São horas de
almoço e o mar baloiça
na minha
ausência de fome,
pequenas
ondas murmuram na areia,
o vento
soprado pelo voo das gaivotas.
Penso no
livro das mutações,
não nesse
que alimenta comércio e ilusão
mas naquele
que vi num cemitério
e tinha o
nome dos mortos escrito a negro,
um rol sem
fim de estéreis surpresas
e súbitas
mudanças no estado civil.
Às vezes
penso nas torres do castelo,
lugares
inóspitos de segredos inconfessáveis,
motivo para
erguer o pano da muralha,
o velho
exercício de traçar fronteiras,
distinguir
os de fora e os de dentro,
aqueles a
quem amamos e por quem morremos
e os que
merecem o ódio e a ruína.
Abrimos a
boca no espanto da arquitectura
e não
sabemos a vileza do nosso coração,
a pedra de
fogo a rugir na história.
Conto as
marés, as altas e as baixas,
conto os
barcos que se avistam da fortaleza,
conto os
dias que passam sem consolo.
As crianças
coleccionam seixos e conchas
e cavam
buracos na areia, breves oceanos
perante a
desmesura do grande mar,
a esperança
de um mundo à sua medida.
A
configuração da praia muda todos os anos,
pensei,
enquanto as vagas desfaziam rochas,
súbitas
mutações no livro da memória.
Posso perguntar se todos os dias escreve um poema? E se os que publica aqui são escritos no próprio dia?
ResponderEliminarPode perguntar. A produção é cíclica. Agora, praticamente escrevo um por dia e publico-o no blogue. Mas chegará a altura da seca e aí não escreverei nada, pode-se prolongar por meses ou anos.
ResponderEliminarNeste caso, sinto que o ciclo ainda se vai prolongar, mas não sei por quanto tempo. Aquilo que publico em blogue não tem, praticamente, revisão. São ensaios de poemas, digamos assim. Depois, começo a trabalhá-los, embora isso já não salte para o blogue. Por norma, são cortes de palavras, substituições, etc. Trabalho oficinal.
Acho extraordinário.
ResponderEliminarComo sabe, gosto muito de poesia e acho que tenho uma razoável biblioteca de poesia (portuguesa, sobretudo). Mas não sou capaz de escrever uma linha que seja sobre um poema. E quando digo que não sou capaz não quero dizer que não o queira fazer mas, sim, que, de facto, não consigo fazê-lo.
Gosto de ler sobre poesia mas não sobre técnicas usadas na poesia. Coisas como aquelas do encavalgamento não conseguem interessar-me (para além de me suscitarem a dúvida sobre se é uma coisa usada deliberadamente ou se acontece sem querer - questão também, acho eu, irrelevante). Mas admito que isso seja apenas o desinteresse próprio dos ignorantes.
Seja como for, o que apenas sei dizer é se gosto ou se acho bom (sendo que também não sei dizer quais os critérios para gostar ou para achar bom). E, no caso dos seus poemas, acho-os invulgarmente bons e quase inacreditavelmente todos muito bons. Gosto imenso. Parece quase impossível uma produção assim.
Diz que os desbasta. Tomara que não desbaste muito, que os deixe quase como estão. Há qualquer coisa de espontâneo e de muito bem conseguido que não deve ser muito mexido sob pena de poderem perder este halo de espontaneidade.
Quando os leio e não me pronuncio não é porque goste menos mas porque não sei dizer muito mais do que gosto ou que acho muito bonitos mas isso é uma coisa quase infantil de se dizer perante o que escreve.
Estou a ler um livro curioso, "O Romancista Ingénuo e o Sentimental", de Orhan Pamuk. Este título remete para para o ensaio de Schiller "Poesia Ingénua e Sentimental". Na poesia ingénua, o poeta não tem consciência da sua separação do mundo e da natureza, não sabe a distinção entre sentimento e intelecto. Essa poesia é uma expressão directa da natureza, a expressão de uma harmonia nunca cindida. Na poesia sentimental, pelo contrário, há consciência da separação homem e natureza, sentimento e intelecto, a compreensão de uma cisão e de uma desarmonia. O poeta sentimental é também o poeta reflexivo, que compreende racionalmente as técnicas usadas espontaneamente, que pensa sobre os limites da sua obra, etc. Este poeta tem por ideal a recuperação da harmonia perdida.
ResponderEliminarAquilo que eu gostaria de fazer era isso mesmo: ser reflexivamente espontâneo. Não negar as duas tradições, fundi-las de forma a que o leitor visse como espontâneo aquilo que se tornou, pela prática poética, espontâneo. Mas isso talvez só os deuses possam fazer.
E muito obrigado por gostar daquilo que vou escrevendo. Estes poemas talvez sejam o resultado de centenas de poemas medíocres, maus ou muito maus.
De resto, o mais importante é esse juízo de gosto que exprime uma ligação ou uma rejeição. O resto é trabalho racional, e este, como o disse S. Tomás de Aquino referindo-se à sua imensa obra filosófica e teológica, é palha.
Eu é que agradeço por partilhar a sua poesia com quem com ela se possa deliciar como é o meu caso.
ResponderEliminarGostei do que escreveu agora. Acho que percebi agora melhor como é possível a técnica não interferir castradoramente na criação poética, não domesticar da espontaneidade.