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sábado, 25 de abril de 2015

Inscrito no olhar

Georges Braque - O porto de Le Havre (1903)

O velho enigma de um barco a chegar ao porto. Sentado, o viandante vê-o chegar e sente nele o mundo que deixou para trás e que, ao ser abandonado, escondeu-se nos olhos da tripulação e, secreto e sonâmbulo, prepara-se para aportar numa nova pátria. É assim que o viandante, ao cruzar-se com outros viandantes, vê o mundo de onde vêm. Está-lhes inscrito no olhar, nesse olhar que é abismo e fundo do infinito do ser.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Os quatro elementos

Ivonne Sánchez Barea - Aire I (1997)

A velha doutrina dos quatro elementos - terra, água, ar e fogo - tinha, na sua ingenuidade e inocência míticas, um potencial de descrição da realidade mais elevado do que aquilo que se pensa hoje em dia. Certamente, esse potencial não estava ligado a uma descrição física do universo, mas a uma descrição do homem, dos seus estados múltiplos possíveis. Não se pode dizer que esses elementos caracterizassem diversas formas de espírito humano, mas antes que seriam metáforas que designavam formas de ser que continham tanto o corpo como o espírito. Fundamentalmente, são metáforas das possíveis metamorfoses psicossomáticas, no sentido grego dos termos presentes nesta palavra, pelas quais pode o ser humano passar,

domingo, 25 de janeiro de 2015

Divergência e convergência.

Jackson Pollock - Convergence (1952)

É hábito considerar o pensamento divergente como sintoma de criatividade. Toda a divergência é, antes do mais, um afastamento, uma separação do instituído, daquilo que o mundo e o senso comum aprovam como aceitável. Afastamento esse que é, ao mesmo tempo, uma convergência com o inesperado, o inusitado, com a voz única que do fundo do ser chama por aqueles que ousam divergir do mundo.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Dos limites da fantasia

Alexandre de Riquer - Fantasia

O discurso do senso comum, muitas vezes dinamizado por uma certa divulgação pseudo-científica, tem valorizado, para além do domínio artístico, a dimensão da fantasia. Desde a importância da fantasia na vida sexual até à sua mobilização no âmbito da publicidade e da técnica de vendas, passando pelos múltiplos usos quotidianos do fantástico, a fantasia tornou-se um vocábulo que facilmente é mobilizado como panaceia do aborrecimento e do cansaço. 

O resultado desta banalização do exercício fantástico da imaginação está longe de ser percebido. Seja a fantasia realista ou inverosímil, ela é sempre um exercício de suspensão do contacto com a própria realidade. Perante uma realidade tida como prosaica, a subjectividade recria-a, imagnariamente, à luz dos seus desejos. Esta velha propensão da humanidade para a fantasia esconde uma inconfessável impotência para acolher e maravilhar-se com a própria realidade. A usura que o olhar quotidiano sofre, impede-o de uma atenção à própria realidade. A fantasia surge, então, não como um remédio mas como uma técnica de intensificação da patologia quotidiana. 

Em diversas tradições espirituais da humanidade, e contrariamente ao que se pensa, a crítica ao desejo funda-se na fuga mundi que ele introduz através da fantasia. Essa crítica à consciência desejante não é, na verdade, uma crítica do desejo, mas ao delírio que, pela fantasia, desvia o desejo do seu objecto real. O que nessas tradições - por exemplo, na mística cristã - está em jogo não é um desvio da consciência relativamente à realidade, mas a aprendizagem de uma atenção ao que é real, como caminho que conduz ao espanto (a experiência que, segundo os gregos, leva à filosofia) perante aquilo que é, e ao deslumbramento perante a verdade.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Do tempo à eternidade

René Magritte - Eternidade (1935)

