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domingo, 3 de agosto de 2014

A cura dos enfermos

Pablo Picasso - La malade

E, Jesus, saindo, viu uma grande multidão, e possuído de íntima compaixão para com ela, curou os seus enfermos. (Mateus 14,14)

Duas perplexidades surgem ao leitor perante este texto de Mateus. A primeira leva-o a perguntar: por que razão uma grande multidão leva ao desencadear da compaixão, de uma íntima compaixão? A segunda diz respeito aos enfermos que nela estavam e que foram curados. Quem são eles, esses enfermos? A primeira perplexidade encontra resposta no versículo anterior. Essa grande multidão é composta por aqueles que O seguiram desde as cidades. A compaixão denota a compreensão do esforço - da ascese - que representa seguir o Mestre. Segui-Lo emerge, deste modo, como um processo contra-natura, um exercício que exige sacrifício. Mas quem são os enfermos? São aqueles que, mesmo ao segui-Lo, caem na errância, perdem o alvo. Fazem o caminho mas não sabem o sentido desse caminho. Reproduzem o gesto ritual, mas este é já destituído de verdadeira vida. Por isso é dito que estão doentes. São esses os enfermos que a compaixão leva à cura, isto é, à revelação do sentido do caminho que estão a fazer.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O escandaloso modelo crístico

Marc Chagall - White Crucifixion (1938)

Aquilo que faz a atracção do cristianismo também está na origem da sua repulsa. A morte na cruz do filho de Deus veio abolir, na economia das religiões, todo o sacrifício humano. Abolir significa aqui tornar ilegítimo do ponto de vista religioso. Esta suprema dádiva de Cristo, o acto de morrer pela salvação dos outros, é o que faz a força do cristianismo. Mas também é aquilo que causa, nos seres humanos, a maior repulsa. Não a sua morte, mas o facto de Cristo se ter tornado, por esse acto, em modelo de humanidade, em protótipo do homem novo, aquilo que todos os homens deveriam seguir. O que estes deveriam seguir, contudo, não era a morte na cruz, mas pura e simplesmente a limitação, a crucificação, das suas pulsões egoístas. Esta limitação do desejo tem a função de criar a abertura onde os outros se possam instalar ao nosso redor. 

Há na morte de Cristo também um modelo de constituição da comunidade humana. Ela é possível no sacrifício que cada um faz de si. É este sacrifício que gera a cooperação justa. O cristianismo não se confunde com as doutrinas do contrato social, as quais são pensadas segundo um modelo de homem antagónico, o homem que segue os seus impulsos egoístas e que procura, através do direito, torná-los legítimos. Neste caso, a limitação dos impulsos egoístas não deriva de uma decisão de sacrifício pessoal, mas do medo da lei, que representa a vontade geral. É perante este modelo liberal do contrato social que o modelo do sacrifício crístico é escandaloso. A sua proposta representa uma enormidade: não esperes pela lei para te conteres, mas fá-lo como princípio originário da tua existência. O escândalo do cristianismo está todo aqui. Não por acaso, nas sociedades modernas e liberais o cristianismo perdeu poder de atracção. Ele propõe um modelo que desconstrói a narrativa que suporta os actuais contratos sociais, desconstrói a ideia de que a comunidade justa pode resultar dos egoísmos exacerbados limitados pelo medo da sanção humana.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Faça-se a Vossa Vontade!

Salvador Dali

Faça-se a Vossa Vontade! Aqui enuncia-se a máxima suprema do cristianismo, a mesma que conduziu Cristo à cruz. Há, contudo, um elemento perturbante nessa enunciação. Quanto nessa enunciação exprime a nossa própria vontade ou, melhor, o nosso desejo que a Vontade de Deus corrobore a nossa própria vontade, que seja um amparo e um legitimador do nosso egoísmo? Mesmo quando a enunciação é feita a posteriori, quando algo contrariou tragicamente o nosso desejo, não estamos ainda perante a enunciação de um desejo de apaziguamento da dor? Os seres humanos são seres desejantes e a sua vontade é inclinada radicalmente pela pluralidade dos seus desejos particulares e egoístas. O escândalo do cristianismo não reside na ideia exterior de que o Filho de Deus morreu na cruz pela salvação dos homens. O escândalo do cristianismo está todo nessa proposta de uma radical crucificação da vontade própria, inclusive dessa vontade que, ao tomar voz, diz: Faça-se a Vossa Vontade. Essa aprendizagem da morte é o desafio mais extraordinário que o cristianismo faz aos homens. Ela significa a extinção do desejo para que algo, nessa morte do ser desejante, se manifeste. Não um outro tipo de desejo, mas um outro tipo de vida. A vida desejante é uma vida cujo centro reside na experiência de finitude e de incompletude. A outra vida surge, no cristianismo, como promessa de Vida plena que, quase de um modo dialéctico, realiza o desejo pela sua morte, pela sua crucificação.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Dessubjectivação

Um dia de calor. Tudo se torna mais difícil. Aquilo que se exige é agora, mais que em outros dias, um campo de negação de si mesmo, um território de oblação e sacrifício. Cumprir cada uma das tarefas, não esperando nada delas, mas oferecendo-as como aprendizagem do esquecimento de si. Uso a palavra dessubjectivação. Este cumprir do dever como uma entrega e negação da vontade própria é uma forma de dessubjectivação, um rasgar da máscara, um passo para além da ilusão da nossa substancialidade. A dessubjectivação não é obrigatoriamente, como muitas vezes acontece, uma alienação, um estranhamento. Pode ser um passo para a clareira onde O que não vemos se manifesta. No sacrifício das tarefas quotidianas encontramos um caminho, um difícil caminho para quem sente o apelo da quietude. Mas há que cumprir essa Vontade que não é a nossa.