Mostrar mensagens com a etiqueta Cristianismo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Cristianismo. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

A adoração do Menino

Maestro del Retablo di Bolea - Adoración del Niño

Desde há bastante tempo que é moda olhar para o cristianismo a partir das práticas deletérias dos cristãos. Esse olhar enviesado oculta o papel profundo que o cristianismo tem no melhor que há na cultura e civilização ocidentais. Veja-se o exemplo retirado do quadro atribuído ao mestre do retábulo de Bolea. Sem o arquétipo presente na adoração do Menino, não haveria espaço cultural para uma das mais importantes conquistas civilizacionais da humanidade consignada nos direitos das crianças. Mesmo que muitos cristãos, nomeadamente padres católicos, tenham violado de forma infame esses direitos, a sua condenação começa no acto em que uma certa civilização ou cultura coloca no cerne das suas crenças a divindade do Menino Jesus, o respeito infinito pela criança, a qual, para além de humana, é divina. O que se diz dos direitos das crianças, poder-se-ia estender a todas as outras esferas dos direitos civilizacionais, nas quais a dignidade do ser humano, essa reivindicação iluminista, repousa, em última análise, nos textos neo-testamentários. Há coisas que não devemos esquecer.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Uma incongruência

Luis Pintos Fonseca - Cristo

A aguarela do pintor pontevedrino Luis Pintos Fonseca (1906 - 1959) tem o poder de tornar patente a incongruência histórica do cristianismo. Como foi possível que Cristo crucificado, a simbolização da humilhação, do abandono, da irrelevância social, se tornasse, juntamente com a herança helénica, o núcleo dinamizador da mais poderosa civilização material e cultural que alguma vez se manifestou sobre este pobre planeta? Olhamos a aguarela e vemos na morte - e morte na cruz - a semente de um florescimento exuberante. Quando o discurso do mundo se centra no fausto e no poder, não deixa de ser incongruente e causar perplexidade que aquilo que o Ocidente é tenha a sua origem num Deus que veio para morrer.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Algumas questões cruciais

JCM - Black & White Dreams, Belmonte (2008)

Será o cristianismo, como pretende Nietzsche, uma forma de ressentimento e uma negação da vida? Esta pergunta tem outra como resposta. Como poderia uma religião negadora da vida criar a civilização com maior vitalidade e onde a vida foi mais exuberante na sua afirmação e nas suas realizações? E a esta pergunta duas outras se devem juntar. Como pôde um símbolo de morte, a cruz, tornar-se semente de vida, criatividade e realização existencial plena? Como compreender, com a diminuição do influência do cristianismo e da perda de sentido simbólico da cruz para muitos ocidentais, e apesar do poderio e a riqueza actual das sociedades pós-cristãs, que estas sejam percebidas como estando em profunda crise e ameaçadas de morte?

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O desejo e a moral

Edward Burne Jones - A manhã da Ressurreição (1882)

Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. (Mateus 16:24)

Funda-se o Cristianismo em preceitos morais? Não, eles não são o fundamento da religião que tomou conta da Europa e de uma parte apreciável do mundo. Onde se funda então o Cristianismo? Funda-se no desejo, como refere Mateus: Se alguém quiser vir comigo... Os preceitos morais inscrevem-se num lugar segundo e são inúteis se a faculdade de desejar não estiver mobilizada. Apesar de secundários, esses preceitos são condição necessária. Dois preceitos são indicados por Mateus. A renúncia a si mesmo e o tomar a sua cruz. Através deles o desejo é canalizado - enquanto amor - para o caminho a seguir. E todo o Cristianismo não é outra coisa senão isto.

terça-feira, 9 de abril de 2013

O espírito e a história

Maurice Denis - Paradise (1912)

Na sequência de um post anterior, O horror da história, retorna-se à questão da história e ao seu cruzamento com experiência espiritual da humanidade. Os tempos modernos substituíram a ideia de um progresso histórico, de carácter providencial, em direcção à Parusia, a segundo vinda do Cristo, e ao Juízo Final por uma história puramente profana vista como progresso material e moral da humanidade. Em Kant, a humanidade europeia encontrou o seu pensador do progresso moral e no Conde de Saint-Simon descobriu o seu profeta da técnica. A religião cristã, já dividida pela Reforma protestante, vai deixar de ocupar a preeminência que tivera no espaço público e tornar-se um assunto do foro subjectivo dos indivíduos, agora cada vez mais atomizados. Esta subjectivação do espírito do cristianismo teve uma dupla consequência. A perda de uma compreensão global do sentido da espiritualidade, em primeiro lugar. Depois, e como corolário, a transformação da religião em mera moralidade e ritualismo, ou a sua negação, nas formas da indiferença, do agnosticismo e do ateísmo, muitas vezes organizado de forma militante e, nos últimos tempos, adquirindo uma espécie de tonalidade religiosa invertida.

