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sábado, 16 de março de 2024

Sonetos de Inverno (12)

Gilles Aillaud, Deserto, 1986

Muda o mundo, na vereda do tempo.

Estações vêm, estações vão, sem fim.

O Inverno decaiu, sombra morta

no jardim onde as rosas declinam.

 

No rumor azul do vento, escuta-se

uma voz fremente, a pura essência

do que passa sem deixar um sinal

ou um rasto na areia do deserto.

 

Trazer mundos dos jardins esquecidos,

Trazer sombras dos Invernos passados,

Trazer rosas da vereda da morte.

 

Sou o vento que apaga os rastos,

a voz pura que fremente se cala

o sinal que no deserto se esconde.

 

Março de 2024

 

sexta-feira, 8 de março de 2024

Sonetos de Inverno (11)

Mário de Oliveira, Lucalena de las Torres, 1967 (Gulbenkian)

Uma voz sediciosa soletra

a palavra e a revolta de Inverno.

As estrelas rodopiam ao vento,

astros mudos no silêncio da sombra

 

Apressado, veio Março tomado

pelo canto dos antigos profetas.

Folhas mortas, castas, caem das árvores,

sussurrando sortilégios e espantos.

 

Pelas frias avenidas de Inverno,

do silêncio soletrado virão

inocentes as palavras de sal.

 

Auspícios descem de bocas caladas.

Os profetas são agora estátuas

nos jardins onde os mortos se calam.

 

Março de 2024

sexta-feira, 1 de março de 2024

Sonetos de Inverno (10)

José Dominguez Alvarez, sem título (Aspecto de rua com figuras) (Gulbenkian)

A tristeza destes dias de frio,

sob um sol sem o motim do Verão.

Nostalgia dos murmúrios da infância,

desventura duma vida exígua.

 

Devoradas pelo tempo, as horas

rodopiam perturbadas sem parar.

Turbilhão feito de ócio e dor,

a penumbra dum sonoro segredo.

 

A infância deambula nos dedos

com que colho a nostalgia da vida,

tão exígua na ventura que houve.

 

Eis o vórtice onde tudo se perde,

turbilhão, dor infinita das horas,

onde canto em secreto silêncio.

 

Fevereiro de 2024

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Sonetos de Inverno (9)

Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912

A paisagem assombrada da tarde,

vendaval vindo no voo do vento,

as mulheres de cabelos revoltos,

os cavalos delicados da noite.

 

Vou, de Inverno em Inverno, sombrio,

faço luz na escuridão da caverna,

onde oiço o ecoar da memória

afogada no silêncio do tempo.

 

Cavaleiro sem cavalo na noite.

É a hora de rasgar o caminho

na paisagem fria e negra de névoa.

 

Sou o eco que rasura a memória.

Sou a luz branca da escura caverna.

Sou o tempo e a sombra de Inverno.

 

Fevereiro de 2024 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Sonetos de Inverno (8)

Rockwell Kent, Admiralty Inlet, 1922

A camisa desgastada de Invernos

é um trapo enrolado nas mãos,

é o corpo pelo tempo rasgado,

uma mancha que declina sem luz.

 

Revestido de matéria efémera,

o espírito balança ao relento.

Vai e vem, preso ao fulgor do que passa,

tão perdido no delíquio dos dias.

 

Atormentam-me as sombras esquivas

declinadas pela luz deste Inverno,

a camisa corrompida do corpo.

 

Se o sol resplandece nas montanhas,

o espírito encontra o caminho

para a casa que ao longe o espera.

 

Fevereiro de 2024 

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Sonetos de Inverno (7)

Camille Pissarro, Morning, Sunshine Effect Winter, 1895

Abandono as coisas deste jardim,

folhas mortas dum Inverno sem luz.

Ergo ágil a candeia do silêncio

sobre a noite rasurada do mundo.

 

Oiço passos na morada do homem.

Oiço cânticos no escuro das ruas.

Um segredo no passar de quem parte.

Um enigma desenhado nas vozes.

 

A substância da viagem cintila

no jardim da noite húmida e cândida,

no altar onde o Inverno se entrega.

 

Ó as vozes de quem parte sem rumo.

Ó os passos de quem canta calado.

Nem segredos, nem enigmas. Silêncio.

