sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Haikai do Viandante (421)

Kazimir Malevich, Apples Trees in Blossom, 1904
 Sob o azul dos céus
as macieiras florescem.
Luz da Primavera.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Meditação Breve (172) Cruzar os braços

George Platt Lynes, Crossed Arms, 1941

Um sintoma de cansaço, um sinal de expectativa, uma recusa de acção? Seja qual for o sentido que se dê ao gesto de cruzar os braços, ele nunca deixa de pertencer a uma fenomenologia dos actos ostensivos, daqueles que pelo seu acontecer querem indicar sempre uma outra coisa. É sempre um gesto que se liga àquilo que o transcende. 

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O sal do silêncio (71)

Eugène Atget, Rue de l’Hôtel de Ville, 1921
O tempo quase podia ter sido suspenso e o que se vê, a rua, os prédios, a iluminação eléctrica, teria sido coalhado num instante eterno, num silêncio que voz alguma haveria de incomodar, não fora as rodas de um veículo caído em desuso começarem lentamente a rolar, arrastando atrás de si os segundos, depois os minutos e continuando por aí fora, num nunca mais parar da duração. 

sábado, 25 de dezembro de 2021

A Sarça Ardente - 96

Gerardo Rueda, Composición, 1959
Sobre a sombra
ergue-se
um dia de luz,
a longa espera
terminada,
o sussurrar do oceano
na memória,
o arder do silêncio
ao abrir-se
no arquipélago
do coração.

Dezembro de 2021 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Desabrigado

Weegee, Night Shelter, c.1938

Tinha chegado a onde nunca imaginara chegar. Estava só e descobrira que nenhum lugar fora feito, na realidade, para ser o meu lugar. Nenhuma desculpa podia apresentar no tribunal da consciência para me absolver da situação. Tão pouco seria sensato culpar qualquer entidade metafísica que me tivesse predisposto para a ruína. Escolhera, fingindo não escolher, o caminho que me levou a este abrigo. Por incúria, pela vertigem de um desejo de queda. Na hora em que me deitei no banco de madeira, estava reconciliado comigo. Abandonara tudo. Chegara ao centro de mim mesmo. Descobrira que a verdade de todo o homem é ser um desabrigado. Ao adormecer, sabia, pela primeira vez, o que era a vida. Poderia recomeçar. Sem qualquer ilusão.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O sal do silêncio (70)

Frederick Sommer, Taylor, Arizona, 1945
Quando o sal da vida se retira e a ruína se apossa da realidade, resta a ordem inóspita de um silêncio hostil, fabricado nos interstícios do esquecimento, na distorção da memória, no sufoco de tudo o que retirou cada coisa da insignificância.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Meditação Breve (171) A alma da multidão

Alfred Eisenstaedt, Nightime view of crowds gathering outside the Steel Pier, 1941

Grandes querelas teológicas podem vir à luz quando se trata de saber se os indivíduos possuem ou não uma alma. Assunto obscuro e que dividirá, em qualquer credo, ortodoxos e heresiarcas. O que não será objecto de querela, pela sua evidência, é a existência de uma alma na multidão. É a alma de grupo que nasce mal os homens se juntam e cresce como um íman poderoso que, sem cessar, atrai novos membros. É essa alma que conduz as multidões em actos que só elas poderiam realizar, é ela que as leva para a casa que é a sua. Quando a alma, por motivo obscuro, perde a força ou desaparece, a multidão dissolve-se.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Haikai do Viandante (420)

Hiroshi Hamaya, Winter starts on peak of Mount Fuji. Japan, 1962
 Branca, pura, a neve
sobre o cume da montanha.
Incêndio de água.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

A Sarça Ardente - 95

Esteban Vicente, Matices del rojo, 1986
O sopro suave do vento
empurra para longe
a sombra
povoada pelas camélias
do meio-dia.

O Sol sorri sobre a cal
do casario.
Sentada sob a tristeza,
uma mulher
sorri no fulgor do silêncio.

