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segunda-feira, 26 de março de 2018

Meditação breve (74) Sombras no lago

Alfred Stieglitz, Shadows in Lake, 1916

Os homens estão sempre dispostos a falar de si e da sua excessiva importância no mundo. Esquecem que nem pó sequer são, mas sombras reflectidas num lago. Não é que não existam belas sombras. Existem, aliás sombras belíssimas, mas não deixam de ser sombras que logo se desvanecem e são esquecidas. E aqui estará a maior felicidade de uma sombra: ser esquecida.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

A variação de mim

Gjon Mili - Nude Descending a Staircase (1949)

Na verdade, não creio que Pessoa tenha razão. Não somos habitados por múltiplos eus, dos quais se possa até estabelecer uma biografia autónoma. O eu compõe-se antes de uma multiplicidade sem fim de posições que unificamos com a cola da memória e a férrea corrente da razão. Eu não sou vários. Sou antes a contínua variação de mim mesmo.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Do burlesco

Thomas Hart Benton - Burlesque (1922)

O burlesco e o grotesco que esteticamente lhe está ligado são visões críticas da distorção da própria vida espiritual. Muito facilmente os homens tomam a vida do espírito - nos múltiplos domínios que a constituem - como uma afirmação de si e da sua vaidade. Esta incongruência entre aquilo que anseia a libertação das restritas fronteiras do pequeno ego e o seu aprisionamento por este mesmo ego torna-se risível. O burlesco tem então o poder, através do exagero caricatural, de tornar patente, aos olhos de todos, o quão grotescos podem ser os homens.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

A janela fechada

Pablo Picasso - La ventana cerrada (1899)

Talvez seja por medo do exterior que o homem se fecha em si mesmo. A janela fechada simboliza essa oclusão. O fechamento da janela não resulta, contudo, de uma decisão. Ele é, mais que tudo, o resultado de um processo que começa talvez antes do nascimento. Toda a educação visa solidificar o fechamento de si e reforçar as portadas da janela. Por vezes, alguém, sem saber claramente a razão, arromba a janela e sai de si. É aí que começa a arte, a filosofia ou a experiência mística. Todas elas são o fruto de um acto de violência, de uma insubordinação contra a ordem que encerra o homem na clausura de si mesmo.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Eclipses e conversões

José María Yturralde - Eclipse (1996)

E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1:5)

O acto da conversão está longe de pertencer apenas ao domínio da religião. Ele é inerente a toda a vida espiritual do homem. Thomas S. Kuhn vê a transição, na ciência, de uma matriz disciplinar a outra como uma conversão, pela qual o cientista passa a olhar a realidade e a ciência de uma outra perspectiva. Encontramos isso também na arte e até em fenómenos mais prosaicos como a política. A conversão é sempre a adopção de um outro ponto de vista. Ela não é, contudo, apenas isso. É também o desfazer de um eclipse, a remoção de um objecto opaco que oculta a fonte luminosa. Não se trata apenas de olhar de outra maneira. A própria luz também é outra. Toda a vida espiritual do homem começa - e continua - com o enfrentar de um eclipse, um eclipse onde um ego obscurece a luz que vem do ipse, de si mesmo.

terça-feira, 10 de maio de 2016

O bezerro de ouro

Emil Nolde - Danza alrededor del becerro de oro (1910)

A dança à volta do bezerro de ouro. Não se trata de dançar em torno de um ídolo material, da estátua de um animal elevado à condição de um deus. Trata-se de dançar em torno de si-mesmo, não para chegar ao interior de si, mas para se tomar como o ídolo que se deve, a cada momento da vida, adorar. O bezerro de ouro não existe fora do homem. Habita-o, é esse hóspede indesejável a quem, quando tomamos a palavra, nos referimos como eu.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Desintegração da memória

Salvador Dali - Desintegración de la persistencia de la memoria (1952-54)

