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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Da cisão do espírito

Antoni Angle, Acció Gallot, 1960

Há dias em que o espírito se cinde em mil línguas de fogo, não como o Espírito Santo portador da verdade mas como um corpo lacerado sob o efeito do chicote. Dividido, em luta consigo mesmo, perdido nessa guerra onde cada ideia é inimiga de outra ideia, o espírito sangra. Quando, exausto, se rende na sua cruz, descobre em si uma nova vida. Então, surge a aurora e o mundo retorna à infância como se tudo começasse de novo.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A vida que se retira

Arthur Tress - Cards and Checkerboard in Abandoned Locker Room for Railroad Workers c. 1970

Os espaços que perderam o préstimo e ficaram entregues à ruína têm sempre o condão de abrir no coração do espectador a chaga da nostalgia. Uma chaga suave mas irremissível. Um tabuleiro de xadrez, o resto de um baralho de cartas não são, porém e apesar da degradação trazida pelo tempo, mero lixo, antes símbolos de uma vida que se retirou. Não a vida física e material mas a vida do espírito. Olhamos e quase se sente o ambiente espiritual que animava quem se servia daquelas instalações, aqueles que jogavam às cartas ou os que se mediam no xadrez. A ruína que os olhos vêem é o que restou dos pensamentos, palavras e desejos que ali ecoaram e que agora são silêncio e fragmentos materiais a deslizar para fora do tempo.

domingo, 12 de novembro de 2017

O sopro do vento

Wolf Suschitzky - Milkman, Charing Cross road, London, 1935

Uma das formas de resistência que os seres humanos opõem ao espírito é a nostalgia. Olham o passado, paradoxalmente, como uma promessa de um mundo melhor. Na verdade, o que vêem são apenas simulacros desse passado despidos da sua vida real e de todo o trágico que ali houve. Essa saudade evita o exercício da escuta. O que devemos escutar? A resposta é simples: o vento. O vento sopra onde quer e nele repousa a energia, a virtude e a vontade do espírito.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Evocações

Deborah Turbeville - Isabella at École Des Beaux Arts, Paris, 1977

Quando o espírito mergulha na evocação, como acontece nesta fotografia de Deborah Turbeville, nunca é com a finalidade de rememorar o passado ou, tão pouco, de o comemorar. A evocação não é um jogo memorial mas, antes, uma reconfiguração de elementos dispersos, que, de súbito, se unem para nos darem a ver uma presença inédita num presente nunca vivido. Evocar não é convocar o passado mas promover o presente.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Indícios

Aaron Siskind - Gloucester, 1944

A ciência trabalha não com certezas mas com corroborações robustas dadas pela experiência. O espírito, porém, não tem apenas uma dimensão científica. Fora dela, ele trabalha por indícios. Um indício não nos diz nada sobre a verdade do que quer que seja. Indica um caminho, sugere uma palavra, aponta um silêncio.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Encarnação

Luis Fernández - Abstracción (1928)

O espírito geométrico é, na verdade, uma espécie de ganga da vida espiritual, o desperdício que fica de um grande esforço. A vida espiritual não é abstracção, redução do real a uma estrutura racional. Pelo contrário, toda a vida espiritual é encarnação, um fazer descer o espírito na carne, no corpo, para que este se torne espírito e se erga. Contrariamente ao que o senso comum pensa, o cristianismo, ao fazer descer sobre eles o espírito, salvou o corpo e a carne do anátema que o mundo antigo sobre eles tinha lançado.

domingo, 15 de outubro de 2017

Hesitação

Deborah Turbeville - Women in The Woods, Isabella and Elle in Blumarine, VOGUE Italia, Montova, Italy, 1977

Por vezes, os corpos hesitam numa terra de fronteira, indecisos se hão-de revestir-se com a densidade da carne ou com a imponderabilidade do espírito. Nessas alturas, são apenas uma promessa. Promessa que eles não sabem de quê nem se poderão cumpri-la. Hesitar é, então, toda a sua natureza e toda a potência do seu ser.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Olhar

