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segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Sonetos de Verão (12)

Carlos Calvet, sem título, 1967 (Gulbenkian)

Regressou de rompante o Verão.

Crescem fogos, florestas a arder

contaminam os corpos, e as almas

frágeis urdem severos desesperos.

 

Tudo arde na viva luz da tarde,

as imagens passadas resplandecem

no futuro a vir, no presente ávido

de encontrar o caminho destinado.

 

Um suspiro final, pura vingança

feita fogo e fumo, as frias cinzas

do Outono a chegar enlouquecido.

 

Sem destino, os corpos em vão buscam,

no incêndio da noite, as almas puras

que lhes cabem na senda da floresta.

 

Maio de 2024


domingo, 8 de setembro de 2024

Sonetos de Verão (11)

León Kossoff, Christ Church, Spitafields, Summer, 1990

Caminhamos no sulco que outrora

foi rasgado na terra em silêncio

pelas mãos de quem veio antes de nós

e nas sombras do Estio se recolheu.

 

Murmuramos os nomes e tecemos

com a voz litanias e orações.

Damos graças e vamos pela senda

que se abriu na memória descerrada.

 

Devedores, colhemos flor e fruto.

Devedores, clamamos as vitórias.

Devedores, erguemos o espírito.

 

Somos sombras de sombras mais antigas.

Mortas, guiam os nossos passos rudes

nos caminhos por elas lacerados.

 

Setembro de 2024 

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Sonetos de Verão (10)

Hein Semke, Também AD., 1980 (Gulbenkian) 

De Setembro o cântico e a sombra,

a promessa de dias de luz amena,

de um mar revoltado no sossego

das manhãs, na volúpia do crepúsculo.

 

Somos anjos perdidos nesta terra,

submetemos o corpo e a alma

ao ditado imposto pelo tempo,

a tragédia trazida ao nascer.

 

Uma rosa translúcida cintila

sobre o mar de Setembro, sobre a luz

do crepúsculo, sobre o sal do dia.

 

Procuramos incógnitos o estado

esquecido na hora de nascer,

olvidado no tempo que se escoa.

 

Setembro de 2024


terça-feira, 27 de agosto de 2024

Sonetos de Verão (9)

Celestino Alves, A Paisagem de Sines, 1964 (Gulbenkian)

Já declina o Estio, mas o calor,

insensato, ainda atormenta

a cidade, os homens e as aves.

Um caminho sem sol, alguém suplica.

 

Sob a tília espero o tempo fresco,

a passagem do vento que escapa

da montanha e rasga o horizonte

para a noite trazer suave bênção.

 

Tudo passa, na pressa de chegar

ao destino inscrito no silêncio

que habita o fundo de cada coisa.

 

Nos fios, pássaros negros aguardam

o sinal da partida para o Sul,

e eu oiço na morte a luz da vida.

 

Agosto de 2024


sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Sonetos de Verão (8)

João Queiroz, sem título, 2005 (Gulbenkian)

A ardência do dia cobre de fumo

o silêncio sombrio das avenidas,

o restolho das ruas rudes e sujas,

o espaço aberto destas praças.

 

Cavaleiros sem nome regressaram,

trazem velhas memórias fabricadas

nos rumores do tempo e nos fogos

pela morte feroz então acesos.

 

A cidade descobre-se perdida

num Verão insensato, num delíquio

de donzela cativa na inocência.

 

As muralhas da velha praça-forte

zumbem, pálidas, negras pelos anos.

Cavaleiros a morte aguardam.

 

Agosto de 2024

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Sonetos de Verão (7)

Jenner Augusto, Barcos na praia (Gulbenkian)

Oiço o silvo do vento de Verão

no grasnar das gaivotas pela praia.

Verdes águas enrolam-se em ondas

de espuma rosada pela areia.

 

Passeante na pálida manhã,

solitário amante do silêncio,

no murmúrio do mar escuto o canto

das sereias, a voz azul dos céus.

 

Assim vou, meditando no segredo

encoberto na lenta luz das águas,

no veloz vento vindo com os barcos.

 

Um clamor na manhã abre o mundo

ao sigilo estático das mãos,

ao pulsar inquieto do amor.