Dezembro de 2021

domingo, 12 de dezembro de 2021

Impressões 88. Luz

Thomas Hoepker, Inside the Pantheon. Rome, Italy, 1984

Também na obscuridade se encontra o divino. Basta que a luz irrompa e abra uma clareira na densa floresta das trevas. Nesse choque entre o claro e o escuro, entre a luminosidade e a cerração, de súbito manifesta-se a voz de uma alteridade radical pela qual se pode reconhecer a marca daquilo que é divino.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

O sal do silêncio (69)

Brassaï, Le jardin des Tuileries la nuit, Paris, 1931-32
Eis a noite que sobe do fundo da terra, do abismo que ninguém conhece, para a envolver com o sal da escuridão, para trazer um instante de sossego, para encerrar dento do mistério aquilo que à luz do dia era claro e sem enigma.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Meditação Breve (170) O enigma da esfinge

William Holman Hunt, The Sphinx, 1854

Não há qualquer enigma na esfinge. O enigma da esfinge reside naquele animal que, apesar de ainda ser uma animal, é portador de razão. É desta que nasce o enigma da esfinge, como todos os outros. O espanto, a perplexidade, o desejo e os limites da razão concorrem para que, de súbito, surja no pensamento do homem uma esfinge e, no terror do seu coração, o enigma.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Haikai do Viandante (419)

Vincent Van Gogh, El puente de Trinquetaille, 1888
 Pontes sobre os rios
de súbito unem as margens.
Fogo e fantasia.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

A Sarça Ardente - 94

Charles Émile Jacque, Shepard with Flock
Pequenos pastores de barro
apascentam rebanhos
sobre o musgo
verde do presépio.

Esperam a noite que trará
luz à luz do dia,
música
ao súbito silêncio dos anjos.

Dezembro de 2021

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Impressões 87. Néon

Alfred Eisenstaedt, Decorative multiple exposure of neon signs at night, 1937
Nada mais equívoco do que o néon na noite. Anuncia-se com mais pura e luminosa das luzes e não passa de uma emanação exuberante daquilo que nas trevas há de mais obscuro.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Meditação Breve (169) A condição humana

Frank Horvat, Beggar, Calcutta, India, 1953
Eis a nossa condição. Somos todos, de um ou de outro modo, pedintes. Uns estendem a mão para a esmola, outros para o assalto, outros ainda para o fruto do esforço. Só por manifesta cegueira se poderá pensar que existe uma diferença essencial entre as diversas modalidades de estender a mão. São moralmente diferentes, mas ontologicamente todas elas são a manifestação da nossa radical finitude, da nossa nunca superada dependência, da nossa nunca conquistada autarquia. Ricos e pobres, reis e súbditos, todos são pobres pedintes.

sábado, 27 de novembro de 2021

O sal do silêncio (68)

Aaron Siskind, Chicago Facade 7, 1960

Na repetição do idêntico não existe apenas a cadência de um ritmo, mas uma aproximação assimptótica ao silêncio, pela contínua eliminação do diferente, o qual, com aquilo que tem de inusitado, traz a mácula do ruído ao sal da serenidade.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Histórias sem nexo 27. Sem grinalda

Josep Guinovart, Agramunt IV, 1976

Grácil a Graciela, no grémio, grafou grande grosseria. Gregário, o Gregório grifou como um Graco. Grunhiu o Grimaldo, o grotesco, com a grua na greda, enquanto a grossa Griselda, em greve, greguejava com grima. Em grupo, a gripe grudou-os na gruta gris. Gritaram, grilaram, griparam, sem grinalda.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

A Sarça Ardente - 93

Saul Steinberg, November, 1965
Os dias de Novembro
deslizam, mudos,
pela sombra
das acácias,
pelas folhas secas
das tílias,
pelos fios que vão
dos meus olhos
à luz do teu coração.

Novembro de 2021

domingo, 21 de novembro de 2021

Meditação Breve (168) A árvore da vida

Diane Arbus, Xmas tree in a living room, Levittown, Long Island, 1963
Quando se tenta perceber quando a árvore se imiscuiu na vivência do Natal, perde-se o essencial dessa associação. Simbolizar o nascimento de Cristo pela árvore é indicar que se a queda dos homens está associada a uma árvore, a da ciência do bem e do mal, então a sua salvação também depende de uma outra árvore, como se a criança nascida no presépio de Belém se enraizasse na terra, que é a carne, para se elevar ao alto e, desse modo, ser a nova árvore que supera a que foi motivo de queda para os homens. Para além da sabedoria do bem e do mal, diz-nos a árvore de Natal, existe uma outra, a da ciência da Vida, cuja interdição agora está levantada.

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Haikai do Viandante (418)

Toni Schneiders, Gräser im Fluss, 1974
 
Ervas sobre o rio
cobrem o fluxo das águas.
Sonhos e miragens.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Haikai do Viandante (417)

Aaron Siskind, Gloucester, 1944
 
A luva caída

na corrosão do soalho.

