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sábado, 24 de junho de 2017

Fugas

Jackie Greene, Seminole Park. Model Sailboat Race (1974) 

Há uma tendência para perceber como compensação actividades como aquela que a fotografia nos dá a ver. Não podendo participar em regatas com veleiros a sério, compensa-se a inclinação com corridas de modelos. Se se pensar um pouco mais talvez se faça uma constatação surpreendente. Mais que uma compensação este tipo de actividades mostra-nos a natureza da actividade humana, de grande parte da actividade humana. Na verdade, esta não passa, na generalidade dos casos, de puro divertissement pascaliano, fuga à sua própria e insuportável realidade. A natureza e a dimensão dos modelos são irrelevantes.

domingo, 21 de junho de 2015

Condição lunar

Georges Rouault - ... ao chegar a noite, saiu a lua (1930)

O homem é a lua sobre a terra. Como ela, ele pode reflectir uma luz cuja intensidade o ultrapassa e cuja origem está fora e muito acima dele. Esta sua condição lunar acentua-se quando a luz que o ilumina é interceptada e ele fica na escuridão. Também nessa hora ele é como a lua, é lua nova e às trevas ele tem o condão de acrescentar outras trevas.

quarta-feira, 4 de março de 2015

O tigre e o caçador

Charles Lapicque - Chasse au tigre (1961)

Primeiro, o viandante pensa que o mais importante é enfrentar o tigre, caçá-lo e assim domar a natureza. Depois, convence-se de que o tigre não está fora mas dentro de si, que é aí, na natureza íntima, que é preciso matá-lo. Por fim, descobre que a única coisa a fazer é cavalgar o tigre, dançar com aquilo que o envolve e esquecer a caça, pois o tigre e o caçador são um e o mesmo.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

O imperativo musical

Ferdinand Schmutzer - Vienna (1901)

Escondestes estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos. (Mateus, 11:27)

O que solicita a música ao espírito do homem? Que ele diminua, que se torne pequenino. Que o homem se torne pobre em espírito! Eis o imperativo musical. A música, como se fosse a emanação de um outro mundo, não se dirige à razão, mas ao que está acima dela e quer tornar-se o próprio do homem, a sua propriedade, a sua natureza.

terça-feira, 4 de março de 2014

Para além do homem

Francis Bacon - Man Kneeling in Grass (1952)

                                         Digno de compaixão é o homem que não ultrapassa o homem (Séneca).                                                                                       
Ser mais que homem é o desejo inscrito no coração da humanidade, como se a ideia de se ser aquilo que se é fosse escandalosa e digna de compaixão. Nesta ânsia de ultrapassagem podemos pensar com Nietzsche o sobre-homem, mas também podemos pensar o não homem, a não humanidade. Esta não significa obrigatoriamente uma inumanidade entendida como barbárie e ferocidade animal, mas algo que seja incomensurável com o homem. Por exemplo, Deus que permanece inefável para o discurso humano.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

O mistério do mal

Marc Chagall - Caim e Abel (1911)

A narrativa bíblica sobre Caim e Abel não nos fala apenas do traumático que é a ruptura da fraternidade. É certo que o episódio desenha o modelo de todas as guerras - civis e outras -, mas há mais do que isso. Há duas camadas de sentido presentes. Numa primeira, a mais superficial, vê-se Caim ressentido com Abel e Deus perante a diferença com que são tratados. Uma leitura sociológica diria que a diferenciação entre os homens é causa de ressentimento e geradora de perturbações no comportamento dos indivíduos e na ordem pública. Não deixando de fazer sentido, esta leitura é limitada e tornaria o agrado de Deus para com Abel uma mera injustiça. 

Em Génesis 4: 6-7 é dito a Caim e perante o seu ressentimento: "Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te (...)”. Fica sugerido uma falta prévia, a prática de um mal não determinado, que terá estado na origem na diferenciação de tratamento dado às oferendas de Abel e de Caim. É esta misteriosa falta prévia que é o núcleo da história de Caim e Abel. O mal, esse mal originário, é misterioso. E é ele que dá que pensar, pois gera os outros, como aqueles que se simbolizam no homicídio de Abel pelo irmão e todos os que decorrem na relação entre seres humanos. Isto significa, também, que a diferenciação é já o resultado da acção do mal.

domingo, 18 de agosto de 2013

Palhaços por natureza

Albert Gleizes - Palhaço (1914)

