Max Beckmann - Christ and the Woman Taken in Adultery (1917)
Naquele tempo, Jesus foi para o
Monte das Oliveiras. De madrugada, voltou outra vez para o templo e todo o povo
vinha ter com Ele. Jesus sentou-se e pôs-se a ensinar. Então, os doutores da
Lei e os fariseus trouxeram-lhe certa mulher apanhada em adultério,
colocaram-na no meio e disseram-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada a pecar
em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou-nos matar à pedrada tais
mulheres. E Tu que dizes?» Faziam-lhe esta pergunta para o fazerem cair numa
armadilha e terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se para o chão, pôs-se
a escrever com o dedo na terra. Como insistissem em interrogá-lo, ergueu-se e
disse-lhes: «Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!» E,
inclinando-se novamente para o chão, continuou a escrever na terra. Ao ouvirem
isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a
mulher que estava no meio deles. Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe:
«Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém,
Senhor.» Disse-lhe Jesus: «Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante
não tornes a pecar.» (João 8,1-11)
[Comentário de João Paulo II aqui]
Este é um dos textos mais conhecidos de João e um dos marcos
civilizacionais mais profundos trazidos pelo cristianismo. A partir deste
momento, não há legitimidade para apedrejar alguém, seja por que razão for. Se
a carga simbólica do texto tem uma dimensão cultural e civilizacional, estas,
apesar de muito importantes, não serão as únicas nem as fundamentais. O que
está em jogo no texto de João é, mais uma vez, o conflito entre a Lei – a Lei
mosaica – e a Vida, entre o formalismo e a existência.
A Lei é utilizada, por parte dos doutores da Lei e dos fariseus, como
estratégia contra a Vida, como armadilha. E é esta possibilidade da Lei servir
de armadilha aquilo que mostra o que a Lei tem de frágil e de exterior, e por
isso ela precisa de ser superada (no sentido hegeliano do termo). A resposta
que é dada altera o ponto de vista em que fariseus e doutores da Lei tinham
colocado a questão. Esta é colocada do ponto de vista jurídico e a resposta é
dada com uma confrontação com a vida e a consciência. Desloca-se assim a
questão da infidelidade do âmbito do
direito para o da ética. Esta, contudo, não deve ser entendida como moral
(conjunto de costumes que regulam a vida social) mas como forma de habitar o
mundo orientada para uma vida boa. O que fica claro é que, eticamente, os
acusadores não têm qualquer legitimidade para julgar e condenar.
O texto contém, assim, dois modos de não condenação. Um modo fundado
no confronto ético com a sua consciência, que mostra a não legitimidade dos
acusadores, pois a sua natureza é também ela corrupta. O outro modo de não
condenação, radicalmente diferente, é o de Cristo. Este funda-se numa outra
natureza que é essencialmente misericordiosa, pois não radica numa consciência
culpada. Esta consciência não culpada e misericordiosa é o fundamento das
consciências culpada, aquilo que, em alguns momentos, as levam a recuar no
formalismo jurídico e a conter-se no mal que preparam, sob a capa da pena de um
delito, para fazer
Nas palavras de Cristo, porém, há mais do que uma manifestação de
misiricóridoa. Há uma exortação na expressão Vai e de agora em diante não tornes a pecar. O “vai” não pode ser
interpretado como um mero afasta-te, vai-te embora. Significa fundamentalmente
toma o teu caminho. Quando se toma o caminho, aquele que nos pertence, abandona-se o estado de errância,
a ausência de norte. O “não tornes a pecar” deve ser entendido neste sentido.
Porque ela toma o seu caminho – agora que o descobriu – não retornará à
errância. Como é que o caminho, para esta mulher, se revela? Pela tensão gerada
entre a acusação e a revelação de Cristo. No momento de maior perigo, o
caminho manifesta-se e abre para uma outra dimensão que está muito para além
daquilo que é meramente regulado pela Lei. Ela encontra agora o sentido da
vida, o horizonte de uma vida boa.