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quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Natividade mística

Sandro Botticelli - The Mystical Nativity (1500-01)

E se as narrativas sobre o nascimento do Filho de Deus em Belém não tiverem qualquer correspondência factual, se pertencerem apenas ao domínio do mito e não da história, serão elas falsas? Depende do regime de veridicção adoptado. Se for um regime em que a verdade depende da correspondência do discurso aos factos, então, no caso de serem não históricas, serão falsas. Mas se o regime de veridicção for outro, se a verdade não for uma mera correspondência entre factualidade e discurso mas uma realização de uma possibilidade inscrita no real, então as narrativas da natividade são a mais pura das verdades, aquela a que todos os homens são chamados a realizar na sua vida. A natividade do filho de Deus não é um mero facto, mas a possibilidade que, segundo o Cristianismo, os filhos de Deus trazem em si mesmos. Uma natividade mística.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

A atenção ao mundo

El Greco - Vista del Monte Sinaí (1570-72)

Insisto: a sede da mística não é na estratosfera, mas sobre esta "terra dos homens", mesmo se o místico tem a audácia de nela escalar os cumes mais altos. Não sonha em ir para a lua, onde não há atmosfera, mas tenta subrir sobre o Tabor, o Sinai, sobre o Meru, sobre o Kailãsa, sobre o Sumbur (Semeru), sobre o Haraberazaiti (Harbuz), etc.: isto é, os lugares terrestres onde céu e terra se encontram. (Raimon Panikkar, Mystique plénitude de Vie. p. 209)

A vida do espírito não é um acto de cobardia e de fuga ao mundo. Pelo contrário, é o modo de vida onde se exige a maior das atenções à vida na Terra, pois esta é a condição do ser humano. Atenção não significa alienação e estranhamento perante sua própria natureza de ser dotado de espírito. Significa, em primeiro lugar, compreender que também a Terra e as coisas na sua materialidade contêm, para não dizer que são, o espírito. Significa, em segundo lugar, que a vida do espírito se alicerça na materialidade do corpo humano, nos poderes e fragilidades da carne. Significa, em terceiro lugar, que qualquer ascensão espiritual implica o reconhecimento de que a materialidade corporal do ser humano está submetida à lei da gravidade.

O místico (ou espiritual) deve então ser o mais desperto dos homens para as realidades terrestres. Sem essa atenção e esse estar desperto, não há monte a que ele consiga ascender, não haverá possibilidade de trilhar o caminho que o leva ao ponto onde a Terra e o Céu se encontram, não encontrará o lugar em que Deus e o homem se tocam. O desprezo pela finitude da terra e pela fragilidade do corpo terá como contrapartida o encerramento na caverna e a prisão no corpo, como já Platão bem o sabia.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Liberdade e mística

Maria Helena Vieira da Silva - Liberdade (1973)
 
A mística, correctamente compreendida, é o reino da liberdade: liberta o homem tanto dos seus condicionantes transcendentes como dos imanentes, sem o deixar afundar-se numa libertinagem anárquica, porque lhe abre-lhe a via para realizar a sua identidade. (Raimon Panikkar, Mystique plénitude de Vie, p. 210)
 
Para além da liberdade de iniciativa - a possibilidade de iniciar uma acção determinada por si mesmo -, há uma outra liberdade, aquela que nasce da libertação daquilo que nos torna estranhos a nós próprios e que nos aliena. Quando Marx afirma a religião como o ópio de povo, percebe-se que ele próprio possui uma visão alienada do fenómeno religioso e não compreende que a emancipação efectiva não só é anterior à questão económica e política, como tem uma natureza muito mais radical. Emancipar-se significa libertar-se tanto das condicionantes interiores como das exteriores. Ora é isto que as diversas escolas místicas propõem como experiência pessoal, certamente dentro de comunidades, mas não como projecto colectivista. Encontramos assim uma outra porta de entrada na modernidade, de onde a experiência religiosa não terá de ser expulsa mas onde se pode constituir como o elemento central do ser moderno. As diversas libertações e emancipações modernas, desde o liberalismo racionalista ao marxismo, são apenas visões degradadas e decaídas de uma experiência da liberdade muito mais fundamental, aquela que é o objecto central da mística.