experiência há um abismo, o qual é ocultado por uma crença mágica nas palavras. Elas, porém, são apenas designações vazias a que cabe dar, pela experiência efectiva, conteúdo e verdade.

sábado, 12 de abril de 2014

Um leve murmúrio

Ray K. Metzker - City Whispers, Los Angeles (1981)

Penso na ideia de uma cidade dos sussurros e vejo-a na sua razão de ser. Podemos pensar que onde apenas se sussurra, onde só leves murmúrios se fazem ouvir, a vida está de tal forma comprometida pelo medo que ninguém ousa levantar a voz e falar. Há, porém, espaços onde a liberdade não impede a fala, mas que solicitam que aqueles que tomam a palavra o façam em leves murmúrios. São os lugares onde se manifesta uma Palavra mais decisiva e fundamental do que a palavra dos homens. E essa Palavra é tão decisiva que estes compreendem que a sua voz não se deve erguer - se não querem cair no ridículo - para lá do leve sussurro.

sábado, 27 de abril de 2013

O silêncio e o nada

Odilon Redon - O silêncio

O silêncio não diz nada (rien), talvez porque é o nada (néant) que «diz» o silêncio. Compreendo que o nada (néant) é silencioso e que apenas podemos perceber o nada (néant) no silêncio. (Raimon Panikar, Mystique plénitude de Vie, p. 162

Há no mundo de hoje uma enorme poluição sonora. Não há lugar algum para onde possamos ir sem que o ruído nos invade. O pior, porém, são as palavras que nunca se calam dentro de nós. Esta poluição é o sintoma de um medo profundamente enraizado. Medo de quê? Medo de enfrentar esse nada que fala no silêncio, medo de se abrir para ele, medo de nos esvaziarmos para que ele seja nada em nós. O silêncio é a abertura para além do domínio das imagens sonoras, para além da multiplicidade das línguas e da pluralidade das palavras. No silêncio, escutamos, vazios, o Logos, esse nada anterior a todos os seres, esse verbo anterior a todos os sons. E isso aterroriza-nos, como o silêncio dos espaços infinitos já aterrorizava Pascal.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Do tempo à eternidade

René Magritte - Eternidade (1935)

Naquele tempo, disse Jesus aos judeus: «Em verdade, em verdade vos digo: se alguém observar a minha palavra, nunca morrerá.» Disseram-lhe, então, os judeus: «Agora é que estamos certos de que tens demónio! Abraão morreu, os profetas também, e Tu dizes: 'Se alguém observar a minha palavra, nunca experimentará a morte'? Porventura és Tu maior que o nosso pai Abraão, que morreu? E os profetas morreram também! Afinal, quem é que Tu pretendes ser?» Jesus respondeu: «Se Eu me glorificar a mim mesmo, a minha glória nada valerá. Quem me glorifica é o meu Pai, de quem dizeis: 'É o nosso Deus'; e, no entanto, não o conheceis. Eu é que o conheço; se dissesse que não o conhecia, seria como vós: um mentiroso. Mas Eu conheço-o e observo a sua palavra. Abraão, vosso pai, exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz.» Disseram-lhe, então, os judeus: «Ainda não tens cinquenta anos e viste Abraão?» Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: antes de Abraão existir, Eu sou!» Então, agarraram em pedras para lhe atirarem. Mas Jesus escondeu-se e saiu do templo. (João 8,51-59) [Comentário de Gregório Magno aqui]

Este é um dos textos evangélicos com maior carga filosófica. Opõe ser e existir. Sem a compreensão desta oposição, uma oposição relativa, não será possível compreender a afirmação inicial se alguém observar a minha palavra, nunca morrerá. Abraão e os profetas existiram. A sua vida foi balizada pelo tempo, começou, durou e terminou. O tempo é a sua condição. Estavam, como todos aqueles que vêm à vida condicionados pela temporalidade. A resposta que Jesus dá à objecção de que ele não teria idade para ver Abraão mostra que ele se coloca num outro plano que não é o da duração. Antes de Abraão existir eu sou.