Fritz Henle - Portrait between leaves (1946)

Olhar é um exercício que exige uma longa, e nunca terminada, aprendizagem. É uma das mais difíceis disciplinas do espírito humano. Podemos deter-nos perante esta fotografia e perguntar: o que se vê nela? Há quem veja um rosto de mulher entre folhas. Há quem veja o acolhimento que a natureza dispensa aos seres humanos. Há quem veja a secreta identidade entre a mulher e as folhas, o reconhecimento em que uma e outras se descobrem irmanadas.

domingo, 8 de outubro de 2017

Máscara

György Kepes - Juliet, 1937

Nesta fotografia de György Kepes, o que perturba o espectador não é a máscara que, na sua complexidade, cai sobre o rosto de Juliet. Perturbante é a severidade dos lábios que são dados a ver. É esta perturbação que leva à questão crucial: o que oculta uma máscara? Ingenuamente, pensa-se que é um rosto. Olhando aqueles lábios, porém, percebe-se que toda a máscara oculta o espírito, que ela faz parte da luta para que invisível não se torna, por algum descuido, visível.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Uma dura negociação

Heinz Held - Karneval in Köln, Köln, Germany, Date Unknown

Há nesta fotografia uma captação do espírito de Carnaval absolutamente surpreendente. Habituados à exuberância do Carnaval brasileiro, ao seu falso erotismo, à sua aparente ruptura com a ordem, há muito deixámos de perceber a essência dessa embriaguez do espírito. E ela está toda nesta fotografia. A contenção irónica das faces deixam já entrever um fundo bem mais desconcertante, inusitado e perigoso. Na marcha dos foliões, esse fundo manifesta-se e reflui sobre si mesmo, hesita entre o caos que anuncia e a ordem onde acabará por ser reabsorvido. O Carnaval, na verdade, não é mais do que uma dura negociação entre a face dionisíaca e a face apolínea do espírito.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Meditação breve (49) - Destruições

Salvador Soria - Integración de lo destruido 91-RR (1991)

Pensa-se a vida espiritual como uma existência dispensada do conflito e da destruição que lhe é subsequente. Puro equívoco. O caminho do espírito é um exercício de contínuas destruições. Destruição das veleidades pessoais, da consideração de si, das ilusões do desejo. E a cada destruição, o espírito integra, como a mais profunda riqueza, os destroços que semeou na sua caminhada.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

As moradas do espírito

Walker Evans - Apartment Building Façade with Horse-Drawn Carriage, Sixth Avenue, New York, 1934

Múltiplas são as moradas que aguardam o espírito e em todas elas ele demorará o tempo de reconhecer que essa não é a sua morada e que uma outra o espera, num caminhar sem fim nem quietação.

sábado, 2 de setembro de 2017

Destruições e escombros

Edward Weston - Wrecked Car, Crescent Beach, British Columbia, 1939

Há uma tendência para ver a vida do espírito como alguma coisa de glorioso, onde o viandante vai de luz em luz, de glória em glória. A esta fantasia edulcorante contrapõe-se uma realidade feita de destruições e escombros, ambos dolorosos. Não haverá para o homem maior dor que a destruição da suas mais íntimas ilusões. Olha e à sua volta tudo são escombros.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A porta do esquecimento

Chema Cobo - Amnesic Gate (1986-87)

Entrar pela porta do esquecimento é uma condição fundamental para a vida do espírito. Aquilo que não se esquece salta sempre como obstáculo no caminho. Uma distracção, um desvio, uma alienação. Entrar pela porta do esquecimento é um exercício de purificação e, ao mesmo tempo, a criação de uma clareira para que a realidade brote plena e total.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Vida interior

Meyer Schapiro - Abstract Interior (1950)

