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segunda-feira, 3 de julho de 2017

A outra viagem

Gustave le Gray - Le Havre, Bateaux quittant le port (1856)

Deixar o porto, fazer-se ao mar para, depois e após múltiplas escalas, voltar a esse mesmo porto. Assim, como um partir e um retornar mediados pelo viajar, podemos resumir a viagem física dos homens. Será diferente a viagem do espírito? Não será, por exemplo, a peregrinação uma viagem espiritual em tudo idêntica àquela que foi descrita? Sim, mas nem toda a peregrinação ou nem toda a viagem espiritual implica sair de onde se está fisicamente. O essencial da viagem não está em deslocar-se no espaço mas em transformar-se continuamente. A viagem espiritual - essa outra e mais decisiva viagem - é uma metamorfose, onde aquele que se transforma é ao mesmo tempo o porto de onde sai, o caminho que faz e o porto aonde regressa como sendo, ao mesmo tempo, o mesmo e já definitivamente outro.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Viagem

Pierre-Albert Marquet - O carro (1904)

Emigrar, partir do lugar onde se nasceu, talvez tenha sido a primeira e mais marcante forma de transcendência encontrada pelos seres humanos. O que está na origem do especificamente humano, se essa especificidade existir, é o impulso para ir mais além. Deixar para trás os limites onde se nasceu, abandonar a condição com que se chegou à vida, descobrir o espírito como o mais além do corpo. A vida é uma viagem não porque esteja balizada entre a concepção e a morte, mas porque é o exercício contínuo do impulso para se transcender.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Romaria

Francisco Iturrino - Romaria (1905-09)

Com demasiada rapidez se relaciona a ideia de romaria a uma peregrinação popular, onde se combina a devoção e a festividade. Como a generalidade das expressões de matiz religioso, o termo romaria possui uma dimensão simbólica. À letra significa a peregrinação a Roma, ao centro da cristandade ocidental. Isto significa, na prática, uma viagem da periferia para o centro. Simbolicamente, porém, esta viagem não tem uma dimensão física nem geográfica. Ela é a peregrinação que cada um faz da exterioridade da sua vida social ao centro de si mesmo, à Roma, digamos assim, que cada um traz em si. E esta viagem pelo território interior nem tem de ser religiosa, no sentido corrente do termo, embora ela seja sempre uma re-ligação consigo mesmo. Cada um a fará conforme se sentir chamado ao caminho. Uns pela arte, outros pelo saber, outros pelo ofício, outros pela religião. Todos, de uma forma ou de outra, são convocados à romaria.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A demanda

Salvador Dali - El farmacéutico de Ampurdán que no busca absolutamente nada (1936)

A vida do espírito começa como uma demanda. Alguém sente que perdeu alguma coisa ou que lhe falta algo. Parte, então, em busca daquilo que sente em falta. A demanda arrasta-o e traz com ela o sentimento da perda e da inutilidade. Será que haveria alguma coisa para buscar? Quando descobre que nada havia para demandar, sente, no mais fundo de si, a alegria de ter encontrado o que procurava.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Correspondências

Georges Braque - O porto de Havre (1903)

Os portos são lugares especiais, não tanto por estarem ligados à navegação, mas porque condensam em si experiências que se transformaram, ao longo dos milénios, em símbolo da vida espiritual. Esta é feita de partidas e de chegadas. Também nela o viandante aporta, por instantes, em lugar seguro, para depois retomar a viagem num ambiente tão fluido e perigoso quanto a água. É esta correspondência entre a vida material e a vida espiritual que torna cada porto num lugar de fascínio  de rememoração.

domingo, 21 de agosto de 2016

Jardins e festas

Louis Valtat - Festa no jardim (1888)

O jardim é um símbolo fundador da cultura ocidental. A dor e a morte vêm com a expulsão da humanidade do jardim do Éden. Facilmente se entende a ligação entre jardins e festas. O jardim, ao contrário do espaço que lhe é exterior, é o lugar da felicidade e do prazer inocente, o sítio da festa. Sempre que as festividades humanas se realizam num jardim, há como que uma actualização da felicidade mítica  e do prazer inocente perdidos. Toda a viagem do homem é, em última análise, uma demanda do jardim originário de onde se sente expulso.