Naquele tempo, disse Jesus aos judeus: «Em verdade, em verdade vos digo: se alguém observar a minha palavra, nunca morrerá.» Disseram-lhe, então, os judeus: «Agora é que estamos certos de que tens demónio! Abraão morreu, os profetas também, e Tu dizes: 'Se alguém observar a minha palavra, nunca experimentará a morte'? Porventura és Tu maior que o nosso pai Abraão, que morreu? E os profetas morreram também! Afinal, quem é que Tu pretendes ser?» Jesus respondeu: «Se Eu me glorificar a mim mesmo, a minha glória nada valerá. Quem me glorifica é o meu Pai, de quem dizeis: 'É o nosso Deus'; e, no entanto, não o conheceis. Eu é que o conheço; se dissesse que não o conhecia, seria como vós: um mentiroso. Mas Eu conheço-o e observo a sua palavra. Abraão, vosso pai, exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz.» Disseram-lhe, então, os judeus: «Ainda não tens cinquenta anos e viste Abraão?» Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: antes de Abraão existir, Eu sou!» Então, agarraram em pedras para lhe atirarem. Mas Jesus escondeu-se e saiu do templo. (João 8,51-59) [Comentário de Gregório Magno aqui]

Este é um dos textos evangélicos com maior carga filosófica. Opõe ser e existir. Sem a compreensão desta oposição, uma oposição relativa, não será possível compreender a afirmação inicial se alguém observar a minha palavra, nunca morrerá. Abraão e os profetas existiram. A sua vida foi balizada pelo tempo, começou, durou e terminou. O tempo é a sua condição. Estavam, como todos aqueles que vêm à vida condicionados pela temporalidade. A resposta que Jesus dá à objecção de que ele não teria idade para ver Abraão mostra que ele se coloca num outro plano que não é o da duração. Antes de Abraão existir eu sou.

Antes não significa uma mera anterioridade temporal. Significa a pertença a uma realidade anterior – mais essencial – àquela onde o tempo é a condição de existência. Cristo diz aos interlocutores que está no tempo mas que não pertence à temporalidade, por isso não será afectado pela morte. Mas o que o texto põe claramente em jogo é outra coisa. Também o homem não pertence ao tempo, também a sua existência condicionada é uma limitação que ele pode ultrapassar.

São dois os momentos em que essa condição não condicionada do homem é manifestada. Uma delas está expressa nos enunciados constatativos Abraão, vosso pai, exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz. O dia, apesar da sua carga temporal, surge como símbolo daquilo que está para lá do tempo e do condicionamento que este impõe à existência. Abraão só de pensar em ver esse dia exultou. Dir-se-á que era o júbilo da esperança, a alegria da expectativa. A felicidade, porém, nasce da experiência directa dessa realidade, da experiência do Cristo em si mesmo.

O outro momento está no início do texto. Ele manifesta-se num acto de linguagem promissivo ou, na linguagem de John Searle, comissivo: se alguém observar a minha palavra, nunca morrerá. A promessa (nunca morrerá), todavia, está antecedida por uma condição (observar a minha palavra), sem a qual a promessa deixa de ter efeito. Nos actos comissivos, o locutor fica comprometido com um estado futuro. O escândalo do texto – escândalo que se expressa na violenta reacção dos interlocutores de Cristo – reside no paradoxo que ele contém: o futuro prometido é o da abolição do próprio futuro, a saída para lá do tempo, do qual o futuro é apenas uma das suas instâncias.

Abraão atingiu a felicidade porque fez do Verbo (Logos) a sua casa e o seu modo de ser. Quem assim o fizer, quem observar a Palavra (Logos) elevar-se-á a uma condição onde o condicionamento temporal – com as suas três instâncias, passado, presente e futuro – deixará de ter efeito. Desse modo, segundo a promessa, deixará de existir para passar a ser, ser que não contém um fui nem um serei, mas um eterno sou.

sábado, 5 de maio de 2012

Da arte da dança

Giorgio Morandi - Natura Morta (1918)

