quarta-feira, 31 de março de 2021

A Sarça Ardente - 76

Helena Almeida, sem título, 1972
O ténue tremer do mundo
suspende-se na pétala
de uma rosa,
na sombra da casa
onde o dia nasceu.

Como sibilas, as palavras
chegam cheias
de insinuações
e logo se desfazem
em sílabas trementes de sal.

Março de 2021

terça-feira, 30 de março de 2021

Meditação Breve (154) Tempos modernos

Jeffrey Smart, Autobahn in the Black Forest I, 1979-80

A modernidade é uma imensa cicatriz no mundo. Começou como uma ferida, com o tempo cicatrizou, mas nunca se apagou o rasgão na Terra. Mesmo onde o arcaico e o enigmático persistem, os tempos modernos chegam, rasgando os tecidos, impondo a rasura do que é claro e distinto ao que, por natureza, só pode ser obscuro e sombrio.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Impressões 78. Do poente à aurora

Falcão Trigoso, Poente Algarvio, 1913

A espuma do dia dissolve-se na luz do poente. Depois, chegará o pântano do crepúsculo, feito de ardis e equívocos. Por fim, será a hora da noite, onde tudo o que existiu durante o dia se dissolve no nada e espera a vinda da aurora, com as sua promessas de luz eterna, para que ganhe contornos e regresse à ao mar azul da vida.

domingo, 28 de março de 2021

O pelicano

René Burri, Le Pelican de Mykonos, Greece, 1957

Todos as manhãs o homem percorria o cais. Não tinha qualquer traço que o diferenciasse dos outros habitantes da ilha. Nunca esquecia o boné e a flauta. Misturava melodias tradicionais, algumas muito antigas, com improvisações, pois o tempo e o treino deram-lhe um domínio perfeito do instrumento. Era sempre acompanhado por um enorme pelicano. Este surgia quando ele tocava certa composição religiosa inspirada no sacrifício de Cristo. Às primeiras notas, a ave vinha do nada e acompanhava o tocador de flauta até se dissolverem no horizonte. Um dia, curioso, abordei o músico e perguntei-lhe de quem era aquele pelicano. Respondeu-me de modo estranho. O pelicano é aquele que é, e aquele que é não pertence a ninguém. 

sábado, 27 de março de 2021

O sal do silêncio (57)

Dordio Gomes, Casas de Malakoff - Paris, 1923

Imagina-se, ao arrepio da realidade, uma cidade silenciosa. Caminha-se por ela sem destino certo. Quando se chega ao fim de uma rua, esta logo se bifurca. Então, o espírito é obrigado a tomar uma decisão. Quanto mais se caminha, mais decisões têm de ser tomadas, pois o silêncio da cidade não é senão um caminho onde a realidade continuamente se bifurca.

sexta-feira, 26 de março de 2021

A Sarça Ardente - 75

Jaime Burguillos, Ocaso, 1976
Oiço a sarça ao arder
e abrigo-me
no rumor do incêndio.

O sangue sussurra
na errância,
vinho ávido de vida.

Parado, sigo pela rua,
espera-me
a luz do equinócio.

Março de 2021

quinta-feira, 25 de março de 2021

Meditação Breve (153) Pontes

Louis-Mathieu Verdilhan, Pièces d´eau à Mazargues

Uma ponte liga, por norma, dois pontos pertencentes ao elemento terra que a intromissão do elemento água separou. As pontes mostram o estabelecimento de uma comunhão entre aquilo que o tempo e a natureza tornou diferente. Ligar duas margens não é apenas traçar um caminho transitável. É tornar próximo o que estava afastado. Mostram, porém, uma outra coisa mais decisiva, o homem como pontífice, como construtor de pontes. Cada um traz em si o poder de aproximar o que está afastado. 

quarta-feira, 24 de março de 2021

Arqueologias do espírito 23

Yasuo Kuniyoshi, Refugees, 1939

Uma das experiências espirituais mais arcaicas será a do refúgio. Como muitas outras, também esta começou na concretude do corpo. O perigo que sobre ele descia fez com que a humanidade aprendesse a refugiar-se, a circunscrever-se num espaço de tranquilidade. A repetição da experiência levou-a não apenas a procurar o lar num locus amoenus, onde o espírito se poderia desenvolver, mas ainda a fazer da vida espiritual o autêntico refúgio. Todo aquele que a ela se entrega é um refugiado. Foge de um locus horrendus e procura a vida autêntica nessa abertura do espírito para além do mundo. 

terça-feira, 23 de março de 2021

Haikai do Viandante (408)

Henri Edmond Delacroix Cross, Sunset on the Lagoon, 1903-4

Águas da lagoa,
sombreiam crepusculares.
Margens do luar.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Impressões 77. Dos objectos mecânicos

Martien Coppens, Textile Machine, 1950s

Há perante tudo o que é mecânico um duplo sentimento. Em primeiro lugar, espanto pelo poder da engenharia, pela precisão da técnica, pela perfeição do movimento, pela geometria com que os artefactos se dão a ver. Depois, a decepção da sua frieza e, mais do que tudo, pela obsolescência que logo se manifesta em qualquer mecanismo.

domingo, 21 de março de 2021

A Sarça Ardente - 74

Salvador Dali, Musa de Cadaqués, 1921
O dardo do dia
trespassa
o coração incauto.

