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domingo, 10 de março de 2024

No limiar (16)

Victor Palla, sem título, 1990 (Gulbenkian)

As figuras hesitam na fímbria da realidade. Ainda não estão certas da sua essência e temem aventurar-se numa existência que lhes seja estranha. Movem-se em ambientes translúcidos, evitam a transparência, enquanto tudo à sua volta está mergulhado no oceano inquieto da indecisão, nas águas turvas onde nem o dia nem a noite são nítidos. Por vezes, aproximam-se umas das outras. Procuram a irmandade dos que já deixaram a terra deserta do nada, mas ainda não chegaram às planícies exuberantes do ser. Buscam na fraternidade consolação, como aqueles que chegaram à existência a encontram ao poisar os olhos num ramo de camélias.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

No limiar (15)

Carlos Carneiro, sem título, 1970 (Gulbenkian)

A realidade não é um presença constante, dela está ausente a placidez das coisas eternas. É uma aproximação lenta, um vir de longe, atravessando as areias dos desertos, as águas escuras e inóspitas dos oceanos, as florestas cerradas no dorso das montanhas. Aproxima-se como uma sombra, porque é morosa a procissão que tem de percorrer a partir do nada, elaborando-se em esboços sem fim, ganhando consistência no lusco-fusco dos dias, até que atravessa o limiar do mundo e encontra a carne que lhe cobre o corpo e nos faz exclamar eis a realidade viva.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

No limiar (14)

Manuel Casimiro, Estrutura, 1970 (Gulbenkian)

Pensemos como pensa um deus ocupado a extrair do nada um mundo. O que colocará ele nesse limiar onde o nada bordeja o ser? O que será decisivo para que exista alguma coisa e não coisa nenhuma? O deus pensa que esse ponto inicial da existência é uma certa disposição que acolherá tudo o que vier e o que vier mover-se-á no horizonte dessa disposição inicial. A isso chamamos nós, talvez influenciados ainda por um eco longínquo do pensamento desse deus furtivo, estrutura. Dela tudo depende, pensamos, pois está nessa fronteira indecisa que separa, unindo, aquilo que é e aquilo que não é.

domingo, 24 de dezembro de 2023

No limiar (13)

Jorge Molder, O Pequeno Mundo, 2020 (Gulbenkian)

Em cada momento, o homem, qualquer ser humano, encontra-se suspenso do eterno movimento do devir. Não é que o que era e não é o que será, mas apenas duas negações, pois o limiar é ponto onde essas negações se suprimem e se transformam numa afirmação que dura a eternidade de um instante. Visto pelos olhos da humanidade, esse homem, cada ser humano, é um ser indeciso, cujos contornos, a que falta a nitidez da decisão, não são mais do que as fronteiras porosas por onde os raios do tempo passam. Visto por olhos divinos, a sua imprecisão surge como a marca rigorosa da finitude com que se atormenta.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

No limiar (12)

Fernando Calhau, S/título #169, 1974 (Gulbenkian)

Todo o mundo começa com um trabalho de memória. Na viscosidade da penumbra, na porosa fronteira entre a vigília e o sonho, os tambores da recordação trabalham furiosamente, espalham memórias pelos campos a vir, pelos rios e lagos não nascidos, ordenam-se em batalhões impiedosos para que dessa crueldade nasça o poder da floresta sobre as encostas das grandes montanhas ou a esperança de um oceano que se deixe navegar pelos grandes veleiros da misericórdia. Então a memória flui e o mundo convocado por ela reúne-se sob o seu império e, submisso, dispõe-se a acolher a primeira luz e a semente sanguínea da vida.

domingo, 8 de outubro de 2023

No limiar (11)

José Manuel Espiga Pinto, Mapa marcado com rasgão para entrada na sala de projecções simultâneas, 1973 (aqui)

O mundo coagulado oferece-se, como uma vítima no holocausto, ao cutelo do mapa. Este suspende a realidade do território, mantém-na num estado onírico, roubando-lhe a consistência, despindo-o dos acidentes e das linhas de fractura ou dos pontos de encontro, onde se reúnem a água de rios e lagos, a terra de lezírias e charnecas, os ares vindos das montanhas ou fugidos das tempestades oceânicas. Um mapa é como uma droga alucinogénica, cria imagens a que nada corresponde, apaga o que existe na quimera cintilante do que não existe. Espera a benevolência do fogo para, reduzido a cinzas, deixar emergir do nada a realidade viva.

sábado, 16 de setembro de 2023

No limiar (10)

António Sena, Pintura, 1972
A lenta crispação da matéria estrutura pequenas barreiras, como se fossem dunas ainda na infância, ou os primeiros traços que a criança deixa nas paredes da casa. Ainda se está longe da matéria organizada que dá vida a estrelas e planetas, mas há muito que grandes nuvens de poeira prometem, na obscuridade sem fim, tornarem-se em galáxias que se arrastarão pelo vazio, criando espaços e polvilhando o negro com pétalas de luz. Soltam-se os primeiros sons, abrindo um longo caminho para que nasçam os ouvidos que os possam escutar. 

