segunda-feira, 30 de abril de 2012

Manifestações do sagrado

Jackson Pollock - Sem título (1939-40)

Observamos a realidade sempre de uma forma sintética. Os elementos heteróclitos que a compõem são-nos dados como se fizessem parte de um todo e possuíssem entre si uma ligação. Mas, ao mesmo tempo, temos a percepção da multiplicidade de elementos heteróclitos, como se, no instante em que o espírito sintetiza e nos oferece uma totalidade, ele se entregasse a um acto de vandalismo e cortasse o todo em milhentos fragmentos. É com este jogo da análise e da síntese, do todo e da parte, do ser e do ente que o espírito constrói as descrições daquilo a que chamamos real. Mas não será tudo isso ainda fruto de um impulso biológico para a sobrevivência e uma construção social aprendida a partir da mais precoce infância? Parece-me tudo isso demasiado animal e demasiado social, isto é, demasiado humano, para ter alguma relação com a realidade em si e com a verdade. Quando se fala em teofanias, milagres e manifestações diversas do sagrado, temos a tendência para perceber essas irrupções como suspensão da ordem da natureza, uma contradição com as leis  das ciência naturais e com a própria natureza. Não estará, contudo, a questão mal colocada? Não serão essas manifestações uma suspensão da nossa descrição do mundo, irrupções que, como uma metáfora poderosa que altera o sentido do texto, desconstroem a habitual imagem do mundo? Nas manifestações do totalmente outro, para usar a designação de Otto para sagrado, não será a ordem da natureza que é posta em causa, mas os processos bios-sociais com que nos adaptamos ao mundo e nos habituamos a ele, tornando-o habitável pelo hábito de uma descrição consolidada dos estados de coisas. Mas uma descrição consolidada não significa verdadeira, significa apenas funcional social e biologicamente. As teofanias rasgam esse véu e obrigam a reescrever o texto com que interpretamos o mundo, até se tornarem numa espécie de metáforas mortas que já nada de inédito propõem.

domingo, 29 de abril de 2012

Haikai do Viandante (68)

Van Gogh - Flower beds in Holland (1883)

Os campos de flores
são livros onde as crianças
aprendem as cores.

sábado, 28 de abril de 2012

Poemas do Viandante (264)

Cézanne - Chateau Noir

264. CÉZANNE, CHATEAU NOIR

negro castelo
o teu coração
breve morada
de pedra e cal

nele perdi a luz
um ramo de violetas
e a esperança
de dizer não

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Aprender o despojamento

Wassily Kandinsky - Ciudad Árabe (1905)

Aprender o despojamento. Esse exercício de abstenção de tudo o que é inútil, de tudo o que distrai da viagem, de tudo o que não passa de mera presunção de importância de um ego fustigado pelo temor da sua real inexistência. Chegar ao essencial e nele permanecer, despir-se dessas velhas vestes que o tempo e o modo acumularam sobre nós. Coleccionamos ocupações, preocupações, afazeres. Coleccionamos gostos, gestos idiossincráticos, múltiplos e infinitos desejos. Aprender o despojamento é olhar para tudo isso e ver a sua realidade evanescente, é descobrir na evanescência a sua verdade e a verdade de uma vida vivida na dependência de tudo isso. Por vezes, pensamos que essas coisas são o que nos prende à vida. De facto, são elas que nos levam à morte.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Abrir-se para o absoluto

Henri Matisse - Open Window (1905)

Pensava hoje em Kierkegaard, na sua angústia perante o Absoluto. Esse excesso pode parecer atraente, mas será que a posição de um ser finito como o homem face ao Absoluto deve ser a angústia? A palavra que me ocorre transporta-me para longe desse estado mórbido do espírito. Abertura. Perante a solicitação do Absoluto o ser finito deve abrir-se à solicitação, tomá-la como convite e não como intimação ou sequer mera injunção. Sim, na angústia o homem teme e treme, mas ao abrir-se para a realidade e para o mundo, para o aqui e o agora, ele entra em comunhão com o Absoluto, que se revela na particularidade das coisas finitas. O Absoluto não está além, mas aqui, nesta hora. Abrir a janela e descobrir o dia. A noite é apenas a projecção do medo de abertura, a angústia um sintoma de cisão e de separação.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Poemas do Viandante (263)

