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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Câmara discreta (24)

Dorothea Lange, Woman’s foot, Vietnam, 1958

O pé flectido contra a dureza do chão, os dedos abertos ao ar do dia, o calcanhar escondido sob uma veste comprida. Discreta, a câmara oculta-nos o rosto, a dor inscrita nas rugas da face, o desespero a cintilar nos olhos, a raiva a dançar nos lábios cerrados. Tudo isso, porém, é-nos devolvido nas metáforas instituídas por aquele pé desnudado, como se cada parte de um corpo reflectisse não apenas a sua totalidade, mas também aquilo que habita no segredo da alma e no vendaval do espírito.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Câmara discreta (23)

Alfred Eisenstaedt, Couple in Penn Station sharing farewell embrace before he ships off to war during WWII, 1943

É grande o vocabulário das despedidas e complexa a sua gramática, gerida por uma sintaxe despótica, que, com a autoridade das suas regras, impõe um código onde os sentimentos se articulam na nuvem do afastamento. Nunca se sabe se naquela despedida se celebra uma separação ou a derrelicção definitiva. Esquecidos do cenário, aqueles que se despedem apenas têm no coração um horizonte temporal. Quanto tempo? Quantos dias, semanas, meses, faltam para o retorno? O coração bate fremente e o pudor do abandono esconde a face, para que o futuro não tenha a prova desse dor trazida por um presente sombrio que logo será engolido pelo magma do passado.

domingo, 4 de agosto de 2024

Câmara discreta (22)

W. Eugene Smith, Steelworker, 1955

A câmara mostra a máscara negra que cobre o rosto daquele que trabalha o ferro, como se o operar sobre a matéria fosse um segredo que exigisse o velamento do operador, o mago que gera metamorfoses no mundo, o torna outro, abrindo caminhos insuspeitos, cheios de promessas, plenos de perigos. A face de quem tem tais poderes deve estar velada, para que o segredo que a habita não resplandeça nela e contamine quem a olhar, enchendo os incautos de pavores inúteis e de esperanças vãs.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Câmara discreta (21)

Charles Clifford, The Armor of Philip III, 1866

Ali estava Filipe III, reduzido ao que era, um nada moldado na memória de uma armadura que jamais conterá o seu corpo, para o proteger do ímpeto dos inimigos ou do ódio dos amigos. A câmara, devido ao desacerto entre o tempo de Filipe III e o do disparo fotográfico, esquivou-se a mostrar o rei, a roubar-lhe do corpo a imagem, para a tornar pública, para a oferecer ao gáudio sem piedade dos espectadores. Deu-nos uma máscara e um lugar vazio, como se um rei fosse um mistério para sempre indecifrável.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Câmara discreta (20)

Ed van der Elsken, Self-portrait with Ata Kandó, 1953

Surpreender-se a si mesmo, deixar-se apanhar pela câmara que está nas próprias mãos, olhar-se no momento em que se observava. Depois, deixar vir uma longa e lenta interrogação. Quem é aquele que vejo? Assim começa uma exercício de demorada violência, um caminho em que a faca afiada da dúvida corta o pano frágil da certeza. Uma coisa é a identidade recebida na passividade da existência, uma outra é a identidade conquistada através do duro combate iniciado pela inocente pergunta quem sou eu?

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Câmara discreta (19)

Eugene Robert Richee, Marlene Dietrich, 1931

Os sonhos tinham-se esgotado, restava uma memória antiga, o cilício do passado e a cintilação abscôndita do olhar, onde o ódio e a raiva dançavam no vertiginoso ritmo da sagração da Primavera. O tumulto do coração e a revolta do corpo eram como um poema longamente decantado de boca para boca. Quando o vento suspendeu a sua viagem sem fim, uma sombra ofereceu-se à benevolência da câmara, para que o arquipélago da dor encontrasse um porto para ancorar.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Câmara discreta (18)

