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domingo, 3 de agosto de 2014

A cura dos enfermos

Pablo Picasso - La malade

E, Jesus, saindo, viu uma grande multidão, e possuído de íntima compaixão para com ela, curou os seus enfermos. (Mateus 14,14)

Duas perplexidades surgem ao leitor perante este texto de Mateus. A primeira leva-o a perguntar: por que razão uma grande multidão leva ao desencadear da compaixão, de uma íntima compaixão? A segunda diz respeito aos enfermos que nela estavam e que foram curados. Quem são eles, esses enfermos? A primeira perplexidade encontra resposta no versículo anterior. Essa grande multidão é composta por aqueles que O seguiram desde as cidades. A compaixão denota a compreensão do esforço - da ascese - que representa seguir o Mestre. Segui-Lo emerge, deste modo, como um processo contra-natura, um exercício que exige sacrifício. Mas quem são os enfermos? São aqueles que, mesmo ao segui-Lo, caem na errância, perdem o alvo. Fazem o caminho mas não sabem o sentido desse caminho. Reproduzem o gesto ritual, mas este é já destituído de verdadeira vida. Por isso é dito que estão doentes. São esses os enfermos que a compaixão leva à cura, isto é, à revelação do sentido do caminho que estão a fazer.

terça-feira, 5 de março de 2013

A lei e a misericórdia

Caravaggio - Siete obras de misericordia (1607)

Naquele tempo, Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou-Lhe: «Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?» Jesus respondeu: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete. Por isso, o Reino do Céu é comparável a um rei que quis ajustar contas com os seus servos. Logo ao princípio, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Não tendo com que pagar, o senhor ordenou que fosse vendido com a mulher, os filhos e todos os seus bens, a fim de pagar a dívida. O servo lançou-se, então, aos seus pés, dizendo: 'Concede-me um prazo e tudo te pagarei.’ Levado pela compaixão, o senhor daquele servo mandou-o em liberdade e perdoou-lhe a dívida. Ao sair, o servo encontrou um dos seus companheiros que lhe devia cem denários. Segurando-o, apertou-lhe o pescoço e sufocava-o, dizendo: 'Paga o que me deves!’ O seu companheiro caiu a seus pés, suplicando: 'Concede-me um prazo que eu te pagarei.’ Mas ele não concordou e mandou-o prender, até que pagasse tudo quanto lhe devia. Ao verem o que tinha acontecido, os outros companheiros, contristados, foram contá-lo ao seu senhor. O senhor mandou-o, então, chamar e disse-lhe: 'Servo mau, perdoei-te tudo o que me devias, porque assim mo suplicaste; não devias também ter piedade do teu companheiro, como eu tive de ti?’ E o senhor, indignado, entregou-o aos verdugos até que pagasse tudo o que devia. Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar ao seu irmão do íntimo do coração.» (Mateus 18,21-35) [Comentário de Cesário de Arles aqui]

O texto trata da natureza da justiça e da misericórdia divinas e estabelece um padrão de comportamento para as relações humanas. É comum afirmar que o ethos da compaixão crística – que resulta do padrão desenhado pelo texto de Marcos – não tem sentido quando transposto da relação puramente humana entre um eu e um tu para a dimensão cívica. Não é possível alguém funcionar numa sociedade agindo de tal modo e o próprio poder político, enquanto monopólio da violência legítima, não pode ter a misericórdia como núcleo central da sua acção. O curioso de texto é que a natureza da justiça divina é estabelecida por analogia com a justiça de um rei.

A parábola é antecedida por um diálogo entre Pedro e Jesus, onde este explica que a misericórdia para com o outro deve ser infinita. Contudo, a parábola introduz uma limitação nesse infinito. O rei perdoa a primeira ofensa, a da dívida. Não perdoa, porém, uma segunda ofensa, agora feita a terceiros. A falta de misericórdia do devedor perdoado e o consequente castigo imposto pelo rei tornam evidentes os limites do uso da misericórdia na vida pública. Isto não significa, porém, que a misericórdia deva ser banida da cidade e das relações cívicas. Significa antes que ela deve ser um horizonte regulador da vida entre os homens e que as próprias instituições devem agir tendo por pano de fundo essa misericórdia.

Na aplicação da lei, na execução da pena, sob o véu da reposição da paz pública pelo exercício da violência legítima deve-se poder encontrar a misericórdia como ideia reguladora da acção. Isso não significa abolir as penas, mas usá-las de forma a que a qualidade de pessoa não seja negada ao culpado. E aqui manifesta-se já a misericórdia, pois o culpado é sempre culpado de ter, de alguma forma, negado a natureza de pessoa à vítima. É a humanização da lei civil aquilo que as sociedades ocidentais devem ao ethos da compaixão crística. Não é pouco.

sábado, 17 de maio de 2008

Da dor e da compaixão

Como pode o drama dos outros tocar-nos se, a seus olhos, somos os culpados desse drama? Dito assim, ainda haveria lugar para considerar um sentimento de culpa na compaixão. Mas se somos culpados pelo mero facto de existirmos, como sentir remorsos por esse facto? Como é possível a compaixão quando se pressente no outro o desejo da nossa aniquilação? Talvez seja possível a compaixão. Mas temo que essa compaixão não seja mais do que a exibição de um sentimento inqualificável de superioridade. Ouve-se o outro, desesperado, a falar, escuta-se a angústia que o percorre, a derrota que o atormenta, derrota da qual somos, a seus olhos, culpados, embora não tenhamos jogado qualquer jogo, embora não tenhamos dado um passo nesse sentido. Enquanto se ouve e fala, o espírito interroga-se sobre como trabalhar naquela situação. Sobre o outro, ainda por cima, temos a vantagem de saber que tudo o que o atormenta é insignificante e que a causa daqueles tormentos apenas está na vaidade, num ego dilatado, em alguém que não é capaz de lidar com a derrota, se é que há uma derrota. Nada disto se lhe pode dizer, pois a verdade destas palavras seria sentida como mais uma exibição inqualificável de superioridade. Deixo-o falar, falar, acusar e continuar a falar. De um determinado ponto de vista, é um exercício infinito de humilhação. Sinto que a única compaixão possível é dar-lhe espaço, abrir o campo para que possa falar e enquanto o quiser fazer. Há ali uma dor sem sentido, mas pelo facto de o não ter não deixa de doer. Talvez a compaixão mais verdadeira seja deixar que o outro exiba a dor que o atormenta. A dificuldade, porém, é não alimentar qualquer expectativa sobre a nossa superioridade, como se essa expectativa não fosse exactamente igual a dor que consome aquele que fala.