Francis Picabia - Amanecer en la bruma, Montiguy (1905)

263. PICABIA, AMANECER EM LA BRUMA, MONTIGUY

a ordem da manhã
véu de lacre
sobre a terra
restos de orvalho
e folhas caídas
à espera do musgo
o teu corpo pousado
na fímbria do mundo
e aberto para a pálida luz
da madrugada

terça-feira, 24 de abril de 2012

O sensual e o sagrado

Amadeo de Souza Cardoso - Janelas (1916)

Os olhos são um lugar de troca entre dois mundos, o mundo de lá de fora e o  mundo interior que, através do olhar, se projecta e exterioriza. Troca significa dar algo e receber alguma coisa. O que se recebe através dos olhos? Imagens. O que se dá através do olhar? A projecção de um sentido, a espiritualização das materialidades. Imagens recebidas e sentido projectado. Onde está a materialidade do mundo externo ou a do observador? Dissipou-se, desmaterializou-se, tornou-se puro espírito. Os olhos são lugares de espiritualização do mundo, neles e por eles os mundos externo e interno tornam-se num único mundo espiritual. Os olhos, contudo, são uma sinédoque, onde a parte é tomada pelo todo. Os sentidos não são simples janelas para a materialidade do mundo exterior, mas locais de rarefacção da matéria e de espiritualização do mundo. Cada sensação é já a expressão da presença do espírito. O prazer das sensações é um prazer espiritual e a própria sensualidade é uma forma de espiritualidade. Daí que ela possa ser sacralizada, como acontece em várias tradições. Mais interessante que reprimir a sensualidade, será a perceber o que há de sagrado em cada sensação, aprender a deixar que ele se manifeste na pujança dessa sacralidade e como expressão pura do espírito. Não é no olhar que o amor se manifesta?

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Vestígio de sombra

René Magritte - Les Épaves de l'Ombre (1926)

Quanto nas nossas acções haverá de vestígio de sombra? A sombra é um exercício de equilíbrio difícil, um jogo entre a obscuridade e a chama ardente. Ela é o compromisso entre a luz e as trevas, entre o apelo luminoso à pura transparência dos nossos actos e a obscuridade tenebrosa que serpenteia no nosso íntimo. Muitas vezes senti, em consequência de uma dada acção pública, a qual nada tinha de socialmente censurável, um sentimento de desconforto, como se uma impureza a maculasse. Talvez isso acontecesse quando era muito novo e o espírito fosse mais sensível. Esse incómodo, apesar da natureza socialmente adequada da acção, era o sintoma do carácter sombrio do agir humano, de em cada acto misturar a luz que me transcende e as trevas que me habitam. Para alguém estruturalmente contemplativo, a acção, pura que seja, nunca deixa de ser vista como um trazer de luz e trevas ao mundo, com um vestígio de sombra.

domingo, 22 de abril de 2012

O horror ao vazio

Edward Hopper - Sun in an Empty Room (1963)

Um dos temas mais recorrentes da psicopatologia social - chamemos-lhe assim - é o do horror ao vazio. As pessoas temem acima de tudo esse estar vazio e preenchem-se com mil afazeres e inúmeros pensamentos e sentimentos. Não serão, porém, esses afazeres, pensamentos e sentimentos mais vazios que o vazio? O vazio é a condição essencial para que algo possa vir e permanecer. Mas para que esse algo possa vir é preciso persistir no esvaziamento de si, é preciso aprender a estar vazio sem que o horror tome conta de nós e nos precipite para as múltiplas ilusões que se nos oferecem. O horror ao vazio vem do medo de enfrentar a nossa condição, de permanecer em silêncio perante ela e de a aceitar naquilo que ela tem de arriscado. Tornar-se vazio é a preparação para o grande encontro, é a abertura para aquilo que nos ultrapassa possa chegar até nós e nos interpelar. O vazio é a clareira onde o ser se manifesta com a sua luz. O horror ao vazio é o medo da luz.

sábado, 21 de abril de 2012

A transparência dos corpos

Pierre Bonnard - Le Paradis Terrestre (1916-1920)

