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terça-feira, 18 de junho de 2024

Sonetos de Primavera (12)

Ernst Ludwig Kirchner, Fehmarn House, 1908

Partirás, Primavera, apressada.

O teu noivo espera-te na casa

de onde não voltarás para rever

a luz do dia e o frio negro da noite.

 

As flores que trouxeste definharam.

Nos rios, bravias águas adormecem.

São corcéis sem fulgor, velhos amantes

perdidos no cansaço do amor.

 

Jamais retornarás, mesmo se o tempo

trouxer nova vitória sobre a noite

do negro Inverno que virá.

 

Fantasia e fulgor, novos amantes

encontrarão a luz de um desejo

que outra Primavera soltará.


Junho de 2024




quarta-feira, 12 de junho de 2024

Sonetos de Primavera (11)

Mimi Fogt, Spring Time - Serra de Sintra, 1979 (Gulbenkian)

Na cilada das ruas, sol ardente

traça lagos de luz, terras de fogo,

um mundo no bulício da manhã.

O espírito canta, é um pássaro.

 

Tudo na Primavera dissimula

o Verão que virá com a sua corte

ouvir velhas canções de sal e sombra,

para despertar almas sonolentas.

 

Ébrio, bebo a luz, como o fogo,

e canto, sou um pássaro do Sul,

perdido entre ruas e desejos.

 

O Verão arde puro nos lugares

onde a Primavera se esconde

e em mim canta odes e canções.

 

Junho de 2024

terça-feira, 4 de junho de 2024

Sonetos de Primavera (10)

João Queiroz, sem título, 1999 (Gulbenkian)

Morre a Primavera no calor

desvairado de Junho, nestes dias

sem nome, sem grandeza, nesta hora

onde os anjos se calam temerosos.

 

Em silêncio, o sol chegou irado,

exausto pelos dramas concebidos

na caverna escura onde o mal

germina como erva impiedosa.

 

Retiram-se os anjos para longe,

procuram o jardim onde as águas

correm entre a noite e a luz.

 

A cidade esconde-se nas sombras,

enquanto o mal trabalha sem sossego,

invade as avenidas, nasce o caos.

 

Junho de 2024


terça-feira, 28 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (9)

Adam Elsheimer, Pan and Syrinx, 1610-1620

Frívolas fantasias pairam na tarde,

enchem os céus de nuvens e promessas,

rasgam nos corações a esperança,

desenham nas estradas fios de sombra.

 

A luz cresce ainda pelos campos,

toca o sal da terra com o ardor

do sol primaveril, com o desejo

que desliza dos seios das mulheres.

 

Águas de Primavera são promessas

trazidas pelas sombras deste dia,

tecidas pelas mãos brancas da tarde.

 

A natureza é campo de júbilo,

onde o desejo cresce, salga a terra

e dardeja os corpos das mulheres.

 

Maio de 2024


segunda-feira, 20 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (8)

Francis Picabia, Procesión de Sevilla, 1912

São tardes de assombro no caminho.

Espanto pelas coisas renascidas,

libertadas da morte invernal,

do trôpego casebre da tristeza.

 

Uma procissão vinda do passado

descia ruas cobertas de verdura.

As pétalas das rosas cintilavam

nascidas no contágio da memória.

 

Trago em mim o silêncio do espanto.

Abro os olhos na luz secreta e pura,

no caminho exacto do assombro.

 

Passam pequenos anjos entre andores,

as pétalas pisadas perdem cor.

Renascem em mãos lívidas as rosas.


Maio de 2024


domingo, 12 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (7)

Camille Corot, View of Marino in the Alban Mountains in the Early Morning, 1826 – 1827

Um hálito de lume na cidade

desce sobre o rio, sobre os jardins

tocados pelo sopro do crepúsculo.

Desce sobre o tempo da memória.

 

Fogos de Primavera ardem céleres

nos recantos da noite, nos lugares

onde os corpos dançam no orvalho

trazido pelos braços da incúria.

 

Desenho no papel um fogo mortal,

os jardins inflamados da cidade,

corações desprezados, sem morada.

 

Esquecido do nome, vou na noite

e danço no orvalho incendiado

pelo fogo fremente da aurora.

