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domingo, 17 de novembro de 2013

A libertação do destino

Raquel Forner - Destinos (1939)

Se o viandante se põe a caminho não é para cumprir um destino ou para certificar a inexorabilidade de um fado. Não, o pôr-se a caminho do viandante visa enfrentar o destino e dissolver a fatalidade. A vida espiritual é a aprendizagem íntima de ser livre, a conquista da liberdade. Não da mera liberdade social, mas da liberdade que nasce da emancipação da fria e cruel necessidade, que nasce da libertação de todos os fados e de todos os destinos.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Idolatria e emancipação

Odilon Redon - O Ídolo (1886)

Um dos elementos centrais do Antigo Testamento é o combate contra a idolatria. O Deus de Israel, na sua invisibilidade e irrepresentabilidade, exigia um esforço intelectual e um mergulho na fé, para os quais a população, muitas vezes, se mostrava incapaz. A visibilidade do ídolo e a apreensão intuitiva de uma figura tornavam, na economia da praxis religiosa, a idolatria mais acessível ao homem comum. Impossível de figurar e com uma elevada exigência moral, o Deus de Israel surgia ao povo eleito como qualquer coisa contra-intuitiva, quase como uma monstrusidade abstracta.

Afastados há muito da velha discussão entre os defensores da adoração de ídolos ou dos adoradores do Deus verdadeiro, não damos conta de que a idolatria está sempre pronta a renascer. Hoje não surge no campo religioso mas na vida profana, tornando-a, muitas vezes, ritualística e religiosa. As técnicas de marketing e de comunicação acabam por criar condições para que a nossa relação com os objectos, as pessoas e connosco se torne idolátrica. Não interessa saber quanto tempo dura o culto de um certo ídolo (por exemplo, do iPad ou do iPhone, do Cristiano Ronaldo, etc.), pois a morte de um ídolo significa apenas a sua substituição. 

A relação idolátrica - a fetichização de partes da realidade - é um dos processos mais eficazes de alienação contemporânea. Alienação no sentido exacto em que nos tornamos estranhos a nós próprios. É deste estranhamento a si mesmo que nascem outras alienações, nomeadamente as sociais, onde o indivíduo, seduzido pelo culto idolátrico, é incapaz de perceber as relações reais em que vive e olhar, fria e objectivamente, para o seu lugar na sociedade. Mas, é preciso sublinhar com veemência, a fonte de todas as alienações está no estranhamento relativamente à nossa dimensão espiritual, à negação do espírito, ao esquecimento que não somo apenas pura materialidade. Toda a emancipação espiritual é uma luta contra a idolatria, seja qual for a forma que ela tome, pois esta é a grande cilada onde o espírito incauto sucumbe.

domingo, 5 de maio de 2013

Um espaço para a liberdade

Giorgio de Chirico - El enigma de la fatalidad (1914)

O determinismo - crença de que tudo o que acontece se regula por uma causalidade necessária - é uma espécie de secularização do fatalismo metafísico. Uma providência inescrutável determina a priori a ordem do mundo e o destino de cada um. Muito curiosamente, não foi a ciência moderna que libertou os homens da pesada mão da fatalidade mas as religiões, na sua dimensão de experiência espiritual. A liberdade foi uma criação do espírito religioso - e de forma absolutamente acentuada do espírito do cristianismo - que abriu uma brecha entre a fatalidade metafísica e o determinismo secular, lembrando aos homens que são feitos para a liberdade, fornecendo-lhes mesmo métodos de emancipação e de libertação da subjugação à pura necessidade. Na verdade, aquilo que está em causa nas religiões - apesar de tantas vezes obscurecido - é esta possibilidade de ser livre, é esta proposta de emancipação da fatalidade do mundo.

quarta-feira, 13 de março de 2013

A dinâmica do compromisso

Maria Helena Vieira Da Silva - Liberdade  (1973)

Naquela tempo, disse Jesus aos judeus: «Meu Pai trabalha intensamente, e Eu também trabalho em todo o tempo.» Perante isto, mais vontade tinham os judeus de o matar, pois não só anulava o Sábado, mas até chamava a Deus seu próprio Pai, fazendo-se assim igual a Deus. Jesus tomou, pois, a palavra e começou a dizer-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: o Filho, por si mesmo, não pode fazer nada, senão o que vir fazer ao Pai, pois aquilo que este faz também o faz igualmente o Filho. De facto, o Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo o que Ele mesmo faz; e há-de mostrar-lhe obras maiores do que estas, de modo que ficareis assombrados. Pois, assim como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho faz viver aqueles que quer. O Pai, aliás, não julga ninguém, mas entregou ao Filho todo o julgamento, para que todos honrem o Filho como honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou. Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não é sujeito a julgamento, mas passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo: chega a hora e é já em que os mortos hão-de ouvir a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão, pois, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também deu ao Filho o poder de ter a vida em si mesmo; e deu-lhe o poder de fazer o julgamento, porque Ele é Filho do Homem. Não vos assombreis com isto: é chegada a hora em que todos os que estão nos túmulos hão-de ouvir a sua voz, e sairão: os que tiverem praticado o bem, para uma ressurreição de vida; e os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de condenação. Por mim mesmo, Eu não posso fazer nada: conforme ouço, assim é que julgo; e o meu julgamento é justo, porque não busco a minha vontade, mas a daquele que me enviou.» (João 5,17-30) [Comentário de Agostinho de Hipona aqui]

Duas portas para entrar no texto de João, o trabalho e a palavra. O trabalho do Pai e do Filho remete para uma ideia de dinâmica e de produção de obras. Isto permite perceber uma concepção do divino muito diferente de outras tradições onde Deus é pensado como estando afastado dos homens. A ideia aristotélica de Deus como motor imóvel é aqui superada pela ideia de trabalho mas também de compromisso que se exprime no vocábulo grego εργάζεται (ver aqui). O Pai trabalha continuamente e compromete-se também continuamente. Há assim uma dinâmica do compromisso, a qual constitui o modelo para o próprio Filho.

Este operar contínuo e este compromisso manifestam-se na palavra. O apelo que é feito aos homens é que escutem a palavra que lhes fala da dinâmica do compromisso de Deus para com eles. Se esta dinâmica não tem sábado, a que lhe deveria responder, por parte dos homens, também não. A disciplina da escuta não distingue o dia santo dos outros dias, pois todos os dias são santos, já que em todos eles a dinâmica do compromisso se efectiva.

É esta efectiva operatividade, mediada pela palavra, que não só cura os paralíticos como ressuscita os mortos, aqueles que estão encerrados no túmulo. O morto é apenas uma intensificação do estado de alienação simbolizado pelo paralítico do texto de ontem. Se se considerar a tradição platónica, o corpo é visto como o túmulo onde está encerrada a alma, onde ela se encontra alienada. Mas esta tradição materializa demasiado essa ideia de alienação. Mais do que o corpo, o túmulo é as múltiplas formas como a alma se perde na errância, na distracção, naquilo que a prende ao que é transitório. O dinamismo operatório do Pai, imitado pela acção do Filho e anunciado pela Sua palavra, é o caminho de libertação e emancipação dessa escravatura imposto pelo prazer do efémero. O compromisso do Pai é o da libertação e emancipação dos filhos.