Constantine Manos, Moscow Airport, Russia, USSR, 1965

Tudo o que se vê na gélida assepsia das instalações fala de abandono. Não de uma mera partida para chegar a casa ou para ir longe e voltar, mas do desamparo de uma deserção daquele exército que se esconde na geometria do espaço, na rude frugalidade com que a vida, naquele lugar, se deixa ver. O que a circunspecção da câmara não mostra é o caudal da solidão que corre por dentro do corpo, é o borbulhar da dor no silêncio da espera.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Câmara discreta (17)

Hans Baumgartner, Primarschule im Hinterthurgau, 1947

Não é nos livros que se encontram os sonhos, pensa a aluna distraída perante a cena que, diante dela, alguém representa, para que o saber entre, talvez pelo coração, naquelas mentes demasiado ágeis. Um outro mundo mais vivo e mais real cintila dentro dos olhos, iluminando-os nessa fuga dos imperativos trazidos pela condição de estudante. Não é uma fuga para a ignorância, mas uma luta entre duas formas de sabedoria.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Câmara discreta (16)

Ernst Haas, Santa Fe, New Mexico, 1952

Discreta, a câmara oculta as pessoas perdidas naquela vida, não lhes mostra a face, o corpo, o modo de ser que sempre se surpreende no olhar ou num trejeito dos lábios. Exibe, porém, os artefactos com que a vida se tece, os objectos dos pobres prazeres ou os que superintendem na fadiga. Cobre com a sua sombra de luz, a nudez de existências que se imaginam, mas não se vêem.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Câmara discreta (15)

George Platt Lynes, Fashion Photograph for Lord and Taylor, 1940
O rosto velado para que a câmara não se torne, na sua inocência culpada, indiscreta, pois tudo o que a alma esconde, a face torna manifesto. O corpo coberto para que os olhos apenas o adivinhem, pois não há visão mais aguda do que aquela que nasce do vaticínio. As mãos erguidas para que testemunhem a rendição ao momento em que a existência fugaz toca o limiar da eternidade, pois não há encontro mais perigoso do que aquele que reúne o ser efémero e a luz perpétua. 

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Câmara discreta (14)

Edouard Boubat, Ile Saint-Louis, Paris, 1975

Sem reprovação, a velha freira afasta o olhar para lugar indeterminado, enquanto o jovem leitor mergulha na trama narrativa de um romance. O amor dos outros é coisa que os deixa indiferentes. Só a câmara se entrega à contemplação do beijo indiscreto, para o fixar e, ao fazê-lo entrar na pequena eternidade humana, torná-lo na discreta memória de um amor de ocasião.

domingo, 17 de julho de 2022

Câmara discreta (13)

Felix Muhr, Weiblicher Akt, 1907

Ensimesmada, a mulher funde-se na secreta natureza que, vinda do fundo dos tempos e do início do cosmos, chega até ela, para a acolher em seus braços, sob a forma de floresta. Sombras, árvores, folhas mortas e folhas vivas, são modos de a natureza se despir para acolher a nudez silenciosa daquela que, para se dar ao olhar, se esqueceu de si, cobrindo-se com o rumor do vento e o canto dos pássaros.

sábado, 9 de julho de 2022

Câmara discreta (12)

Peter Turnley, L'Ile de la Cité, Paris, 1982

Dois destinos cruzam-se, mas nem as suas sombras se tocam. Cada um segue ensimesmado, perdido do outro, levado pelo desejo de chegar ao lado de lá, sem reparar que ali mesmo poderia encontrar um grande amor, o sentido último das suas vidas. Discreta, a câmara mostra esse momento em que esse futuro possível se fecha definitivamente. Quem ali passa nunca mais se tornará a cruzar. A vida não é outra coisa senão a ignorância daquilo que esteve mesmo à mão e se perdeu.