domingo, 7 de agosto de 2016

O fim do mundo

José Gutiérrez Solana - El fin del mundo (1932)

As grandes visão apocalípticas, como as do fim do mundo, são interessantes não por aquilo que anunciam mas pelo desejo que nelas se manifesta. Não nos dizem o que vai acontecer mas o que o homem, em algum momento da sua história, desejou que acontecesse. A profecia do fim do mundo conta-nos, então, que este - o mundo - se tornou de tal modo insuportável que desejámos que ele tivesse um fim. O que o espírito deve aí procurar, para se instruir e e fazer a sua viagem, não é o que vai acontecer num futuro qualquer, mas aquilo que desencadeia o desejo de rejeição, aquilo que encerra a vida espiritual num círculo de ressentimento e dor. 

terça-feira, 12 de julho de 2016

De porto em porto

Georges Braque - El puerto de El Havre (1903)

Há uma mitologia literária fascinante e fascinada em torno dos portos. Compreende-se que, antes da aviação, o lugar de partida para longe e o de chegada vindo ou de quem vem de longe tenha esse poder de encantamento. Contudo, a possibilidade de ser encantado reside já na experiência espiritual e interior dos homens. Também a viagem espiritual é um chegar e um partir, sempre pontuada por um porto, um porto simbólico. E estes, por inesperados e inusitados que sejam, são uma referência e uma que ajudam a desenhar o sentido da viagem interior.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Em configuração

Joost Schmidt - Estudio de una figura (1930)

Chegar à sua própria figura, configurar-se, é o destino daquele que foi lançado na vida. A vida espiritual dos homens não é outra coisa senão uma preparação da sua figura, um conjunto de ensaios e erros até que, inopinadamente o rosto, o seu verdadeiro rosto, brote na luz da clareira. Configurado, o viandante lança-se de novo ao caminho. Novas configurações o esperam.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Do caminho e da viagem

Gonzalo Torné - Camino infinito II (1997)

A viagem que cabe a cada homem parece finita, mas o caminho é sem fim. A natureza infinita do caminho pode significar que este é tão amplo que suporta todas as viagens finitas do homem. Pode ser sinal, porém, de outra coisa: tal como o caminho é infinito, também a viagem que cabe a cada um não tem fim.

domingo, 17 de abril de 2016

Noites portuárias

Caspar David Friedrich - Porto de noite (1818)

A viagem espiritual dos homens, como qualquer outra viagem, é feita de partidas e chegadas. Também ela vive dos grandes portos e dos cais de embarque. E é nessas noites portuárias, de onde a luz desapareceu e apenas se ouve o marulhar das águas nos cascos das embarcações, que um novo sentido emerge e um novo destino se desenha para aquele que, acabado de chegar a terra, se dispõe já a partir.

segunda-feira, 21 de março de 2016

As cores

Rodríguez Castelao - As cores (1931)

Também as cores assinalam o caminho na viagem. Primeiro prendem o espírito à sua diversidade. Depois, passado o encantamento estético, tornam-se uma ordem onde o viandante aprende a ler, gradualmente, o progresso no caminho que o conduz das trevas mais densas à luz mais pura.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

A espera

Marcus Stone  - Waiting (1921)

A espera pode ser uma etapa crucial na viagem. Nem toda a espera, porém, tem em si esse poder de se tornar um elemento central na vida do espírito. Quando a espera é tida como instrumental, um tempo que antecede qualquer realização a vir, nesse momento ela é um obstáculo. É preciso que o viandante aprenda a deter-se na espera e não esperar dela outra coisa senão o que ela é, pois na pura espera já está tudo o que se há-de encontrar.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Aprender a anoitecer

Vincent Van Gogh - Anoitecer (1889)