Vento de ruína.

domingo, 14 de novembro de 2021

Micronarrativa (57) A mulher dupla

Ilse Bing, Self reflection, 1947
Solteira, cansou-se da solidão. Arquitectou diversas soluções. Das menos ousadas, às mais radicais. Achou as primeiras frouxas, as segundas hiperbólicas. Foi então que lhe ocorreu a solução. Saiu de casa, ganhou distância suficiente, apontou a máquina à janela do quarto. Disparou. Captou si uma dupla imagem, uma em cada vidro. A partir daquele momento, nunca mais estaria só. Se ficasse solteira, seriam duas. Se casasse, o marido seria bígamo, mas isso já não lhe importava.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

A Sarça Ardente - 92

Edgar Degas, Casas junto al mar, 1869
Uma manhã limpa
a lembrar
os dias de Inverno,
se o Sol afasta
as nuvens
para cintilar
sobre o silêncio
e o canto nupcial
adormecido
nas teias de tule,
no lar da memória.

Novembro de 2021

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Meditação Breve (167) Cinema

Hiroshi Sugitomo, Cabot Street Cinema, Massachusetts, 1978

De modo bem diferente do teatro e da ópera, em que a luz tem um papel instrumental, o cinema não é outra coisa senão luz, em diferentes modulações, que chega aos olhos dos espectadores e é descodificada em imagens. Fazer cinema parece ser uma forma de esculpir a luz. Esta é de tal modo importante que, para que um filme seja verdadeiramente sentido como tal, o espectador tem de estar mergulhado na escuridão da sala. A luz que banha ecrã salva-o das trevas mais densas. Todo o filme é uma luta contra as trevas.

domingo, 7 de novembro de 2021

Biografias 25. O motociclista

Martin Munkacsi, Motorcycle racing, Europe, c. 1929

Tenho pressa de chegar. A meta espera-me. Com ela, a vitória, a coroa de louros, a certeza de que sou, entre todos, o mais corajoso, aquele que mais arrisca a vida para encurtar o tempo, para ser o mais rápido. Para chegar a onde? Que pergunta. Para chegar à meta, para fugir ao que fui, para me entregar nos braços do que serei, para não ter de encarar a minha imagem devolvida pela superfície polida de um espelho. Se suportasse aquilo que sou, se aceitasse a imagem que me pertence, que necessidade teria de correr desenfreado e ser o primeiro a chegar a lado nenhum.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Meditação Breve (166) O terror

Lee Miller, SS Prison Guard, Buchenwald, 1945
Não é quando se pratica o terror que este se grava no rosto e emerge como o símbolo da presença do mal no mundo. É na hora em que se é atingido, em que um verdugo se ri ou uma vítima se vinga, que ao rosto chega, numa máscara de espanto e horror, o sinal da presença desse mal nunca compreendido, nunca suportado, mesmo por aqueles que o praticaram. O terror é sempre pessoal e intransmissível.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Micronarrativa (56) O homem do progresso

Elliott Erwitt, Paris, 1989
Certas pessoas são, para a humanidade, autênticos benfeitores e verdadeiros faróis que lhe iluminam o caminho. Ele era um homem voltado para futuro, mesmo quando vestia como se estivesse no passado. Ocupava-o o progresso. Como dizia sempre, há levar as coisas em frente. Ao andar pelas ruas só conhecia um passo, o passo de gigante.

domingo, 31 de outubro de 2021

A Sarça Ardente - 91

Salvador Dali, Rosa meditativa, 1958
Deixar vir a dádiva
com o seu cortejo
de graças,
a face marcada
pela rosa,
a que se abre
para a luz
no limbo do dia.

Outubro de 2021

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Meditação Breve (165) Inquietante estranheza

Bill Brandt, Deserted Street in Bloomsbury, 1942
Se uma paisagem natural se encontra despida da presença humana, nada de estranho emerge da sua contemplação. Se, porém, a paisagem é urbana, de imediato o espírito se deixa tomar por uma inquietante estranheza, como se o criador tivesse abandonado a sua criação, como se tudo fosse familiar e, nessa familiaridade, se escondesse, como bem o sabia Sigmund Freud, uma ameaça, uma terrível ameaça.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Haikai do Viandante (416)

Alphonse Osbert, La Calma del agua, 1895

De súbito a água
acolhe a serenidade.
Mistérios da luz.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Impressões 86. Outono