Sempre que se usa de forma figurada o termo palhaço, esse uso toma uma coloração pejorativa. Chega-se a ver o epíteto como uma ofensa contra a honra. Esta recusa generalizada de se ser palhaço é sintoma de algo muito mais profundo do que parece. Na verdade, lidamos mal com aquilo que em nós é ridículo, risível, volúvel e distorcido. A cada momento compomos a máscara e afivelamos traços de dignidade que, como bem sabemos, estamos longe de poder ostentar. Finitos, frágeis e mortais, nós queremos esconder essa realidade que o palhaço, com os seus jogos burlescos e actos cómicos, torna evidente. O palhaço não é um artista, mas o espelho que devolve a nossa realidade material, a nossa natureza destituída de graça, a qual é insuportável para o orgulho da nossa razão.

terça-feira, 19 de março de 2013

Conferir realidade

Johan Thorn Prikker - A noiva (1892-3)

Jacob gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado Cristo. Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo. José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la, resolveu deixá-la secretamente. Andando ele a pensar nisto, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: «José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados.» Despertando do sono, José fez como lhe ordenou o anjo do Senhor, e recebeu sua esposa. (Mateus 1,16.18-21.24a) [Comentário proveniente da liturgia grega aqui]

O texto escolhido para hoje estabelece o vínculo entre uma filiação e uma função. Contudo, o vínculo funda-se num mistério e exige uma atitude. A função do Filho de Maria é a de ser Cristo, o Messias, aquele que salvará o povo da errância. O vocábulo σωσει (terceira pessoa do singular do futuro do indicativo do verbo σωζω) remete para um amplo campo semântico. O verbo σωζω significa libertar, proteger, curar, preservar, salvar, mas também guardar, guardar na memória, perdoar, não matar. Na figura e função de Cristo encontramos plasmadas todas estas significações. O vínculo com a filiação – que faz a conexão com David – mostra que esta função tem uma natureza real. Real porque se inscreve numa determinada estirpe, a de David, que tem por função reinar, mas real também porque produtora de realidade.

A salvação, a obra do Messias, é então uma obra de conferir realidade ao que a tem diminuída. Por isso, por esta dimensão ontológica da função atribuída ao Filho de Maria, se percebe por que motivo ele é um libertador, um protector, um salvador, um guardador. Liberta os homens de um determinado estado em que eles se encontram diminuídos, protege-os da queda nesse estado, cura-os e guarda-os da deficiência ontológica em que se encontram. É esta função que, apesar de real, se inscreve no mistério.

A experiência humana corrente é a da deficiência ontológica, é a da errância, é a da falta que o homem sempre sente mas que, mesmo se dotado de uma vontade poderosa, nunca consegue colmatar. É a sua natureza finita e falível, pensará submetido ao âmbito da experiência empírica. Que ele possa ser outra coisa, não pode deixar de ser, para si mesmo, um mistério. Este mistério requer o mistério da imaculada concepção do próprio Salvador. Ele é um homem mas não é um homem. A sua natureza plenamente humana é mais que humana e o mistério da sua concepção é o testemunho desse excesso de natureza.

Haverá um caminho para o homem compreender esse mistério? Segundo o texto, fica claro que existe um caminho para a compreensão do mistério. Para uma consciência moderna, educada na crítica e na recusa de qualquer autoridade que não a razão, é o mais terrível, cruel e decepcionante dos caminhos, o da obediência. José figura todos aqueles que se abriram ao mistério da natureza humana, ao mistério de que ela possa ser outra coisa para além de matéria corruptível, e obedeceram à voz interior que por eles chamava. Ele fez o que lhe foi ordenado, isto é, obedeceu e recebeu a sua esposa, abriu-se ao mistério, abriu-se àquele que, no fundo do seu ser, chamava por ele. Não rejeitando o filho de Maria, José não se rejeitou a si mesmo, não rejeitou o que de salvífico e libertador tinha em si mesmo, não rejeitou tornar-se efectivamente real, de se tornar naquilo que ele efectivamente era.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O Filho do Homem

René Magritte - O Filho do Homem (1964)

Naquele tempo, ao chegar à região de Cesareia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta aos seus discípulos: «Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?» Eles responderam: «Uns dizem que é João Baptista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas.» Perguntou-lhes de novo: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo.» Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. Dar-te ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.» (Mateus 16,13-19) [Comentário de Bento XVI aqui]

O texto trata da instituição da Igreja, o momento em que Cristo coloca Simão como fundamento dessa Igreja. Esta acto instituinte, contudo, deve ser recolocado no contexto, e este é o de um inquérito. O Mestre interroga o seus discípulos, e interroga-os não sobre qualquer matéria de natureza teórica, sobre alguma coisa que eles pudessem saber pelo estudo, mas acerca da própria natureza do Mestre.