A tensão entre corpo e espírito é o cerne da nossa natureza viva. O desprezo pelo corpo, a sua negação, o ódio ao que ele traz consigo são formas de morte, mas de uma morte onde o próprio espírito morre. Também a eliminação do espírito, dos seus anseios e desejos, é uma forma de solidificar o corpo, torná-lo numa verdadeira natureza morta. Dividir o ser em duas partes é já uma decisão arbitrária, mas à qual não podemos fugir, pois foi assim que o mundo e o estar nele nos foi ensinado. O importante é aprender o jogo que as partes devem uma à outra e jogá-lo. A finalidade desse jogo não é a vitória de uma parte sobre a outra, mas abolir a fronteira onde a divisão se dá. Abolir a fronteira não significa uma decisão jurídica proferida por uma instância independente ou um tratado onde as partes, mantendo-se enquanto partes separadas e distintas, deixam o viandante transitar de um território para o outro sem necessidade de passaporte e paragem na alfândega. Abolir a fronteira significa que já não há juiz que sentencie nem partes que assinem tratados, tão pouco um viandante que as percorra. Significa apenas que corpo e espírito se fundiram e nessa fusão são alimentados pela tensão. Não já a tensão inicial entre corpo e  espírito, mas a tensão que resulta agora da tendência para a separação e o desejo de aprofundar a fusão. A tensão inicial deu lugar ao jogo, e este à dança. O ser dança e não é possível dançar sem que uma tensão percorra cada célula daquele que dança, que a alimente e a impulsione no seu movimento, na sua luta contra a gravidade.

domingo, 22 de maio de 2011

Esperar

Por vezes, sem algo que o anuncie, tudo se torna sem sentido, como se de dentro de vísceras invisíveis viesse sobre a vida um cheiro putrefacto a nada. Não a um nada que indique a plenitude da ausência de odor ou gosto, mas de um nada que toma as células por dentro e as dissolve, corrompendo a vontade, liquefazendo os neurónios, tomados agora por uma sonolência sem fim. Como se abre o ser para que isto entre em nós? O ridículo. Tudo se torna risível e qualquer pretensão, gesto, desejo, mostra de nós o burlesco. Esperar a graça, desesperar por ela, ser incapaz de levantar a voz ao Alto. Dormir dias sem fim, deseja o corpo, reivindica, absurdo e ousado, o cérebro, condescende um coração mole. Dormir como se nada importasse. No silêncio da noite, erguer os olhos ao céu estrelado e esperar que a ferida se feche e uma voz ressoe no fundo do ser.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Tornar-se em nada

O que está na nossa mão? Nada! Mas este nada não significa nada fazer, indiferença, entrega à fatalidade. Este nada significa o tornarmo-nos no nada que somos e nessa nulidade encontramos O que é. A grande dificuldade é aceitarmos a nossa condição, reconhecermos a indigência da nossa natureza, o carácter precário das nossas pequenas verdades. Tornarmo-nos em nada não é a negação da vida, nem a afirmação do niilismo. É apenas a humilde disposição para que o Ser fale no silêncio dessa nulidade.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Propriedades

Chegar ao momento da verdade, àquela hora em que o ser e o compreender coincidem. O que sou eu? Nada, puro nada. Tudo o que trago não me pertence, tudo o que ostento foi roubado, tudo o que proclamo, plagiado. Mas será que compreendo tudo isso? Não, não compreendo. Todos dizemos coisas que não compreendemos. Quando o compreender, poderei dizer que tenho tudo e que sou o Rei do mundo. Agora, não passo de um pobre súbdito ajoujado ao peso das suas inúteis posses.

domingo, 31 de maio de 2009

Segredo

Ser-se si mesmo. Mas como ser si mesmo se não sei quem sou? A resposta, porém, não está no "conhece-te a ti mesmo" socrático, mas no esquecimento de si, nesse mergulhar na escuridão e nela encontrar aquilo que em mim é mais do que eu. Ser si mesmo então é ser mais do que eu, é ser pura e simplesmente, é abrir-se, romper a clausura do ser e deixar que ele venha. O meu segredo é não ter segredo nenhum, mas ser todo e completamente secreto. Ser-me é ser o segredo que me habita.