Antes não significa uma mera anterioridade temporal. Significa a pertença a uma realidade anterior – mais essencial – àquela onde o tempo é a condição de existência. Cristo diz aos interlocutores que está no tempo mas que não pertence à temporalidade, por isso não será afectado pela morte. Mas o que o texto põe claramente em jogo é outra coisa. Também o homem não pertence ao tempo, também a sua existência condicionada é uma limitação que ele pode ultrapassar.

São dois os momentos em que essa condição não condicionada do homem é manifestada. Uma delas está expressa nos enunciados constatativos Abraão, vosso pai, exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz. O dia, apesar da sua carga temporal, surge como símbolo daquilo que está para lá do tempo e do condicionamento que este impõe à existência. Abraão só de pensar em ver esse dia exultou. Dir-se-á que era o júbilo da esperança, a alegria da expectativa. A felicidade, porém, nasce da experiência directa dessa realidade, da experiência do Cristo em si mesmo.

O outro momento está no início do texto. Ele manifesta-se num acto de linguagem promissivo ou, na linguagem de John Searle, comissivo: se alguém observar a minha palavra, nunca morrerá. A promessa (nunca morrerá), todavia, está antecedida por uma condição (observar a minha palavra), sem a qual a promessa deixa de ter efeito. Nos actos comissivos, o locutor fica comprometido com um estado futuro. O escândalo do texto – escândalo que se expressa na violenta reacção dos interlocutores de Cristo – reside no paradoxo que ele contém: o futuro prometido é o da abolição do próprio futuro, a saída para lá do tempo, do qual o futuro é apenas uma das suas instâncias.

Abraão atingiu a felicidade porque fez do Verbo (Logos) a sua casa e o seu modo de ser. Quem assim o fizer, quem observar a Palavra (Logos) elevar-se-á a uma condição onde o condicionamento temporal – com as suas três instâncias, passado, presente e futuro – deixará de ter efeito. Desse modo, segundo a promessa, deixará de existir para passar a ser, ser que não contém um fui nem um serei, mas um eterno sou.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Verdade e libertação

Lecomte du Noüy - White slave (1888)

Naquele tempo, dizia Jesus aos judeus que n'Ele tinham acreditado: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres.» Replicaram-lhe: «Nós somos descendentes de Abraão e nunca fomos escravos de ninguém! Como é que Tu dizes: 'Sereis livres'?» Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é servo do pecado, e o servo não fica na família para sempre; o filho é que fica para sempre. Pois bem, se o Filho vos libertar, sereis realmente livres. Eu sei que sois descendentes de Abraão; no entanto, procurais matar-me, porque não aderis à minha palavra. Eu comunico o que vi junto do Pai, e vós fazeis o que ouvistes ao vosso pai.» Eles replicaram-lhe: «O nosso pai é Abraão!» Jesus disse-lhes: «Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão! Agora, porém, vós pretendeis matar-me, a mim, um homem que vos comunicou a verdade que recebi de Deus. Isso não o fez Abraão! Vós fazeis as obras do vosso pai.» Eles disseram-lhe, então: «Nós não nascemos da prostituição. Temos um só Pai, que é Deus.» Disse-lhes Jesus: «Se Deus fosse vosso Pai, ter-me-íeis amor, pois é de Deus que Eu saí e vim. Não vim de mim próprio, mas foi Ele que me enviou. (João 8,31-42) [Comentário do Concílio Vaticano II aqui]

O texto de hoje gira em torno do tema da libertação. É grande a perplexidade dos judeus ao escutarem a ideia de libertação, pois eles nunca foram escravos, como poderão ser libertos? Esta reacção denota que a questão da libertação ultrapassa o par antitético escravo – homem livre. Tão servos podem ser os escravos como os homens livres. Aquilo que emerge no texto está antes – no sentido de ser mais essencial – da mera categorização social e política. O que nos ensina João?

Surpreendentemente, ensina-nos que a liberdade é uma questão de aprendizagem, que ela implica um processo – um processo de libertação – e, sendo assim, ela, a liberdade, não é um dado natural do homem. Essa aprendizagem está indicada na primeira fala de Cristo, que a tradução acomoda de tal forma a uma visão banal que se perde a originalidade do texto grego. Ele poderia ser traduzido antes assim: se permanecerdes (ou persistires) na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos. A relação ao logos (palavra ou verbo, de preferência a mensagem) não é de uma mera adesão do espírito, não é uma fidelidade de crença, mas antes um permanecer na palavra. Na fidelidade ou na crença, a relação do fiel ou do crente em relação ao objecto da sua crença ainda é marcada pela exterioridade. O texto de João propõe outra coisa, propõe um estar em (estar no logos), um ser em. Creio, pois estabeleci-me e persisti no logos.