A memória é a persistência do passado, a composição de indícios que acabam por vincular os homens a uma identidade a um ego. A memória é o fundamento desse ego e daquilo que deriva dele. A vida do espírito nasce da desintegração da memória, que não é outra coisa senão o quebrar da ilusão do ego.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Sobre a discussão

Emil Hansen - Discussion (Blue)

No mundo ocidental, a valorização da discussão - sob a denominação de discussão crítica - oculta duas coisas essenciais. O culta o seu real valor e a sua impotência na vida do espírito. O real valor da discussão é o da substituição da violência física pela confrontação simbólica. Esta substituição, contudo, é uma necessidade social e nada tem a ver com o caminho para a verdade. Os limites da discussão estão na sua própria natureza. A confrontação simbólica através de palavras é ainda uma paixão, onde os egos se afirmam e se defendem. O caminho do espírito começa, todavia, quando o ego se cala e abandona o palco onde representa o seu triste papel.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Da acrobacia espiritual

Marino Marini - Acrobats (1960)

Muitos deixam-se seduzir pelas acrobacias do espírito, seja pela capacidade de cálculo e de argumentação da razão, seja por hipotéticos poderes espirituais. A vida espiritual não é, todavia, uma exibição do esplendor circense do ego. A única acrobacia verdadeiramente difícil, e útil, é o ater-se à realidade tal como ela é. Melhor, tal como ela brota a cada instante.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Pensamento humano

JCM - Auto-retrato VII (2014)

Tu és para mim um estorvo, porque os teus pensamento não são os de Deus, mas os dos homens. (Mateus 16:23)

Que bagagens deve o viandante deixar para trás para que a viagem possa prosseguir? Em primeiro lugar, antes de toda a outra mercadoria, deve abandonar os seus próprios pensamentos, as suas considerações sobre si, sobre o mundo ou sobre a própria viagem que é chamado a fazer. Tornar-se pobre em espírito não é outra coisa senão deixar para trás esses pensamentos, que são humanos, demasiado humanos. Isto é, limitados, finitos, retrato do egoísmo próprio. Só assim um outro pensamento se poderá manifestar.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Cultivar a boa consciência

Robert Doisneau - Hell (1952)

Os outros, segundo a palavra de Sartre, por nos frustrarem a realização do desejo, são o inferno. Ateiam o desejo e pela negação com que o acolhem mantêm viva a dinâmica desejante, sem possibilidade desta se apaziguar no acto da consumação. Mas será que eu sou assim tão inocente no meu desejo? Será que cada um, ao desejar, é vítima duma conspiração vinda de fora? Ora negar a inocência do desejo será atribuir-lhe, na origem, uma decisão, o que contraria a ideia - ideia fundada em sólido senso comum - de que somos irresponsáveis pelo que desejamos. E traria ainda uma outra e não desejada implicação: o inferno não são os outros, somos nós, ou está em nós. O homem sempre gostou de cultivar a boa consciência.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Um grão de areia na duna

Brett Weston - Dune, Oceano (1934)

Recebemos uma estranha educação. Devido a ela, o homem convence-se que é livre quando, de ego inflacionado, impõe aos outros a sua vontade. Não estranha que liberdade e império possam conflituar. A liberdade, porém, nasce da ausência de ilusões sobre si mesmo, nasce quando o homem se descobre como um grão de areia perdido na imensidão da duna.

sábado, 15 de março de 2014

Esquecer-se de si

Robert Capa - FRANCE. 1944. Normandy. Omaha Beach. The first wave of American troops lands at dawn.