Benet Sarsanedas, Otoño

O Outono nasce de dentro da cor, é fruto da explosão cromática que tinge as paisagens e fere de espanto os olhos incautos. É assim que uma estação que abre o caminho aos rigores do Inverno cativa os corações e os faz desejar a vida como um eterno Outono.

sábado, 23 de outubro de 2021

O sal do silêncio (67)

Horst P. Horst, Lisa with Harp, 1939
Se o fogo deixa de arder, o corpo cresce por dentro do silêncio, protege-se das rajadas de vento, das ondas do mar, das poeiras vindas do deserto. Espera preso à cornucópia da solidão, até que a música desça sobre ele e o ateie para cintilar na nuvem da noite. 

domingo, 26 de setembro de 2021

A Sarça Ardente - 90

Wassily Kandinsky, Autumn in Bavaria, 1908
Sobre as sombras reina
um império de luz,
o revérbero da madrugada,
a corola de oiro
do teu nome.

As folhas caem para dentro
do Outono,
incendiadas pelo bronze
da penumbra,
perdidas na cintilação da luz.

Setembro de 2021

domingo, 12 de setembro de 2021

Biografias 24. A mulher modelo

Mark Shaw, Gitta Schilling, Dior Glamour, 1960
A luz ofusca-me e na perturbação deixo de saber quem sou, uma contradição rói-me as entranhas, o que só a muito custo consigo disfarçar no sorriso. Digo-me, com não pouca vaidade e presunção, ser o molde prototípico onde as outras mulheres encontrarão a sua aparência, mas uma voz metálica e fria logo se apossa de mim. Não há nada mais funesto que a ilusão, murmura-me. Um ersatz não é um arquétipo. Pelo contrário.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Micronarrativa (55) O simulacro

Eugene Robert Richee, Carole Lombard, ca. 1937
A voz veio de dentro do espelho. Nunca me habituo ao simulacro da minha imagem. Como é possível que eu, tão cristalina e imortal, possa emanar um ser de carne que pretende emular-me a glória, mas que nunca terá a minha eternidade?

sábado, 28 de agosto de 2021

Haikai do Viandante (415)

Hiroshi Sugitomo: Aegean Sea, Pillon, 1990

 Sombras de silêncio
na névoa do horizonte.
O céu desce ao mar.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Biografias 23. A velha mulher

Alexey Titarenko, Old woman, St. Petersburg, Russia, 1999
Toda a minha vida está neste papel. Não, não é verdade. Toda a minha vida está nestas rugas, no cansaço que não me deixa erguer, no frio que me tolhe os gestos, nos fantasmas que, com o passar dos anos, substituíram as pessoas que encontrava. Vejo sombras, oiço murmúrios, sinto um frio que nasce no coração.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A Sarça Ardente - 89

Gustav Klimt, Schubert at the Piano, 1899
Ouve-se o desfilar das notas
trazidas pela leveza
com que os dedos
acariciam as teclas.

Um raio de sol trespassa
o vidro, fende
a penumbra
e abre o dia ao silvo da luz.

Uma música cintilante cresce
por dentro do silêncio
e floresce
nas pétalas de uma rosa.

Agosto de 2021

sábado, 21 de agosto de 2021

Micronarrativa (54) A espera

Júlio Pomar, Mulheres na Praia, 1950

Sentaram-se as três na areia da praia. Quem as visse pensaria que eram mulheres à espera dos maridos ocupados na faina do mar. Os traços rudes das faces, as roupas vindas de uma vida escassa, as costas viradas para o mar, como se dali pudesse vir não o bem, mas o pior dos males, tudo isso confirmaria a impressão do espectador. Como poderia qualquer mortal, sempre preso às aparências, descobrir a verdade? Quem as viu ao crepúsculo entrar nas águas não tem dúvidas. Eram sereias que esperavam a hora de regressar ao lar. Nunca mais foram vistas.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Diálogos morais 62. Perfumes

Horst P. Horst, London, 1936
- Está a ver, ali ao fundo...
- Não, mas adoro o seu perfume.
- Adora?
- Imenso, fui eu quem lhe o ofereci.
- Está enganado.
- Como?
- Equivocado. Não me ofereceu o meu perfume.
- Não está a falar a sério. Não se atreveria a...
- Dispenso-lhe a insegurança. O que me ofereceu foi um perfume...
- Sim, isso mesmo, e adoro o seu aroma.
Adora o perfume que comprou, mas esse não é meu. O meu perfume recebi-o de outros.
- De quem?
- Não tem grande queda para distinguir os odores.  A química não é o seu forte.
- Diga-me quem lhe deu o seu perfume.
- É uma herança. Recebi-o nos genes, mas esse não o empolgou. 