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

No limiar (9)

Lourdes Castro, Sombra Projectada de Marta Minujín, 1963

Tudo começa como um esboço e este é já uma promessa daquilo que ultrapassará a fronteira que divide o mundo possível do mundo real. Depois, o esboço transforma-se em sombra ténue, primeiro, e, paulatinamente, em sombra cada vez mais densa, como se procurasse a fonte luminosa que a criou e a ilumina para que possa subsistir. Ultrapassado o limiar, abandonados os espaços imponderáveis onde os corpos são pensados para se entregarem à dimensão sensorial que os há-de acolher, um novo ser emerge, pleno de glória que o tempo haverá de apagar.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

No limiar (8)

Horst P. Horst, Dali Costumes, 1939
Por vezes, existe na matéria uma dolorosa inclinação para que se tornar humana. Não importa se é viva ou se, pelo contrário, é o mais inanimado dos materiais. Uma finalidade, transparente com a água pura dos regatos de infância, começa a fervilhar e umas mãos começam a moldá-la, segundo uma figuração inscrita na memória da terra. Como numa alucinação, os contornos surgem na mente e as mãos, incapazes de adormecer, tecem na pedra, no plástico, no gesso, na madeira, seja no que for, esses seres que ainda não são humanos, mas já trazem em si, no limiar que os limita, a humanidade que manifestarão aos olhos de quem passa.

sábado, 8 de julho de 2023

No limiar (7)

Ana Hatherly, O Homem Invisível, 2001

Uma fossa abissal separa o reino do visível do império do invisível. Neste, os seres não são apenas possibilidades, mas realidades destituídas de corpo. Puras inteligências, eles têm também memória e imaginação, mas não das coisas e dos mundo corpóreos. Recordam as aventuras do espírito e imaginam realidades vivas que, aos nossos olhos, parecerão puras abstracções. Quando se cansam dessa existência sem contaminação, saltam sobre o abismo e chegam ao reino da visibilidade. Na viagem, ganham corpo, escondem no mais íntimo de si o império em que viveram e abrem-se ao reino do contágio e da infecção.
 

domingo, 11 de junho de 2023

No limiar (6)

António Areal, Sem título, 1961

Os primeiros traços de um mundo emergem do fogo originário. Estão ainda longe de serem um alfabeto que traga dentro de si a promessa de uma gramática, com as suas morfologias de aço, as sintaxes de cristal, fonéticas banhadas pelas águas de todos os oceanos. Ainda não são letras, nem algarismos, nem sinais secretos onde um código se erguerá para que olhos cintilantes o decifrem. São apenas as cinzas de um fogo que, de tão arcaico, nunca pára de arder, cinzas que lentamente se tornarão sólidas, tão sólidas que sobre elas, como se fossem alicerces inexpugnáveis, um mundo haverá de nascer.

sábado, 20 de maio de 2023

No limiar (5)

Georgia O'keeffe, Black abstraction, 1927

Ainda as coroas não ornavam cabeças reais, nem o oxigénio se combinara com o hidrogénio para, em proporção exacta, permitir o advento da vida. O vento era apenas uma promessa cósmica de um tempo a vir, e a luz estelar ainda não tinha sido separada em enxames que se deslocam sempre para mais além. Do fundo negro, uma onda de escuridão ergueu-se e troou, enquanto uma espuma esbranquiçada, imperativa como uma velha fronteira, assinalava as primeiras metamorfoses que trariam o mundo ao lugar onde o encontramos.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

No limiar (4)

Imagem obtida com IA da CANVA

Pensa-se no lugar onde a realidade se produz em estratos, o trabalho moroso de sedimentação de materiais arcaicos, mas esse pensamento não passa da projecção do desejo de encontrar uma chave de leitura para aquilo que não tem leitura. Trata-se antes do lugar onde a irrisão se encontra com a ausência de sentido, formando ondas caóticas, impressões difusas, recusas viscerais de toda a ordem. Por vezes, soltam-se ruídos, mas não se encontrou ainda aparelho auditivo para os processar e descobrir para eles uma notação prosódico ou mesmo um nome. Pensa-se no não pensável.

sábado, 22 de abril de 2023

No limiar (3)

Imagem obtida com IA da CANVA

Será uma dança imortal a que os elementos se entregam antes de se comporem na matéria da realidade, o mundo sólido que surge perante os olhos, para estes o devorarem em imagens que se guardarão no cofre-forte da memória. Dançam uma música de cores. Nestas existem sons que o movimento faz eclodir em paisagens que as palavras não poderão descrever, horizontes que pertencem a um lugar onde o verbo ainda não se fez presente e nenhuma denominação encontra o momento para ressoar, pois tudo ainda está imerso numa sinestesia universal.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

No limiar (2)

Imagem obtida através de IA da CANVA
A desordem em que os mundos germinam em breve é levada à fronteira que deixa ver, como numa exposição acidental, o rigor do que virá e o ritmo das leis que então regularão os elementos. Ali, é um lugar de cacofonia, onde a língua do mundo que ainda não é um mundo se mistura com a do mundo que virá. O espectador acidental, caso pudesses existir, descobriria que todo o mundo verdadeiro é antecedido por um simulacro onde se esconde a falsidade que temperará o rigor da verdade desse mundo.

domingo, 2 de abril de 2023

No limiar (1)

Imagem obtida com IA da CANVA

Já não é um caos, mas está longe de ser o cosmos que se acolhe dentro de um olhar ou que ressoa, se alguém fecha os olhos e escuta o mundo, como uma velha canção, daquelas que trazem o tempo na alma e ligam vivos e mortos. São linhas que procuram um campo onde se tornem o mármore, a pedra viva com que uma cidade perpétua se erguerá para receber a luz do Sol e a bênção da noite.