quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Impressões 112. Entre ruínas

Dmitri Kessel, A man walking through the remains of an ancient temple in Athens, 1944
Um homem passeia entre ruínas. Absorto, mergulha nas sombras projectadas pelas pedras do passado. Uma esperança toca-lhe o coração, um desejo prende-o ao lugar. Espera que um deus tenha uma reminiscência e, por um súbito impulso, volte ao templo onde terá sido cultuado e se manifeste, para que ele, passeante incansável pelo rumor de outros tempos, realize o seu desejo e descubra a vida verdadeira que a época que lhe foi dada para viver esqueceu.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Pintura e haikus (33)

António Areal, sem título, 1961 (aqui)

Paisagens incertas
polvilhadas de espectros.
Vozes sem palavras.

domingo, 27 de agosto de 2023

Meditação breve (191) Uma sombra delida

Joaquín Torres García, Carnaval, 1897-98

Não há procissão de Ménades, nem estas se entregam ao culto do deus, mas o Carnaval ainda contém uma reminiscência dionisíaca, agora submetida ao cálculo do prazer, sem o rumor do sagrado nem traço de função cívica. Uma tão delida sombra nem chega a despertar o sobressalto de Apolo.

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 9

António Dacosta, Sonho de Fernando Pessoa Debaixo de uma Latada numa Tarde de Verão, 1982 (aqui)

O Verão ainda caminha,

suspenso na altivez dos dias,

preso pelo sisal das horas.

 

Distribui sonhos e promessas,

rosas pelo Jardim do Éden,

fantasias que não cumprirá.

 

Abrigo na cinza da sombra

pensamentos nunca pensados,

palavras de amor nunca ditas.

 

Agosto de 2023

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

A memória do ar (18)

Theodor und Oskar Hofmeister, Elbstrand im Schnee, 1897

A devastação de Inverno liberta o ar da sua submissão ao sopro do Sol. Corre, então, frio e seco sobre paisagens desoladas, rasurando as suas histórias, para que outras e mais tentadoras sejam possíveis. Onde se suspeita a desordem por ele introduzida, deve-se também crer que haverá outro mundo que florirá quando a Primavera, com os seus imperativos, voltar.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

No limiar (9)

Lourdes Castro, Sombra Projectada de Marta Minujín, 1963

Tudo começa como um esboço e este é já uma promessa daquilo que ultrapassará a fronteira que divide o mundo possível do mundo real. Depois, o esboço transforma-se em sombra ténue, primeiro, e, paulatinamente, em sombra cada vez mais densa, como se procurasse a fonte luminosa que a criou e a ilumina para que possa subsistir. Ultrapassado o limiar, abandonados os espaços imponderáveis onde os corpos são pensados para se entregarem à dimensão sensorial que os há-de acolher, um novo ser emerge, pleno de glória que o tempo haverá de apagar.

sábado, 19 de agosto de 2023

A sombra da água (18)

Jacob van Ruisdael, Wooded Landscape with Waterfall and Approaching Storm, c. 1655 [Städel Museum, Frankfurt am Main]

Toda a água contém em si, como uma sombra nascida no princípio do tempo, uma inclinação para a tempestade. Umas vezes, o tempestuoso reside na própria água. Noutras, são elas que o chamam, para que, negro e ameaçador, traga cerzida na desordem a anunciação de uma nova ordem.
 

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 8

Modesto Urgell Inglada, La fiesta mayor, procession

O vento do Norte reparte

as ninfas por fontes e rios,

traz aos dias os velhos mitos.

 

Agosto abre-se aos rumores

de festejos e procissões,

brilham os santos nos altares.

 

Desço a escadaria do tempo.

Sob a névoa de calor vejo

a luz de cada devoção.

 

Agosto de 2023

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Geometrias de fogo (18)

Helmut Middendorf, Elektrische Nacht, 1979

Como num perpétuo inferno, seres humanos mergulhados num destino de trevas entregam-se ao flamejar ansioso das labaredas nascidas no fundo obscuro do coração. Dançam homens e dança o fogo, a realidade contorce-se em geometrias de abandono e insignificância, o desespero move-se pelo território que recebeu em herança. Tudo arde.

domingo, 13 de agosto de 2023

Signo sinal 12. Águas pluviais

Hugo Canoilas, A água da chuva a cair nas bacias oceânicas,2020-2022 (aqui)

Os símbolos sulcam as pradarias oceânicas, onde rebanhos de animais vorazes aguardam as águas pluviais. Esperam delas a pureza decantada na atmosfera, o doçura que equilibrará o excesso de sais e dará um rumo aos que se perdem nos signos dos tempo ou nos sinais de novos mundos.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Haikai do Viandante (432)

Bernardo Marques, sem título (aqui)
Sentado, um homem
sonha a sombra do tempo.
Cai a luz da tarde.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 7

Salvador Dali, Las llamas, llaman, 1942

São paisagens feitas de fogo.

Árvores antigas em chamas

caem na terra abrasada.

 

Ao mortal silêncio das aves

respondem clamores humanos,

a úlcera do desespero.

 

Ano após ano o deserto

cresce no espólio da vida,

ergue-se, mortalha da Terra.

 

Agosto de 2023

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

O sal do silêncio (102)

Júlio Resende, sem título, 1948 (aqui)
O silêncio da espera é o sal que tempera a expectativa. Sem ele a terra é desprovida de húmus, as coisas perdem os contornos, a vida não encontra o sentido. Aguarde-se em calma silenciosa e a chama do espírito virá trazida pelo vento.

sábado, 5 de agosto de 2023

A memória do ar (17)

Alexandre Estrela, O som no ar, 2010 (aqui)

O ar é o meio memorial onde o som encontra o modo de se propagar, fazer um caminho até que descubra uns ouvidos que transformem as ondas sonoras em signos significantes, em música ou ruído, em promessas de um antigo paraíso ou na ameaça de um inferno de estrépitos e de estrondos, prontos a derramar sobra a terra o tumulto do mal.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

No limiar (8)

Horst P. Horst, Dali Costumes, 1939
Por vezes, existe na matéria uma dolorosa inclinação para que se tornar humana. Não importa se é viva ou se, pelo contrário, é o mais inanimado dos materiais. Uma finalidade, transparente com a água pura dos regatos de infância, começa a fervilhar e umas mãos começam a moldá-la, segundo uma figuração inscrita na memória da terra. Como numa alucinação, os contornos surgem na mente e as mãos, incapazes de adormecer, tecem na pedra, no plástico, no gesso, na madeira, seja no que for, esses seres que ainda não são humanos, mas já trazem em si, no limiar que os limita, a humanidade que manifestarão aos olhos de quem passa.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 6

Jakob Nussbaum, On the Beach at Port Said, 1925

 

Conto em silêncio os meses

para desenhar do Verão

os sulcos suados da sombra.

 

Na infância, o calor era

domado pelo véu do vento,

o verde a dançar nas árvores.

 

Se ouvia o grasnar das gaivotas,

os olhos perdiam-se na água

suspensa na luz do areal.

 

Agosto de 2023