O mais difícil da viagem não é o caminhar, o mais difícil é desprender-se de si ao caminhar. Seja para onde for que o viandante se volte, o ego - o seu pequeno ego - apresenta-se como o herói, o falso herói, duma gesta imaginária. Sim, sabemos que o essencial é cumprir a injunção faça-se a Tua vontade, mas dentro de nós grita mais alto a vontade própria. E quanto mais o viandante quer que ela morra e ceda os seus direitos, mais ela luta por se afirmar e conquistar território. O mais difícil é aprender a morrer para si mesmo, esquecer-se de si.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Da realização do real

Albert Gleizes - Contemplação (1944)

Um estranho equívoco apoderou-se da ideia de contemplação. Pensa-se que é uma alienação do real, uma absorção do ego em si mesmo ou em algum objecto que o fascina e que, nesse fascínio, não é mais do que a projecção desse ego. A contemplação, porém, pouco tem a ver com os desvarios do ego. Contemplar é o encontro de duas presenças que, nesse instante, se tornam numa pura realidade. Não é uma alienação, mas, no verdadeiro sentido da palavra, uma realização. Na contemplação, a realidade realiza-se, torna-se efectiva, torna-se real.

domingo, 27 de outubro de 2013

Um rasgão no véu

James Ensor - Calvário

Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. (Lucas 18:14)

Como, numa sociedade como a nossa, poderá ser recebida esta palavra de Lucas? Os tempos modernos têm na sua essência a exaltação do eu. Tudo está organizado para fortalecer e glorificar esse eu exaltado, um eu que, segundo o ethos moderno, deve seguir o seu interesse próprio. A própria medida do comportamento racional é-nos dada pelo acordo da acção com a defesa do interesse próprio. A humilhação do eu é, portanto, um desafio à lógica dos nossos dias, uma proposta que não pode ser olhada a não ser com desdém. Um escândalo, para retomar uma velha palavra. Mas não será o escândalo um rasgão no véu com que a realidade se cobre?

domingo, 18 de agosto de 2013

Palhaços por natureza

Albert Gleizes - Palhaço (1914)

Sempre que se usa de forma figurada o termo palhaço, esse uso toma uma coloração pejorativa. Chega-se a ver o epíteto como uma ofensa contra a honra. Esta recusa generalizada de se ser palhaço é sintoma de algo muito mais profundo do que parece. Na verdade, lidamos mal com aquilo que em nós é ridículo, risível, volúvel e distorcido. A cada momento compomos a máscara e afivelamos traços de dignidade que, como bem sabemos, estamos longe de poder ostentar. Finitos, frágeis e mortais, nós queremos esconder essa realidade que o palhaço, com os seus jogos burlescos e actos cómicos, torna evidente. O palhaço não é um artista, mas o espelho que devolve a nossa realidade material, a nossa natureza destituída de graça, a qual é insuportável para o orgulho da nossa razão.

sábado, 14 de abril de 2012

A obscuridade mundana

René Magritte - Les Amants

Há sempre nos acontecimentos mundanos qualquer coisa de obscuro. Muitos deles são, por natureza, sombrios, como se fosse impossível mascarar uma certa rudeza constitucional das pessoas que neles participam. Noutros, mais glamorosos ou mais brilhantes, essa rudeza não é tão crua. Mas basta raspar um pouco com a unha - e não é preciso que esteja particularmente afiada - para que uma sombra se desenhe sob o nosso olhar. Um pouco mais de atenção e a sombra cresce, ganha peso, torna-se noite escura. No entanto, quantas vezes a natureza olhada a partir da nossa solidão mantém um brilho e um vigor inalteráveis? A questão que nasce na mente do observador está assim ligada não ao mundo e à natureza mas ao mundano, essa forma própria dos seres humanos perverterem o paraíso. A sombra projectada é a figuração da egoidade humana, esse desejo de ser alguma coisa, esse querer emergir do nada que se é. A obscuridade mundana nasce dessa incapacidade dos homens perceberem-se enquanto meros grãos de areia perdidos e errantes num universo infinito.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Sobre a morte de José Saramago

Nestes dias, aqueles que a morte de José Saramago ocupou, muitas coisas sem nexo foram ditas. Sublinho, no entanto, aquela que assumiu o cúmulo da irrelevância. Disse L'Osservatore Romano que Saramago "foi um homem e um intelectual de nenhuma admissão metafísica, ancorado até ao fim numa confiança arbitrária no materialismo histórico, aliás marxismo." Como é possível dizer uma coisa destas? Em primeiro lugar, porque o materialismo dialéctico e o marxismo não passam de metafísica, de uma dada metafísica materialista, mas ainda e só metafísica. Em segundo lugar e mais importante, porque, tendo em conta aquilo que li de Saramago, só a metafísica o parecia interessar.