A ideia de um paraíso terrestre poderá ter chegado aos homens através da experiência do seu corpo, da carnalidade do seu corpo. No mito bíblico isso torna-se evidente pela transição da nudez para a necessidade sentida de ocultação dos genitais. Estamos ainda antes da sentença de expulsão proferida pelo Juiz Supremo, mas esta sentença é apenas a confirmação de algo que já tinha ocorrido: Adão e Eva já estavam fora do paraíso. O que está em jogo é a experiência da opacidade da carne. A cobertura dos genitais simboliza essa opacidade e marca a consciência de uma tensão entre a transparência e a opacidade. Por desnudado que esteja, um corpo é opaco, a luz não penetra nele. Se o ilumina, é ainda e só na sua dimensão exterior. A nudez inconsciente anterior à falta de Eva simboliza um ideal de transparência da carne. Esta apresenta-se aí como aquilo através do qual se vê. Mais do que um corpo belo e perfeito na sua materialidade, os homens sonham um corpo transparente, através do qual a luz possa fluir. A beleza e a perfeição de um corpo residiria, desse modo, nessa transparência, o que significa a invisibilidade do corpo. Belos são os corpos que se vêem como se não se vissem. O castigo divino é, em última análise, o tornar visível da carne. O fascínio que esta exerce, por isso, é ambíguo. Ela atrai para si o espírito - como acontece no desejo sexual - mas atrai-o com a promessa de se tornar transparente. O que os amantes aspiram no amor é à fusão, que não é outra coisa senão o desejo de transição do corpo opaco ao corpo transparente, a transição para a invisibilidade corporal. 

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Haikai do Viandante (67)

Van Gogh - Painter on His Way to Work

Sigo pela estrada
o meu destino; sou sombra
e luz desvairada.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A canção da carne

Max Ernst - La chanson de la chair

Talvez o enigma da carne resida na sua íntima conexão com o tempo. É através dela que entramos no reino da temporalidade. Por exemplo, a experiência da rotação entre dia e noite ou a revolução das estações com o seu eterno retorno ainda não representam por si a experiência do tempo. A experiência directa do tempo nasce da progressiva consciência das metamorfoses da carne. São estas transformações que arrastam o espírito e o prendem no fascínio temporal. Trata-se de um verdadeira queda. A intemporalidade espiritual é arrastada pela carne para a finitude e a mutação. Mas não seria mais sensato falar de corpo em vez de carne? Não. Apesar do corpo, do meu corpo, ser carnal é possível separar um do outro. Pelo corpo, experimento o espaço e o limite da minha figura; pela, carne percebo o tempo e, como disse, a finitude. É através dela que tenho acesso ao fluxo da vida. É este fluxo, onde o espírito caiu, que é uma elegia, a verdadeira canção da carne.

Poemas do Viandante (262)

Manet- On the Beach

262- MANET, ON THE BEACH

a vinha nunca vindimada
coberta de sombras
veleiros e espuma

uma memória 
de corsários
sobre a pálida areia

e no rasto das ondas
o vai-vem de um amor
guardado numa história

terça-feira, 17 de abril de 2012

O ar da montanha


Demasiado puro o ar da montanha. Esquecido, quantas vezes o viandante passa ao lado do que é essencial. Essa lateralização da vida nem se deve aos deveres que a existência impõe, mas às expectativas que nascem no espírito, essas pequenas e grandes tiranias do desejo. Vivemos numa cultura que incensa o desejo e perdemos a sabedoria de olhar para o que desejamos, de olhar para a nossa faculdade de desejar. Contrariamente ao que o espírito deste tempo supõe e impõe, raramente o desejo nos atira para a montanha, para o ar puro e o céu azul. Numa época onde a única diferenciação que se conhece é a social, não se aprende a distinguir entre desejos, a hierarquizá-los, a eliminar muitos para que se possam cultivar alguns, aqueles que exigem a pureza de espírito, a nobreza de alma, a coragem da abdicação. Mas só o espírito puro e a alma nobre suportam, sob o céu azul, o ar puro e rarefeito da montanha.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Haikai do Viandante (66)

Van Gogh - Starry Night Over the Rhone

sombras, trevas, breu:
na água nocturna reflectem-se
estrelas e céu.