 

Maio de 2024


sábado, 4 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (6)

Júlio Resende, sem título, 1952

Remota Primavera dança dentro

dos meus olhos cerrados, no ardor

daqueles dias sem nome e nas noites

tocadas pelo vento cru do sangue.

 

Entardece o esplendor daquelas horas

varado pela espada da cegueira.

Uma sombra trespassa o coração.

As palavras refluem no silêncio.

 

Danço na noite pálida do sangue

e ergo a Primavera na fogueira

dum jogo de palavras sem pudor.

 

Levanta-se a espada dessas horas.

Trespassado e vil, o corpo cai

sem amparo na fenda fria da noite.

 

Abril de 2024


quinta-feira, 25 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (5)

Anny Heimann, Im Garten, 1906

Tarde de tempestade anunciada

na negrura dos céus de anil e chumbo.

O calor prende os pássaros nos ramos

de árvores tolhidas no sol de Abril.

 

Um vento no silêncio do crepúsculo

abre as avenidas aos rumores,

ao desejo da memória, ao incêndio

dos dias de fantasia primaveril.

 

A chuva prometida que não cai.

O soar do trovão no trem da tarde.

O enigma dos pássaros de cinza.

 

A vida na memória se recolhe

aberta ao desejo de quem canta,

fechada ao fulgor da noite fria.

 

Abril de 2024

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (4)

Lucas Van Valckenborch, Animals Grazing beneath Trees, 1573

Sigo pela vereda junto ao rio,

os campos do Inverno se despedem.

Viandantes sem nome, extasiados,

olham o despertar da natureza.

 

A vida rude anima o turbilhão

das águas que procuram o caminho.

Depois dos rios, um mar as aguarda.

Levam a voz dos campos, luz e cal.

 

Olho o longo adeus, oiço calado

o rufar dos tambores na voz quente

dos pássaros do Sul, junto ao rio.

 

A súbita memória do Verão

incendeia de luz rios e campos,

um fogo de água arde frio no mar.

 

Abril de 2024


terça-feira, 9 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (3)

Léon Kossoff, Red Brick School Building, Willesden, Spring, 1981

A luz da tarde abre o horizonte,

a cidade cintila crua e sôfrega

tecida no azul dum céu de cristal,

nascida no espelho da memória.

 

Ao longe, as muralhas do castelo,

mais perto, o rumor vivo do rio.

As pessoas caminham em silêncio,

presas na sombra pálida do dia.

 

Sigo as labaredas da memória,

inscrevo no cristal o céu azul

roubado ao espelho da infância.

 

Solícita, a cidade feita sombra

chama-me no rumor rude do rio,

fala-me no silêncio de quem passa.

 

Abril de 2024


segunda-feira, 1 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (2)

Paula Modersohn-Becker, Man lying beneath a Blossoming Tree, 1903

Veio Abril, o mês da vã promessa,

o tempo onde o sol e a fria chuva

se encontram nos olhos extasiados

de quem vai pelos campos, solitário.

 

Um ardor nupcial fulge na terra.

Cintilações e fogos de artifício

fendem as sombras ávidas da noite,

são cânticos de pássaros nos céus.

 

Pelos campos caminho solitário,

guardo a promessa nos meus olhos

abertos para o êxtase de Abril.

 

No fogo desta noite rasgo as sombras.

O que estava morto ressuscita

na voz núbil dos pássaros que cantam.


Abril de 2024


domingo, 24 de março de 2024

Sonetos de Primavera (1)

Manuel Filipe, Inverno-Primavera (Homenagem à Sagração
da Primavera de Igor Stravinsk
i, 1978 (Gulbenkian)

Chegou a Primavera sob um manto

de promessas eternas, um engano

que a todos encanta e abre à vida.

Veio plena de luz e sortilégios.

 

Crescem os dias, as noites silenciam

os antigos terrores, todos dançam

uma dança arcaica, rodopiam

sem parar na poeira fria do tempo.

 

Vamos pela floresta do engano,

caminhamos na luz branca da vida,

presos aos sortilégios prometidos.

 

O silêncio da noite é um bálsamo,

traz o esquecimento da poeira

onde o tempo germina a fria morte.

 

Março de 2024