A aprendizagem, o discipulato, é essa persistência no logos. Ao viver no logos (na palavra), conheço a verdade. A verdade, porém, não é o mero acordo entre uma proposição e a realidade. A palavra grega utilizada no texto (ἀλήθεια) remete para a ideia daquilo que se desoculta, que se revela. E é isso que se desoculta pela persistência no logos (na palavra ou no verbo) que liberta o homem. Não menos misteriosa, porém, é a palavra grega (ἐλευθερώσει) utilizada para a ideia de libertação. Ela remete para ἐλεύθερος que significa livre e livrado (ou libertado) de uma obrigação, i. e., desobrigado.

Todo o diálogo com os judeus está marcado por uma incompreensão essencial. Estes falam da sua natureza e julgam-se livres segundo a natureza, pois nunca foram, social ou politicamente, escravos. Mas o que Jesus lhes diz é que essa natureza representa uma obrigação que os torna servos, que os obriga à servidão. É uma natureza que, em última análise, se pode dizer desnaturada. Só a verdade liberta. Mas a verdade não é da dimensão do discurso mas da vida vivida na palavra (logos), de uma vida que permite desocultar uma outra natureza, desocultação que liberta e desobriga o homem da servidão a essa natureza desnaturada. O pecado, mesmo entendido como errância, não é outra coisa senão a servidão, enquanto a aprendizagem pela permanência no logos é desocultação daquilo que nos desobriga e, desse modo, nos retira da servidão e torna livres.

quarta-feira, 13 de março de 2013

A dinâmica do compromisso

Maria Helena Vieira Da Silva - Liberdade  (1973)

Naquela tempo, disse Jesus aos judeus: «Meu Pai trabalha intensamente, e Eu também trabalho em todo o tempo.» Perante isto, mais vontade tinham os judeus de o matar, pois não só anulava o Sábado, mas até chamava a Deus seu próprio Pai, fazendo-se assim igual a Deus. Jesus tomou, pois, a palavra e começou a dizer-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: o Filho, por si mesmo, não pode fazer nada, senão o que vir fazer ao Pai, pois aquilo que este faz também o faz igualmente o Filho. De facto, o Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo o que Ele mesmo faz; e há-de mostrar-lhe obras maiores do que estas, de modo que ficareis assombrados. Pois, assim como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho faz viver aqueles que quer. O Pai, aliás, não julga ninguém, mas entregou ao Filho todo o julgamento, para que todos honrem o Filho como honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou. Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não é sujeito a julgamento, mas passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo: chega a hora e é já em que os mortos hão-de ouvir a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão, pois, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também deu ao Filho o poder de ter a vida em si mesmo; e deu-lhe o poder de fazer o julgamento, porque Ele é Filho do Homem. Não vos assombreis com isto: é chegada a hora em que todos os que estão nos túmulos hão-de ouvir a sua voz, e sairão: os que tiverem praticado o bem, para uma ressurreição de vida; e os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de condenação. Por mim mesmo, Eu não posso fazer nada: conforme ouço, assim é que julgo; e o meu julgamento é justo, porque não busco a minha vontade, mas a daquele que me enviou.» (João 5,17-30) [Comentário de Agostinho de Hipona aqui]

Duas portas para entrar no texto de João, o trabalho e a palavra. O trabalho do Pai e do Filho remete para uma ideia de dinâmica e de produção de obras. Isto permite perceber uma concepção do divino muito diferente de outras tradições onde Deus é pensado como estando afastado dos homens. A ideia aristotélica de Deus como motor imóvel é aqui superada pela ideia de trabalho mas também de compromisso que se exprime no vocábulo grego εργάζεται (ver aqui). O Pai trabalha continuamente e compromete-se também continuamente. Há assim uma dinâmica do compromisso, a qual constitui o modelo para o próprio Filho.