Guerra santa

Jackson Pollock - War (1947)

Esse conflito que nos dilacera, abre o peito e rasga a carne, essa guerra santa entre o desejo de tudo nos apropriarmos e o mandamento de tudo entregar, é a essência da própria vida sobre a Terra. Em cada um, defrontam-se - numa guerra sem fim - duas injunções, dois imperativos, como se ele fosse possuidor de duas vontades; ou não será melhor dizer: como se ele fosse possuído por duas vontades? Não se pense que um imperativo vem de dentro de nós e outro nos é exterior. Pura ilusão dualista. Essas duas injunções são irmãs, irmãs inimigas que combatem pelo domínio da nossa vida. Se uma é inscrição do biológico e a outra do espírito, isso não significa que uma nos seja própria e outra estranha. O conflito que nos dilacera traz consigo uma teleologia, uma finalidade: a paz. O que a guerra interna nos ensina é a exigência de uma pacificação. A sabedoria está em encontrar o caminho não para a derrota de uma das irmãs inimigas, mas uma via de reconciliação e de reconhecimento dos direitos das partes em confronto. 

domingo, 15 de abril de 2012

A voz do deserto

Giorgio de Chirico - The Red Tower

Ouvir a voz do deserto. O medo da solidão ofusca o desafio que o deserto lança a cada um. Não me refiro ao deserto geográfico, a essa paisagem de areia, sol e desolação, mas ao deserto interior, ao desenho de um espaço onde nos confrontemos com a Verdade ou, dito de outra maneira, onde a Verdade nos confronte, nos ponha em causa e desmascare a nossa ficção. Quando o deserto vem ter connosco, rasga o corpo e cresce na alma, sentimos uma angústia tão estranha que acabamos por fugir, fechar o espaço assim aberto e repousar na pura bavardage quotidiana, na efectiva alienação. Salvos daquilo que nos interpela, entregamo-nos ao fluir da nossa irrelevância. Prazeres e dores são estações da nossa cobardia perante o deserto - a praça vazia da nossa alma - e a voz que nele fala.

sábado, 14 de abril de 2012

A obscuridade mundana

René Magritte - Les Amants

Há sempre nos acontecimentos mundanos qualquer coisa de obscuro. Muitos deles são, por natureza, sombrios, como se fosse impossível mascarar uma certa rudeza constitucional das pessoas que neles participam. Noutros, mais glamorosos ou mais brilhantes, essa rudeza não é tão crua. Mas basta raspar um pouco com a unha - e não é preciso que esteja particularmente afiada - para que uma sombra se desenhe sob o nosso olhar. Um pouco mais de atenção e a sombra cresce, ganha peso, torna-se noite escura. No entanto, quantas vezes a natureza olhada a partir da nossa solidão mantém um brilho e um vigor inalteráveis? A questão que nasce na mente do observador está assim ligada não ao mundo e à natureza mas ao mundano, essa forma própria dos seres humanos perverterem o paraíso. A sombra projectada é a figuração da egoidade humana, esse desejo de ser alguma coisa, esse querer emergir do nada que se é. A obscuridade mundana nasce dessa incapacidade dos homens perceberem-se enquanto meros grãos de areia perdidos e errantes num universo infinito.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Poemas do Viandante (261)

Monet - Houses of Parliament. The Sun Shining  through the Fog

261.  MONET, HOUSE OF PARLIAMENT. THE SUN SHINING THROUGH THE FOG

sombras da noite
rasgam o dia
e o sol cansado
deixa correr
entre lábios
um suspiro
uma agonia


quinta-feira, 12 de abril de 2012

Haikai do Viandante (65)

Vincent Van Gogh - Red Vineyards

vermelho vinhedo
uma promessa de amor
afasta o medo

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Poemas do Viandante (260)

Sisley - Snow on the Road Louveciennes

260 - SYSLEY, SNOW ON THE ROAD LOUVECIENNES

a nostalgia dos invernos
que nunca vivemos
essa música
de seda
sobre um mar de neve