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Câmara discreta (11)

Max May, Kalter Rauhreiftag, 1908

Nesses dias em que o frio desce sobre a vida rude e envolve os corações com a névoa da melancolia, as pessoas saem do abrigo das suas casas e deixam-se surpreender no calor de uma conversa. Falam com palavras simples, quase rasas, sobre o tempo, sobre aquilo que as atormenta, sobre a esperança da chegada da Primavera. Na paisagem gélida do Inverno, as palavras são um fogo que se ergue para os céus, o símbolo de um sonho, o sinal de que a vida se erguerá sobre os escombros de cada morte.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Câmara discreta (10)

Constant Puyo, Chant Sacré, 1899

A combustão interior da alma, o desejo em forma de canto eleva-se acima da condição terrestre e paira suspenso entre as esferas celestes. São palavras que já não são palavras, mas o murmúrio dos pássaros ou dos anjos, o lento fluir do vento na folhagem das árvores. As faces velam-se para protegerem quem para elas olha. A luz intensa vindo do fundo do ser anima-as, é uma prova de vida e um perigo de morte. A cada instante, trazido pela fluida aguarela das vozes, sente-se o halo divino, uma presença tecida no nada das coisas materiais, uma promessa nascida do fogo das vozes que cantam.

sábado, 30 de abril de 2022

Câmara discreta (9)

Paul Strand, Blind, 1916
A câmara encontra o silêncio do olhar e transporta-o para dentro da eternidade das coisas passageiras. A mulher pensará na classificação que lhe atribuem, sem sentir o peso da chapa de registo, pura obediência à voracidade estatística com que os estados alimentam o seu desejo de conhecimento, dinâmica resignação à sorte que a vida sobre ela derramou. Num outro tempo, pensaria apenas que a deusa Fortuna lhe achara um defeito, talvez uma revolta, de que a cegueira seria a punição. Agora, perante o silêncio que a habita, espera que a misericórdia divina reverbere nos gestos da indulgência humana.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Câmara discreta (8)

Bill Brandt, Brynhild Parker, painting a nude model, 1939

O olhar desce do corpo exposto ao corpo desenhado, sem se aperceber que em toda a exposição existe uma linguagem de abandono, o sinal de um esquecimento, o sintoma de uma traição. O esboço a que os dedos se entregam, com a destreza digital de uma errância calculada, é o resultado de uma mão treinada no uso do punhal, na dissecação da carne, na húmida certeza de uma vitória sobre o que, tão desamparado, se abre à lentidão com que os olhos transferem a forma encarnada para a frieza da figura exposta na brancura do papel.

domingo, 27 de março de 2022

Câmara discreta (7)

Frank Eugene Smith,  Slumbering maidens, c1900

Discreta, a câmara foca as raparigas, apanha-as adormecidas, exaustas, cansadas de dançar, ou de um jogo de sociedade, ou das inúmeras confidências que têm sempre de partilhar entre si. Terão falado das expectativas, do alvoroço do amor, o que a vida lhes há-de trazer. Agora dormem, amparadas umas nas outras. O fotógrafo esconde-lhes os sonhos, os delicados segredos que, ao dormir, atormentam a consciência, imagens, imprecisas e insidiosas, vindas do fundo dos corpos, do princípio dos tempos.

sábado, 19 de março de 2022

Câmara discreta (6)

Guido Rey, A Quiet Corner, c. 1900

Olhamos e compreendemos de imediato que também o tempo se pode suspender, afastar de si a ânsia que o faz correr para se despenhar no fundo abismo do futuro. A contemplação do gesto com que as mãos bordam a brancura do pano, os movimentos do corpo que acompanham o cumprimento da tarefa, o olhar cuidadoso que se retira do mundo para a peça que se tem nas mãos, tudo isso está já fora do barco da temporalidade, ou, para ser mais preciso, ainda não caiu da eternidade no rumorejo do tempo, que, por longos instantes, se encontrará suspenso.

sábado, 5 de março de 2022

Câmara discreta (5)

Roberto Rive, House of Marco Olconio, Pompeii 1860s

Observamos um passado do passado. As ruínas são uma recomposição daquilo que não pode ser recomposto. Olhamo-las e sentimos de imediato a verdade ausente daquilo que se vê. O que está presente é uma encenação para que os olhos humanos ou as câmaras fotográficas, um seu prolongamento, possam fornecer um sucedâneo material de vida para a imaginação se entregar à doce rêverie do entardecer.