Este operar contínuo e este compromisso manifestam-se na palavra. O apelo que é feito aos homens é que escutem a palavra que lhes fala da dinâmica do compromisso de Deus para com eles. Se esta dinâmica não tem sábado, a que lhe deveria responder, por parte dos homens, também não. A disciplina da escuta não distingue o dia santo dos outros dias, pois todos os dias são santos, já que em todos eles a dinâmica do compromisso se efectiva.

É esta efectiva operatividade, mediada pela palavra, que não só cura os paralíticos como ressuscita os mortos, aqueles que estão encerrados no túmulo. O morto é apenas uma intensificação do estado de alienação simbolizado pelo paralítico do texto de ontem. Se se considerar a tradição platónica, o corpo é visto como o túmulo onde está encerrada a alma, onde ela se encontra alienada. Mas esta tradição materializa demasiado essa ideia de alienação. Mais do que o corpo, o túmulo é as múltiplas formas como a alma se perde na errância, na distracção, naquilo que a prende ao que é transitório. O dinamismo operatório do Pai, imitado pela acção do Filho e anunciado pela Sua palavra, é o caminho de libertação e emancipação dessa escravatura imposto pelo prazer do efémero. O compromisso do Pai é o da libertação e emancipação dos filhos.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O silêncio cresce

O silêncio cresce desmesurado. Uma quase impossibilidade de escrever ou de ler, um sabor amargo de indiferença por tudo o que toca o caminho. Como se as palavras se tivessem gasto e fosse impossível pegar-lhes.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

O mar da eternidade

O tempo passa tão rapidamente entre os trabalhos que a vida traz, que parece nada já existir para além do tempo que passa. Pesados grilhões são o tributo ao ardil do relógio, obscura volúpia que nos suga para o interior vazio que o habita. Agora que cheguei aqui, peço ao silêncio redentor a carícia da solidão. Fecho os olhos e penso na luz que me habita, nessa palavra que proferiu o meu nome e me trouxe ao mundo. Esqueço-me do tempo e calo o coração ao mergulhar no mar a que, à falta de melhor, chamo eternidade.

terça-feira, 29 de abril de 2008

O alimento da fé

De que se alimenta a fé? De uma exaltação do ânimo? Da convicção da razão? Do sentimento inabalável? Não, a fé que se alimente de tudo isso não é fé, apenas uma crença que, apesar de poder ser exaltada, não deixa de ser superficial. É esta fé que persegue o próximo e que, tendo o poder da espada na mão, não hesitará a fazer correr o sangue. O motor da fé não pode ser outra coisa senão a dúvida, a incerteza, a fragilidade da convicção. Só elas podem impelir o coração mais para diante, para uma experiência mais funda da palavra que nos fez ser. A fé alimenta-se assim da escuta. Ora aquele que se põe à escuta nem sempre ouvirá. Umas vezes porque está distraído, outras porque aquele que fala suspende a voz para deixar em suspenso o que escuta, desenhar-lhe um espaço maior para duvidar e, assim, com mais determinação fazer crescer a fé.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Sou uma palavra dita

Sou uma palavra dita por Deus, diz Thomas Merton, depois acrescenta: Poderá Deus dizer uma palavra sem sentido? Não, Deus não diz palavras insignificantes, mas para muitos, como para mim, é obscura a palavra proferida. O que significa a palavra que eu sou e que me constitui? Se me debruço sobre a minha vida nada de sólido encontro e nada me permite desocultar o mistério dessa palavra. Há desejos em mim, sempre os houve, mas esses desejos nunca se apresentaram com força e coerência suficientes para moverem a minha vontade a realizá-los. Quem nunca desejou a glória do poder ou a do fazer? No entanto, esses pequenos desejos, pequenos porque não se constituíram como móbiles poderosos, nunca me moveram para uma acção determinada e consequente. Talvez não fossem a interpretação da palavra divina que me fez ser. Assim perdido, incapaz de compreender o significado profundo, me fui retirando de tudo o que é específico da realização do desejo e da ambição do homem. Resta-me apenas aquilo que a necessidade me impõe. Mas a palavra, aquela que me constitui no mais fundo de mim, continua, para a minha consciência, sem significado. Será a palavra de Deus que me fez vir à existência a palavra da minha insignificância, do meu sem sentido?