Abre-lhe uma ferida
de água
no crepúsculo da carne.

Um relâmpago arde
no cetim do céu
no repouso das horas.

Como uma seta
o dia voa
na luz dos teus olhos.

Março de 2021

sábado, 20 de março de 2021

O sal do silêncio (56)

André Kertész, Rue Du Cuédic, Le Havre, France, 1948
Entrou dentro da casa do silêncio, sentou-se à janela, pegou no livre de orações e, enquanto o dia deslizava para as trevas da noite, os seus olhos contemplaram, nas palavras tão conhecidas, os mistérios que, no seu enigma inviolável, se furtarão eternamente à astúcia e ao ardil da razão.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Haikai do Viandante (407)

Walter Leistikow, Lake Grunewald, 1898

O que permanece
no lago de Grunewald,
velado se tece.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Meditação Breve (152) Frivolidade

Janine Niepce, Buffet au champagne, Paris, 1963

Um exercício de frivolidade, não porque seja fútil beber champagne ou leviana a vida social, mas porque se representa que se bebe champanhe e se está num acontecimento social. Toda a frivolidade nasce de um movimento em que o self recua temeroso e se duplica através do uso do corpo como uma máscara protectora.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Arqueologias do espírito 22

Kerekes Gábor, Apple, 1991
Dádiva espontânea da natureza, os frutos ter-se-ão inscrito tão fundo no espírito dos homens, que estes não hesitaram em fazer de um deles o símbolo da sua expulsão do paraíso e da queda na vida mundana. De certa maneira, a maçã arrastou os homens na sua viagem para terra. Retirou-os dessa existência fora do espaço e do tempo e fê-los aterrar num corpo sujeito à duração. Da contemplação da viagem da maçã desde os ramos incessíveis até à terra dura, o espírito descobriu um modo para explicar porque se encontro presa na cela do corpo e na caverna do mundo.

terça-feira, 16 de março de 2021

A Sarça Ardente - 73

Aristide Maillol, Dans l'esprit d'une fresque, 1930
O vinho fremente da tua boca
brilha na escuridão
do firmamento.

Bebo-o no copo escuro do corpo,
e fulguro na ferida
a arder no incêndio da fonte.

Março de 2021 

segunda-feira, 15 de março de 2021

Impressões 76. No claustro

Charles Clifford, Cloisters of the Church of Saint John of the Kings, Toledo, Spain, 1858
Sentado no claustro, um homem contempla a estatuária presa nas paredes, mas não são as figuras de pedra aquilo que vê, nem o domínio artístico dos autores, nem a passagem do tempo, que também lá se encontra. Procura ali a desmedida que há entre o seu olhar e o infinito que se esconde nessa prisão que todo o claustro é.

domingo, 14 de março de 2021

Pintura e haikus (24)

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1955
 Falésias de mármore
debruçam-se sobre o mar.
A luz do calcário.

sábado, 13 de março de 2021

Diálogos morais 59. Ateísmo

Josef Breitenbach, Dr. Riegler and J. Greno, Munich, 1933
- Meu Deus, como está desejável.
- Não estará a invocar o santo nome de Deus em vão?
- O meu desejo, espero-o, não será em vão.
- Além disso não estou desejável, apenas estou despida.
- Isso confirma que o meu desejo não será vão.
- Já vi que é um crente no seu desejo.
- Sim, sou-lhe muito devoto.
- Eu, pelo contrário, sou profundamente ateia.

sexta-feira, 12 de março de 2021

O sal do silêncio (55)

Rockwell Kent, Admiralty Inlet, 1922

Esse silêncio que nasce do despojamento da paisagem desaba perante o olhar. O coração suspende-se e espera que a luz se desfaça das sombras, para que tudo reverbere nas sílabas mudas de cada palavra que a boca se esquiva a proferir.
 

quinta-feira, 11 de março de 2021

A Sarça Ardente - 72

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1995
O jardim no incêndio
da tarde
abre-se em aromas
de vento e água,
deixa fugir
as primeiras notas.

Uma melodia levita
na sombra
de um céu azul
sobre o sal
das dunas e o canto
agreste das gaivotas.

Março de 2021

quarta-feira, 10 de março de 2021

Arqueologias do espírito 21

Ferdinand Hodler, Los Alpes de Vaud vistos desde los Rochers-de-Naye, 1917

Nunca saberemos o estremecimento que percorreu o corpo do primeiro homem que viu as montanhas nascidas da terra elevarem-se e fundirem-se nos céus. Essa ignorância, porém, é compensada pelas reverberações sem fim desse acontecimento. Como uma pedra que cai nas águas imóveis de um lago e provoca uma ondulação que parece não acabar, também esse primeiro avistamento não deixou de criar ondas que se vão alargando, envolvendo cada novo tempo e fazendo com que os homens continuem a estremecer ao verem as mais sagradas núpcias, as que unem Céu e Terra.