 

Fevereiro de 2024

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Sonetos de Inverno (6)

Philip Guston, Winter, 1963

 A verdade do Inverno esconde-se

na floresta onde as pétalas caem

sobre o chão negro dos dias passados,

sobre o leito onde dorme o futuro.

 

As sibilas dançam, cantam os hinos

macerados pelas chuvas arcaicas.

Os segredos de outrora desvelam-se

no rumor da boca fria dos profetas.

 

Natureza, a verdade recobre

as tuas horas com um manto de pétalas

renascidas no desvão da floresta.

 

O silêncio, um presságio arcaico

dança imóvel no segredo da noite.

Uma rosa de sal sangra nos céus.

 

Janeiro de 2024


terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Sonetos de Inverno (5)

Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912

Os crepúsculos de Inverno cintilam

sobre a sombra do dia, trazem fogo

ao amor das coisas raras e luz

à morada fria e rude dos deuses.

 

Os poentes são mistérios, promessas

do espírito, a água lustral

onde, ávidos, lavamos os corpos

e os abrimos ao orvalho da noite.

 

No fulgor de cada hora crepita

um crepúsculo na sombra dos deuses,

um amor na invernia deste mundo.

 

Toco o corpo que se abre ao poente.

No orvalho de ardor e mistério,

sinto a água que na noite me espera.

 

Janeiro de 2024


segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Sonetos de Inverno (4)

Bernardo Marques, Inverno (Gulbenkian)

Os dias frios, as horas gastas da vida,

céus de chumbo, o silêncio do medo.

Em Janeiro, teço sombras e nuvens,

traço linhas na brancura da noite.

 

A tristeza rasga a terra e os mares.

Um fantasma no escuro da casa,

no jardim onde as rosas secaram.

Um punhal no coração da paisagem.

 

Visto as sombras que teci em silêncio.

Visto as nuvens que me cobrem o corpo.

Em Janeiro, vejo os céus, oiço o medo.

 

Treme a terra na tristeza da casa.

Tremo pálido no frio do jardim.

São escuras as paisagens sem rosas.

 

Janeiro de 2024 

domingo, 7 de janeiro de 2024

Sonetos de Inverno (3)

George Inness, Winter, Close of Day, 1866

Sol de Inverno, sol de mármore rosa,

luz do céu frio na manhã de Janeiro.

Os dias correm pelo vento tocados,

são navios de caruma sem norte.

 

Oiço pássaros romper o silêncio,

abrir mundos ao ardor da harmonia,

velhos cânticos ressoam nas ruas,

enquanto os homens sonham extáticos.

 

Vendavais de luz e mármore rosa

são segredos escondidos nos barcos

do Inverno, vozes vivas da terra.

 

Oiço cânticos na casa do tempo.

O silêncio arde preso aos dias,

uma rosa desfolhada nos dedos.

 

Janeiro de 2024 

sábado, 30 de dezembro de 2023

Sonetos de Inverno (2)

László Meitner, Inverno em Paris (Gulbenkian)

Estes dias de sombra trazem nas mãos

o bramar das aves negras de Inverno.

São presságios, são auspícios sem luz.

Uma carta tão fechada na noite.

 

Dança a chuva nas paredes das casas

destelhadas pelo vento do norte.

Dança a velha soberana no paço

carcomido pela morte das rosas.

 

Uivam lobos nas montanhas sem neve.

Grasnam corvos nas ramagens despidas.

Rugem homens esquecidos na cidade.

 

Nas gargantas das mulheres exaustas,

os murmúrios de um amor desprezado

a poeira sulfurosa os sufoca.

 

Dezembro de 2023


sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Sonetos de Inverno (1)

Pedro Calapez, Viagem de Inverno, 1989 (Gulbenkian)

Vem solstício. Do Inverno a luz

abrirás, e os segredos da noite

brilharão entre estrelas e luas,

entre mares de azul e cobalto.

 

Ó intróito da invernia, paroxismo

do silêncio e das trevas amargas.

Crescerão depois os dias, canções

haverá pelos lugares sem nome.

 

Ao cair, a noite ergue-se frágil

no murmúrio da floresta, rumor

das estrelas, sal secreto da vida.

 

Uma cruz de azevinho ao longe,

velhos cânticos, Natal no horizonte.

A luz pálida será fogo ardente.

 

Dezembro de 2023