Mesmo a blasfémia, se é que Saramago era um autor blasfemo, é um louvor a Deus. Mas a recorrência da temática religiosa nas suas obras, mesmo que sejam pequenas notas de raspão, é um confronto de uma subjectividade com o terrível silêncio de Deus. Em Saramago havia uma pulsão de neo-converso ao contrário. Era como se o escritor fosse uma espécie de Paulo de Tarso, mas aspirasse ser um João Evangelista ou, de outra forma, um daqueles monges do deserto que fazem a história inicial da mística cristã. Perante a impossibilidade, ele assumia-se então como um S. Paulo ainda quando tomava o nome de Saulo.

A obra e a personalidade do escritor são o exemplo de uma luta metafísica, uma luta trágica, e deveriam merecer uma atenção redobrada, em vez da lamentável nota de L'Osservatore Romano. Saramago é um exemplo de como a crença na subjectividade própria impede de escutar Aquele que fala no silêncio e na pobreza do deserto. A ânsia de encontrar Deus, de o fazer manifestar-se, e a ânsia de salvar o ego tolheram em Saramago o caminho, transformaram-no numa luta titânica desvairada e fecharam-no dentro de si e no mundo, sempre um pequeno mundo, por amplo que seja. Há aqui mais do que um simples negador, há aqui um exemplo do destino do Ocidente. E não apenas daqueles que não conseguem silenciar-se, não conseguem silenciar a ânsia e o desejo que povoa o ego empírico, para que possam escutar Quem fala, mas também um exemplo de como aqueles que detêm o depósito da palavra já não a percebem ou não conseguem dá-la a perceber.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Da humilhação

Ter a obrigação de fazer uma coisa absolutamente estúpida é uma prova para a nossa humildade. Pensamos que aquilo que em nós resiste é a nossa inteligência, a razão que acompanha os nossos pontos de vista. Tudo isso é reconfortante para o nosso pequeno ego, mas a verdade é outra. O que resiste em nós é o orgulho, o ego próprio inflacionado perante a estupidez do ego que nos superintende. O que fala em nós nessa resistência é a falta de humildade. É humilhante ter de fazer coisas estúpidas só porque outros, que têm poder para tal, no-lo impõem. Mas essa é uma oportunidade para nos desprendermos de nós mesmos, para nos desligarmos das nossas considerações sobre a natureza superior da nossa pequena máscara e aceitar aquilo que Ele nos envia.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Eu não sou eu

Eu não sou eu. Terrível infracção do princípio de contradição. É por aqui que talvez comece o caminho. Ilógico caminho, dir-se-á. Sim, é ilógico o caminho que vai do eu que eu não sou para aquele que, não o sabendo, sou-o. Talvez toda a lógica, essa obra assente na tautologia da identidade e na exclusão da contradição, tenha por finalidade assegurar que esse eu que não sou pareça ter uma existência própria, e possua uma realidade efectiva. Mas a via verdadeira deverá começar pela contradição, pela negação de si, pela experiência de que não sou o eu que estou convicto ser. Não preciso de me afirmar nem de me confirmar. A única coisa que preciso é de desconfirmação. O medo, porém, dessa desconfirmação do meu eu é tanto que logo me agarro a ele e o exibo aos olhos dos outros para que eles o confirmem perante mim. Eu não sou eu, eis o terrível portal que temo passar. Para lá dessa limiar espera-me a escuridão ou a luz mais intensa.