terça-feira, 9 de março de 2021

Micronarrativa (51) A mulher bifronte

Gjon Mili, Double exposure of models wearing hat with heavy face veil, 1946
Como Janus, o deus bifronte, também ela tem dupla face. Uma virada para trás e outra para a frente. Olha compungida para o passado, mas não se atreve a descerrar os olhos que lhe diriam o futuro. A vergonha do que foi é menor do que o terror de chegar ao que será sem a inocência da novidade.
 

segunda-feira, 8 de março de 2021

Impressões 75. Na floresta

Brett Weston, Beech Forest, Holland, 1971

Entra-se na floresta e escuta-se o canto das folhas secas ao ranger sob o peso do corpo. Depois, ao parar, ouve-se o silêncio chegar. Ele vem lentamente, arrastado por um vento suave, e poisa sobre os ramos das faias. É um silêncio leve. Por vezes, pássaros cantam, mas o silêncio permanece. O corpo desliza e encontra nas folhas amontoadas a melhor das camas. Adormece sob o som do silêncio.

domingo, 7 de março de 2021

O sal do silêncio (54)

Sarah Moon, Yohji Yamamoto pour Elle, 1996
O silêncio é um exercício delicado, um equilíbrio entre o negro lutuoso e o esplendor de luz que nele se oculta. Basta que um grão de areia desequilibre os pratos da balança e um ruído sem fim desaba sobre o silêncio ritual onde o mundo se protege do ogre arcaico do caos. 

sábado, 6 de março de 2021

A Sarça Ardente - 71

Jan Vermeer de Delft, La mujer del collar de perlas, 1664
Conto as pérolas no colar
feito de frio e fogo,
deixo ecoar
na sombra do coração
o incenso do Inverno.

Uma cintilação toca-te
os dedos e a luz
vinda das estrelas
reverbera no rumor
das pérolas do teu nome.

Fevereiro de 2021

 

sexta-feira, 5 de março de 2021

Meditação Breve (151) Realidade desfocada

Frederick Sommer, Untitled (Nude out of focus), 1962
Quando a realidade surge desfocada, há a tendência para ver nesse acontecimento um problema óptico, um desconcerto da visão ou dos aparelhos técnicos que a prolongam. Nunca se pensa na natureza penumbrosa dessa mesma realidade que, por vezes, se mostra na sua verdade mais pura. Indefinição sem fim, esboço nublado, caminho perdido entre o ser e o nada.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Metamorfose

Herb Ritts, Versace Veiled Dress, El Mirage, 1990
Seria ingénuo pensar que era um anjo o que de súbito aterrou naquele terreno que mais parecia um deserto. Também especulações sobre seres vindos de outros sistemas solares não passam de fantasias de mentes débeis e delirantes. Quem lá estava, e eu estava, viu muito bem o que se passou. Uma enorme ave poisou em silêncio. Ergueu as asas, como se se espreguiçasse, e, de súbito, vimos que elas se transformavam num véu negro, que, apesar da transparência, ocultava já não um pássaro, mas uma mulher. Belíssima. Era terrível o seu olhar. Desfez-se do véu e caminhou, sem hesitação, para nós. Sentimos um calafrio e começámos a recuar, até que fugimos em desespero. Nunca soube quem ela era ou o que queria. Ainda hoje tremo ao pensar no que vi. 

quarta-feira, 3 de março de 2021

Micronarrativa (50) Uma história amarela

Francis Picabia, L'arbre jaune, 1909

Uma árvore amarela cresce de um chão amarelo para um céu a amarelecer. Por ela passam viajantes perdidos na cor da sua viagem. Sentam-se sob a copa da árvore e meditam longamente sobre as cores deste mundo. Enquanto se concentram no objecto da sua meditação, o amarelo vai-se definindo como a cor com que hão-de viajar. Chamam um táxi. Ele chega preso à cor amarela. Para a grande cidade amarela, dizem, se o taxista lhes pergunta pelo destino.

terça-feira, 2 de março de 2021

Arqueologias do espírito 20

Lee Miller, The veiled Eiffel Tower, Winter 1944-45
Neblina, névoa, nevoeiro, nebuloso, nuvem. A sequência de aliterações permite descer ao fundo da gruta. Ali a consciência guarda os arquétipos com que abre o espaço para que o significado assombroso das coisas se manifeste. Muito mais funda do que a consciência clara está a zona da penumbra. Se visitada em sonhos ou numa vigília absorta, descobre-se o caminho para o mistério. Então, os passos afundam-se na neve fria e o viajante vai afastando as mil cortinas que estão no fundo de si. A neblina, a névoa, o nevoeiro, o nebuloso, a nuvem e descobre-se na clareira aberta do enigma.

segunda-feira, 1 de março de 2021

A Sarça Ardente - 70

Ruy Leitão, sem título
Dessa poeira que sou
guardo um resto
em saco de sisal.

Vigio-a como se vigia
um tesouro
ou a costa ameaçada

por inimigo irascível.
Nos dias luminosos
oculto-a esquecido

da ondulação dos céus
onde Deus sorri
na sombra do silêncio.

Fevereiro de 2021