O inquérito não deixa de ser surpreendente e marcado por clara ambiguidade. A primeira questão interroga acerca da crença corrente na opinião pública. A ambiguidade está na expressão, corrente no Antigo e no Novo Testamentos, com que Cristo se designa a si mesmo, o Filho do Homem (ben Adam). Essa expressão, em hebraico e na cultura judaica, remete para a referência homem e desse modo a questão poderia ser reformulada da seguinte forma: “Quem dizem os homens que é o homem?”, o que permite perceber que a questão se dirige à essência do próprio homem. O que sabem os homens de si mesmos?

Os homens sabiam pouco, pois viam em Cristo um homem puramente particular, mas não aquilo que é essencial em todos os homens. Na verdade, não se reconheciam a si mesmos na figura do Mestre. A segunda parte do inquérito é dirigida aos discípulos, e Simão reconhece o Mestre. O que leva Cristo a tomar Simão como o alicerce da sua Igreja é o reconhecimento da profunda identidade entre o Filho do Homem (bem Adam) e o Filho do Deus Vivo. Este reconhecimento de Cristo por parte de Simão Pedro é, concomitantemente, o auto-reconhecimento de Pedro. Todo o homem é filho de Deus.

Os poderes conferidos a Pedro estão fundados no reconhecimento que tem da própria humanidade, da sua origem, no reconhecimento do modelo pelo qual todo o homem foi criado. Esse reconhecimento não nasce da carne e do sangue, isto é, não nasce de uma sabedoria exterior, não vem pelo estudo ou pelo ouvir dizer de uma tradição. O reconhecimento do Filho Homem nasce da vida interior, da revelação do Espírito. A afirmação da sacralidade da vida humana e a condição de possibilidade da afirmação da sua dignidade residem neste reconhecimento alicerçado na revelação. E é sobre estes alicerces que se funda uma nova comunidade, não uma comunidade natural, de natureza bio-social, mas uma comunidade espiritual e moral que, pelo reconhecimento do Filho do Homem, eleva os homens para lá da mera contingência da animalidade.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Vertigem

Esta indecisão que de tudo se apodera, esta sombra que cai sobre os dias, esta neblina que se cerra sobre o olhar. Como é sombria a luz natural da razão. Estranho lugar é o do homem, a meio caminho entre terra e céu. Os olhos erguem-se para o alto, mas o corpo submete-o à lei da gravidade. A vertigem que de mim se apodera não é mais que a luta entre duas naturezas que há muito perderam a harmonia. Como pode a razão iluminar aquilo que os deuses obscurecem?

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A floresta-mulher


Se o homem é aquele que percorre a floresta, como lenhador ou guarda-florestal, a mulher é a própria floresta. A floresta não é um sítio onde, vinda do exterior, a mulher penetre e procure um caminho. O caminho da mulher é o reconhecimento da sua própria natureza florestal, com os múltiplos caminhos que a atravessam, com a obscuridade que lhe pertence, mas também com as árvores, os fetos, os líquenes e os musgos. Labiríntica, selvagem, suave, ameaçadora e disponível para ser trilhada. O homem percorre a floresta, intui caminhos, tenta orientar-se. A viagem na floresta, para o homem, é um caminho, uma peregrinação. Para a mulher a única viagem na floresta é a da coincidência consigo mesma, o estar plenamente em si, um ser-se na florestidade que a constitui, com os seus trilhos, perigos e segredos. A floresta é o símbolo da eterna inocência feminina; para o homem, é a oportunidade de, ao percorrer os trilhos florestais, tornar-se inocente.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

O florescer das buganvílias

Por vezes olho longamente as buganvílias floridas e, no esplendor que se ergue, descubro como são tão simples e sem mistério. Ali estão engavinhadas ao que as suporta e tudo se prepara, ano após ano, para o momento onde a beleza velada se desoculta perante o meu olhar estupefacto. Vazia é a vida, porém, se a cada ano que passa nada tem para mostrar e apenas deseja mais um ano para, no próximo, o desejo se perpetuar sem motivo, ou causa, ou mérito. Será apenas o meu destino olhar as buganvílias florescer e ser testemunha de uma vida plena e realizada onde todo o mistério se resume em florir à luz do espanto que me trespassa?