A experiência da humanidade europeia, e por arrastamento da humanidade em geral, do século XX veio tornar patente os limites na crença do progresso moral da humanidade. A perda de vitalidade espiritual ocorrida nos séculos XVIII e XIX abriu as portas para as terríveis experiências totalitárias do século XX e para duas guerras mundiais. A grande experiência que a humanidade europeia, e com ela, mais uma vez, toda a humanidade, começa a fazer neste início do século XXI - uma experiência que talvez tenha começado no outro lado do Atlântico - é que as esperanças depositadas no progresso técnico-científico se estão a mostrar infundadas. O desenvolvimento do conhecimento científico e as revoluções tecnológicas, apesar dos benefícios que trazem com elas, são fontes indescritíveis de dor e de desespero. No cerne das nossas sociedades, a racionalidade tecnocientífica mostra-se impotente para gerar sociedades equilibradas e de bem-estar. Pelo contrário, apesar de alguns momentos onde as sociedades parecem querer encontrar uma forma justa de distribuição dos bens resultantes da ciência e da indústria humanas, logo se sucedem períodos de graves crises, onde o desespero cresce e a injustiça alastra. O paraíso terrestre que a modernidade, sob a ideia de progresso moral e material, prometera aos homens mostra-se, a maioria das vezes, como um verdadeiro inferno para milhões e milhões de pessoas.

Estas constatações não invalidam a bondade de uma educação virada para o progresso da moralidade nem o valor da ciência e da técnica. Mostram apenas os seus limites, os quais são muito mais profundos do que aquilo que o optimismo séculos XVIII e XIX pensou. A dolorosa descoberta que se está a fazer é que a evacuação da religião, e fundamentalmente da espiritualidade cristã, do espaço público, o seu exílio no foro subjectivo, aniquilou um espaço crítico das ilusões mundanas do homem. Destruiu também uma fonte de inspiração para a procura da verdade e do bem. As sociedades ocidentais, e por arrastamento parte das outras, passaram por um momento onde eram animadas por forças meramente mecânicas, que tiveram a sua expressão máxima nas sociedades fordistas e tayloristas do século XX, para chegarem a sociedade caóticas, onde cresce a fragilidade da generalidade das pessoas, ao mesmo tempo que pequenos grupos as submetem ao seu arbítrio e à tirania dos seus desejos, apresentados como interesses legalmente defendidos. É neste caos, já bem visível na Europa do Sul mas que em breve atingirá o centro e o norte, que se deve recolocar a questão da religião e da espiritualidade, como as forças vivas que poderão trazer um novo princípio ordenador às existências individuais e à vida das sociedades. Não uma praxis religiosa vinda da Idade Média ou dos tempos da moderna Inquisição, mas um reinvenção do cristianismo eterno e da eterna busca espiritual da humanidade. É preciso um espaço extra-mundano para olhar criticamente o mundo e as nossas ilusões sobre ele, para descobrirmos modos de vida alternativos ao caos em que nos estamos a precipitar.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O escandaloso modelo crístico

Marc Chagall - White Crucifixion (1938)

Aquilo que faz a atracção do cristianismo também está na origem da sua repulsa. A morte na cruz do filho de Deus veio abolir, na economia das religiões, todo o sacrifício humano. Abolir significa aqui tornar ilegítimo do ponto de vista religioso. Esta suprema dádiva de Cristo, o acto de morrer pela salvação dos outros, é o que faz a força do cristianismo. Mas também é aquilo que causa, nos seres humanos, a maior repulsa. Não a sua morte, mas o facto de Cristo se ter tornado, por esse acto, em modelo de humanidade, em protótipo do homem novo, aquilo que todos os homens deveriam seguir. O que estes deveriam seguir, contudo, não era a morte na cruz, mas pura e simplesmente a limitação, a crucificação, das suas pulsões egoístas. Esta limitação do desejo tem a função de criar a abertura onde os outros se possam instalar ao nosso redor. 

Há na morte de Cristo também um modelo de constituição da comunidade humana. Ela é possível no sacrifício que cada um faz de si. É este sacrifício que gera a cooperação justa. O cristianismo não se confunde com as doutrinas do contrato social, as quais são pensadas segundo um modelo de homem antagónico, o homem que segue os seus impulsos egoístas e que procura, através do direito, torná-los legítimos. Neste caso, a limitação dos impulsos egoístas não deriva de uma decisão de sacrifício pessoal, mas do medo da lei, que representa a vontade geral. É perante este modelo liberal do contrato social que o modelo do sacrifício crístico é escandaloso. A sua proposta representa uma enormidade: não esperes pela lei para te conteres, mas fá-lo como princípio originário da tua existência. O escândalo do cristianismo está todo aqui. Não por acaso, nas sociedades modernas e liberais o cristianismo perdeu poder de atracção. Ele propõe um modelo que desconstrói a narrativa que suporta os actuais contratos sociais, desconstrói a ideia de que a comunidade justa pode resultar dos egoísmos exacerbados limitados pelo medo da sanção humana.