Um dos equívocos mais perigosos para a vida interior é confundi-la com uma existência plena de abstracções. Um conceito, por exemplo, é uma mera representação, enquanto a vida é sempre uma presença, um estar presente aqui e agora. O caminho do espírito começa sempre por um elevar-se da inocência concreta ao domínio da abstracção - é o momento da representação - para, de seguida, conquistar-se a si mesmo como realidade viva e plena, como presença pura no devir. Este é o tempo da sabedoria.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Ofícios e profissões

Joaquín Mir - Carpintero

O que se perdeu na transição dos antigos ofícios para as modernas profissões? O essencial da perda reside no desaparecimento do espírito ligado ao trabalho. As modernas profissões visam apenas a eficácia externa e não pressupõem nelas nenhuma metamorfose espiritual. Quanto muito, exigem adequação psicológica. Os antigos ofícios, porém, eram verdadeiros programas de transformação espiritual. O afeiçoar da matéria era também um programa de transformação de si mesmo. O que se ganhou em objectos que, a cada instante, se tornam obsoletos, perdeu-se na vida interior de quem os produz.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Vida espiritual (2)

Erik Petersen, Copenhagen, 1940-1945

É surpreendente o que a fotografia tem para nos ensinar sobre a vida espiritual. Como no post de ontem, também aqui é acentuada de forma deliberada uma certa qualidade inerente a qualquer fotografia. O que nos é dado a ver, pela escolha de um ângulo inabitual, é que toda a fotografia é perspectivística. Ora não é apenas o olhar que é perspectivístico. Qualquer actividade espiritual do homem implica sempre esse perspectivismo, essa negação de uma apreensão absoluta e de uma posição absoluta. A vida espiritual começa com a compreensão de que o caminho é singular, deliberadamente singular, e um processo de construção de uma singularidade. Aquela que somos.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Desdobrar-se

Carel Blazer - Double print, portrait, 1932 

O desejo de se desdobrar é uma revolta contra os limites da condição humana. O corpo impõe-nos a unidade, mas o espírito é múltiplo e incansável na processo de diferenciação. Jamais está apaziguado com a unidade que a materialidade do corpo lhe impõe. Por isso, inventa continuamente novas e novas formas de se tornar outro, de se tornar múltiplo, de ser muitos apesar de possuir apenas um só corpo. Se o corpo lhe impõe que se dobre, ele, o espírito, responde desdobrando-se.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

A outra viagem

Gustave le Gray - Le Havre, Bateaux quittant le port (1856)

Deixar o porto, fazer-se ao mar para, depois e após múltiplas escalas, voltar a esse mesmo porto. Assim, como um partir e um retornar mediados pelo viajar, podemos resumir a viagem física dos homens. Será diferente a viagem do espírito? Não será, por exemplo, a peregrinação uma viagem espiritual em tudo idêntica àquela que foi descrita? Sim, mas nem toda a peregrinação ou nem toda a viagem espiritual implica sair de onde se está fisicamente. O essencial da viagem não está em deslocar-se no espaço mas em transformar-se continuamente. A viagem espiritual - essa outra e mais decisiva viagem - é uma metamorfose, onde aquele que se transforma é ao mesmo tempo o porto de onde sai, o caminho que faz e o porto aonde regressa como sendo, ao mesmo tempo, o mesmo e já definitivamente outro.

domingo, 21 de maio de 2017

Pobres e ricos em espírito

Jill Freedman, Richest man in the world, 1970s

Na vida material, aquele que move a generalidade dos seres humanos, a riqueza reside no acumular. Na vida espiritual, pelo contrário, a verdadeira riqueza é pobreza. Reside no abandonar. Abandonar inclusive aquilo de que o espírito se apropriou e toma como propriedade sua. Um espírito que é proprietário, mesmo que seja apenas e só de bens espirituais, é um espírito submetido à lógica do mundo material, às regras do mercado. Só se tornará efectivamente rico quando se despir de tudo isso e se tornar um pobre de espírito, um sem-abrigo que não espera nada e vive para cada instante que a vida lhe concede, .