Aprender a anoitecer. O viandante traz em si demasiada luz e a viagem não é mais que um aprender a fazer noite em si mesmo. Aquele que aprendeu a anoitecer esqueceu-se de si e, abandonando-se ao vento que sopra onde quer, extinguiu a sua luz, para que uma outra Luz possa brilhar nas trevas.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Idas e vindas

Paul Gauguin - Idas e vindas (1887)

A viagem espiritual é composta de muitas idas e vindas. Seria uma ilusão pensar que a vinda marca um retorno ao mesmo. A vinda contém em si a ida e aquilo que o viandante, ao voltar, encontra - em si mesmo e no lugar a que retorna -  não é o mesmo que tinha à partida. É sempre um outro que retorna e o lugar também é já outro. Por vezes, diz-se que um dado escritor escreve sempre o mesmo livro, mas isso é um equívoco. Cada vez é um escritor novo que o escreve. Foi e voltou, mas já não era o mesmo que o escreveu, mesmo que o livro fosse palavra a palavra, letra a letra, semelhante ao anterior. E mesmo uma obra nestas condições seria já uma outra obra. 

domingo, 10 de janeiro de 2016

A promessa da repetição

Oskar Laske - River Landscape (1944)

Heraclito constata que não nos podemos banhar duas vezes nas águas do mesmo rio, pois estas estão em constante renovação. Esta constatação de uma impossibilidade esconde, porém, uma pergunta mais decisiva: se pudéssemos, deveríamos querer mergulhar duas vezes nas mesmas águas? Será que a vontade quer a repetição ou o inédito? A viagem do espírito - seja qual for o caminho escolhido, a arte, a religião, o pensamento - é sempre marcada por esta questão. Ela é a luta contra o fascínio que a promessa da repetição, apesar de impossível de cumprir, traz consigo.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Combate enigmático

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

A viagem espiritual nada tem de diversão turística. Na verdade, ela não passa de um combate, do mais enigmático dos combates. O viandante luta consigo próprio, com a sombra que nasce do seu desejo de ser alguém, de possuir uma identidade, com a aspiração humana ao reconhecimento. Luta, na verdade, contra uma quimera. Uma quimera, contudo, não deixa de ser um rude e inultrapassável inimigo enquanto não for reconhecido como aquilo que é, uma quimera.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Uma nova palavra


Emile Chambon - L'Eveil (1975)

A ideia de despertar tornou-se, na vida do espírito, um lugar comum. O século XX e mesmo o XXI tornaram-se o lugar da mais feroz banalização de tudo, e a ideia de despertar, de abrir-se para uma outra realidade que não a do senso comum e da vida quotidiana, não deixou de ser arrastada pela onda de banalização que a tudo submerge. O viandante precisa não só de descobrir a realidade a que esse termo outrora designou como de encontrar uma outra palavra não contaminada pela rasura do tempo, palavra que retire o despertar da morte a que o abuso o parece ter condenado.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Fim do mundo

José Gutiérrez Solana - El fin del mundo (1932)

O tema escatológico do fim do mundo nunca deixou de incendiar a imaginação dos homens, e isso continua a verificar-se nos dias de hoje. Essa grande acontecimento apocalíptico, porém, não deixa de ser uma interpretação fantasiosa da vida espiritual dos homens. A experiência espiritual de cada homem não é outra coisa senão uma sucessão de fins do mundo, pois a cada passo no caminho a visão do mundo converte-se e passa-se a vê-lo de outra maneira, liquidando assim o mundo anterior. Cada novo mundo que o viandante alcança significa a morte daquele que deixou para trás.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O primeiro passo

Frantisek Kupka - O primeiro passo (1909)

A viagem espiritual distingue-se da viagem territorial por não possuir um primeiro passo, um ponto de partida, a linha onde terá começado. Também não tem um destino. Numa viagem onde não há princípio nem fim, nenhum passo é o primeiro e, ao mesmo tempo, todo e qualquer passo é o primeiro e, como tal, inicial.