Edvard Munch - Separação (1894)
Naquele tempo, disse Jesus aos
fariseus: «Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e fazia
todos os dias esplêndidos banquetes. Um pobre, chamado Lázaro, jazia ao seu
portão, coberto de chagas. Bem desejava ele saciar-se com o que caía da mesa do
rico; mas eram os cães que vinham lamber-lhe as chagas. Ora, o pobre morreu e
foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado.
Na morada dos mortos, achando-se em tormentos, ergueu os olhos e viu, de longe,
Abraão e também Lázaro no seu seio. Então, ergueu a voz e disse: 'Pai Abraão,
tem misericórdia de mim e envia Lázaro para molhar em água a ponta de um dedo e
refrescar-me a língua, porque estou atormentado nestas chamas.' Abraão
respondeu-lhe: 'Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em vida,
enquanto Lázaro recebeu somente males. Agora, ele é consolado, enquanto tu és
atormentado. Além disso, entre nós e vós há um grande abismo, de modo que, se
alguém pretendesse passar daqui para junto de vós, não poderia fazê-lo, nem tão
pouco vir daí para junto de nós.' O rico insistiu: 'Peço-te, pai Abraão, que
envies Lázaro à casa do meu pai, pois tenho cinco irmãos; que os previna, a fim
de que não venham também para este lugar de tormento.' Disse lhe Abraão: 'Têm
Moisés e os Profetas; que os oiçam!' Replicou-lhe ele: 'Não, pai Abraão; se
algum dos mortos for ter com eles, hão-de arrepender-se.' Abraão respondeu-lhe:
'Se não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, tão-pouco se deixarão convencer,
se alguém ressuscitar dentre os mortos.'» (
Lucas 16,19-31)
[Comentário de Isaac, o Sírio aqui]
Como na generalidade dos textos aqui comentados, também neste há uma
multiplicidade de leituras possíveis. Por exemplo, este poderá ser lido a
partir da alusão final à ressurreição e à incapacidade dos contemporâneos crer
nela ou ser tomado como núcleo central de uma espécie de apologia de uma justiça
de classe de carácter transcendente. As possibilidades são inúmeras. A hipótese
que se segue aqui centra-se, porém, numa reflexão sobre a separação. Em vários
momentos do texto a temática da separação é central.
Em primeiro lugar, a separação encontra-se já presente nos
interlocutores de Cristo, os fariseus. Um dos significados centrais do termo é o
de “separados”, aqueles que se afastam dos outros, que, em nome do estudo da tradição,
quebram os vínculos e rasgam a comunidade. Em segundo lugar, a separação está
presente logo no início do discurso de Cristo, na separação radical entre o
homem rico e Lázaro, o pobre coberto de chagas. Uma terceira separação surge na
distância intransponível que afasta, no mundo dos mortos, o lugar do tormento e
o lugar da consolação. Por fim, a separação dos irmãos do homem rico
relativamente à tradição (Moisés e os profetas) ou ao ressuscitado.
A separação é, na sua essência, a quebra de um vínculo, o desfazer de
uma aliança, a ruptura de um reconhecimento do outro. Por três vezes, no texto
e em resultado do estado de separação, o reconhecimento do outro é obliterado.
O rico não reconhece Lázaro como digno da sua atenção. Abraão não reconhece o
rico como merecedor de consolação. Os irmãos do rico não haveriam de reconhecer
nem a tradição nem o ressuscitado.
A separação é, deste modo, compreendida como fechamento em si, como um
exercício solipsista (de um indivíduo ou de uma comunidade particular) que
quebra a partilha de um destino comum com os outros homens. É a separação, com a
concomitante ausência de reconhecimento do outro, que anula não apenas a
compaixão como a própria comunicação inter-humana. A crítica das várias figuras
da separação surge como um processo que visa a restauração da comunidade dos
homens, do reconhecimento da fraternidade essencial que existe entre eles, da compreensão
da sua complementaridade. Note-se que o texto não é uma proposta de dissolução
das subjectividades individuais, a sua imersão num nós indiferenciado, mas um sublinhar da responsabilidade que cada subjectividade
tem perante as outras, a atenção que lhes deve e a abertura que o cuidar do
outro necessita. A comunhão, digamos assim, é uma comunhão de indivíduos.