terça-feira, 17 de agosto de 2021

O sal do silêncio (66)

Harry Callahan, Chicago, 1949

As janelas fechadas encerram a casa aos ruídos da rua, os dos carros que passam, das mulheres que conversam, dos cães que ladram, das máquinas que troam, dos homens que discutem. Assim fechada, a casa torna-se o lugar onde o silêncio salga a vida e a abre para o inesperado que aguarda a sua hora.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Biografias 22. O saltador de obstáculos

Rodney Smith, Don Jumping Over Hay Roll, Monkton, Maryland, 1999
Habituara-se a saltar obstáculos. Procurava-os onde eles pudessem existir. Ao encontrar algum, preparava o salto, corria e transpunha-o inexoravelmente. Havia, porém, um que ele evitava a todo custo, o maior dos obstáculo, ele próprio. Não sabe, o saltador, se a procura de obstáculos é uma etapa para enfrentar o obstáculo definitivo, se a fuga contínua de si mesmo.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

A Sarça Ardente - 88

Fernando de Azevedo, sem título, 1961
Entrar por dentro do silêncio
dele fazer casa, abrigo,
o fogo que arde
na manhã,
a luz na fímbria do corpo.

São silenciosas as palavras
dos deuses, vêm e vão,
procuram a morada
onde alguém
se possa acolher.

Agosto de 2021

sábado, 7 de agosto de 2021

Impressões 85. Rios

Dórdio Gomes, O rio Douro, 1935
Rios são espelhos onde os céus e terra se olham. Neles tudo se reflecte, a alegre exuberância da luz solar, a tristeza da neblina, a utilidade do casario, a sombra das árvores, o mistério da lua, a ameaça da tempestade. Um rio é um sinal onde a vida se mostra para melhor se ocultar.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Meditação Breve (164) Adoradores da História

Max Dupain, High Tide. Newport,1975
Há quem tenha por objectivo ficar na História, nem que seja a pequena história da terra onde nasceu. Soubessem esses o quão precário tudo é e quão culpados todos somos, em vez de desejarem ser alguma coisa e, assim, terem um nome, desejariam que nunca a História, essa deusa traiçoeira, se lembrasse deles e que o seu nome fosse esquecido. Quanto mais depressa, melhor.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Impressões 84. Rasto sombrio

António Areal, Opus n.º 59, 1963

Um torvelinho de ervas secas vistas ao longe. Talvez uma imagem do aparelho neuronal com os seus jogos sinápticos. Uma tempestade no mar captada por uma velha máquina fotográfica. O turbilhão indiferenciado e caótico que liga o nada ao ser. Como tudo na realidade se confunde e, na mais diferenciada diferença, se encontra o idêntico, esse rasto sombrio da unidade primordial.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

O sal do silêncio (65)

Brett Weston, Forest, Netherlands, 1971
O silêncio canta por dentro da floresta. O silêncio canta a floresta. O silêncio é a floresta. No princípio era o canto silencioso, depois o canto deixou que o ritmo transbordasse. Ao transbordar, o ritmo encarnou, tomou corpo, de pequena semente transformou-se em árvore. Ao reproduzir-se, a árvore quebrou a sua solidão e tornou-se floresta. Se o vento lhe toca, ouvimo-la cantar por dentro do silêncio. 

domingo, 25 de julho de 2021

A Sarça Ardente - 87

Egon Schiele, Arboles otoñales, 1911
Os dias invisíveis em que o sol
iluminava o silêncio
ou do céu caía
uma chuva para sossegar
a inquietação do olhar.

Esperava-te, ó voz inaudível,
para que no teu eco
escutasse o restolho
da verdade
ou a promessa da redenção.

Julho de 2021


sexta-feira, 23 de julho de 2021

Meditação Breve (163) Um caminho único

Roberto Domingo, Camino de la Muerte, Encierro en San Fernando, 1913

Ao ouvir a designação caminho da morte, de imediato, a consciência, talvez em busca de uma tranquila serenidade, pensa, como oposto, o caminho da vida. A presunção serena é, porém, abalada pela incerteza. Uma voz vinda do fundo de si mesmo sopra que não existem opostos os caminhos da morte e da vida, mas que são sempre um e o mesmo caminho. Ao caminhante foi dado o caminho, mas a ele cabe escolher se faz dele a senda que conduz à morte ou a via que leva à vida.