 

Agosto de 2024


sábado, 10 de agosto de 2024

Sonetos de Verão (6)

Ana Maria Botelho, Le couple et l'instrument, 1980 (Gulbenkian)

Corpos velhos ao Sol do Verão cismam

em silêncio, meditam cruéis crimes.

A idade arrasta-os no rio

da memória, no mar do abandono.

 

As palavras usadas são andrajos,

roupas gastas, metáforas extintas

no vulcão desta língua, no fedor

com que corpos usados inda falam.

 

Cada crime pensado abre ruas

onde passam memórias arrastadas

na corrente das águas quase mudas.

 

Andrajosas metáforas proclamam

o retorno dos mortos revestidos

por antigas palavras rasuradas.

 

Agosto de 2024


quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Sonetos de Verão (5)

Pierre de Chevannes, Jóvenes al borde del mar, 1879

Uma sombra na tarde de Verão,

uma mancha nas noites de Agosto.

Dias deslizam nos dias, o sol vai, vem,

inquieto, perdido no horizonte.

 

Relva verde desdobra-se no olhar.

Onde eram cabanas acanhadas,

crescem casas de pedra, luz e sal.

Na memória, apenas sol e mar.

 

A miragem das horas carregadas

com o peso da água, com a cal

das manhãs que de súbito se calam.

 

Cativei desses dias os rumores.

Raparigas despidas caminhavam

na rudeza do sol, presas ao mar.

 

Agosto de 2024


sexta-feira, 26 de julho de 2024

Sonetos de Verão (4)

José de Almada Negreiros, sem título, 1941 (Gulbenkian)

 Do Verão, saberemos nós a cor,

a certeza das tardes e das noites?

Saberemos da Lua a aparência,

quando Julho progride na jornada?

 

Estações são mistérios ilegíveis,

pelos anjos escritas num caderno

onde a luz resplandece e nos cega,

onde a noite cintila no silêncio.

 

Raparigas perpassam nos meus olhos,

trazem vestes de Estios muito antigos,

eram jovens e belas na memória,

 

eram filhas dum tempo onde Julho

refulgia nos seus olhos e ardia

na secreta paixão nos meus velada.

 

Julho de 2024

sábado, 20 de julho de 2024

Sonetos de Verão (3)

Ana Hatherly, sem título, 1971 (Gulbenkian)

O livor destes dias faz de Julho

o mais ímpio dos meses de Verão.

Claras nuvens no céu são o prenúncio

do jardim onde as horas se recolhem.

 

Escondeu-se o Sol e dardejou

sem clemência os homens impudentes.

Vozes clamam ao longe, fatigadas,

rasgam turvos silêncios em sua dor.

 

Escondi o meu corpo na caverna

onde moram os sonhos e dormi,

esquecido dos dardos invencíveis.

 

É o áspero rumo que me leva

desta terra sem ruas, sem rumores,

ao local onde morre o Sol no mar.

 

Julho de 2024


sábado, 6 de julho de 2024

Sonetos de Verão (2)

António Dacosta, Sonho de Fernando Pessoa debaixo de uma latada numa tarde de Verão, 1982 (Gulbenkian)

 O tormento dos dias de Verão

caiu lesto nas sombras da cidade.

No silêncio das tardes resplandece

luminoso o prenúncio da revolta.

 

Tão pesado tributo enlouquece

quem do Norte partiu em busca plácida

de outras terras sem gelo, de eternas

noites cálidas, ricas em ardor.

 

Ocultaram-se os homens no jardim

onde o tempo ameno abre os braços

e mitiga a revolta dos perdidos

 

no frio fogo do Sul, na vã loucura

de esperar salvação nesses lugares

onde tudo se perde sem perdão.

 

Julho de 2024


quinta-feira, 27 de junho de 2024

Sonetos de Verão (1)

 León Kossoff, Demolition of the Old House, Dalston Junction, Summer, 1974

Esqueci os amores de Verão.

Esqueci vendavais e noites quentes.

No oceano está presa a memória

dos incêndios bravios da vida rude.


Oiço o leve bater das horas idas

na janela aberta destes dias,

casa branca agora desprezada,

onde ardia o fogo da esperança.


Oiço a noite rugir na rua vazia

onde os passos que dei ainda ecoam

como sinos feridos na montanha.


Animal sem morada nem destino,

animal sem a luz de cada dia,

abro as mãos e no vento oiço o Estio.


Junho de 2024