árvores despidas
um céu de cinza
e a solidão presa
na estrada
onde nunca passarás

como amamos
- nós que vivemos
sob o império do sol -
essas terras mais a norte
onde o inverno lembra
um natal preso
na memória da infância

terça-feira, 10 de abril de 2012

Haikai do Viandante (64)

Van Gogh - L'Allée des Alyscamps

são chamas no céu
verão de fogo inverno
breve fogaréu


segunda-feira, 9 de abril de 2012

Haikai do Viandante (63)


Sobre o rio uma árvore
e um homem na água preso:
estátua de mármore.

domingo, 8 de abril de 2012

Ressurreição


Começar mais uma vez? Recomeçar? Uma ressurreição que seja uma retorno ao começo não é uma ressurreição, mas o eterno retorno do idêntico. O que haverá no mistério da ressurreição de Cristo que prenda ainda a fé dos homens? Sim, certamente, a promessa da vitória contra a morte, a ideia de uma vida eterna, a expectativa de um além onde não haja condenação ao nada eterno, tudo isso é atraente, tudo isso fixa a imaginação popular, e dá-lhe um suporte intuitivo para a fé. Será, porém, isso que está em jogo? Melhor, será apenas isso que se jogo no mistério da ressurreição de Cristo? 

Se for apenas isso, então é uma espécie de desafio para que se protele a vida nova, que se adie para depois da morte a ressurreição. A ressurreição crística, todavia, é um desafio a nós que estamos mortos e não o sabemos. A nossa morte não é a mera morte zoológica ou biológica, mas a morte em que mergulhamos na vida biológica, nessa preocupação excessiva com a nossa animalidade. A ressurreição de Cristo é o chamamento para uma vida plena aqui e agora. A morte de Cristo não é uma morte metafísica, puramente simbólica, mas uma morte no aqui e agora da História da humanidade. 

A historicidade dessa morte (mesmo que essa historicidade seja apenas uma mera crença não justificada) é o indício que nos evidencia que a ressurreição é aqui e agora, a ressurreição da nossa vida diminuída e diminuta, da nossa vida mesquinha e sem sentido. Ressurreição não é um mero facto. É um desafio que é lançado ao homem vivo, para que na vida, em cada um dos seus instantes, triunfe sobre a morte. Não se trata de retornar ao mesmo, ao idêntico, à pura biologia, mas de se diferenciar, tornar-se outro, tornar-se naquilo que se é, resolver o mistério da sua própria existência.

sábado, 7 de abril de 2012

Poemas do Viandante (259)


259.  MANET, CRISTO MUERTO Y DOS ÁNGELES

desprendido
dos cuidados do dia
o corpo entregue
à paz do sepulcro
um abismo de trevas
na voz do anjo

de respiração suspensa
espera a hora
em que não haverá hora
a luz iluminada
do mundo 
um traço de agonia
na cal da madrugada

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Poemas do Viandante (258)

Manet - Cristo escarnecido por los soldados

258. MANET, CRISTO ESCARNECIDO POR LOS SOLDADOS

a luz mais pura
sob a noite

frágil
na solidão

ferida
na dolorosa dor

aberta para 
o mar da criação

Arvo Pärt, St. John Passion


Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Haikai do Viandante (62)


cai branca a neve
frágil musgo linho ou seda
veludo tão leve

Poemas do Viandante (257)

Monet - Springtime

257. MONET, SPRINGTIME

a breve ventura
desliza

sombra
promessa
campos verdes

e o amor
sempre regressa

quarta-feira, 4 de abril de 2012

A experiência da Verdade

Kiss of Judas Iscariot, anonymus of the 12th century, Uffizi Gallery, Florence


O Filho do Homem segue o seu caminho, como está escrito acerca dele; mas ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue. Seria melhor para esse homem não ter nascido. (Mt 26:24)

Esta passagem do Evangelho de Mateus coloca um problema de difícil solução, a aporia do livre-arbítrio. A escritura determina o caminho do Filho do Homem, o seu destino: o ser entregue. Esta determinação choca com a pressuposição do livre-arbítrio daquele que O vai entregar. A pena, em forma de ameaça, subjacente à frase "Seria melhor para esse homem não ter nascido" só é compreensível no âmbito da liberdade da vontade. Como conjugar a determinação do destino de Cristo com o livre-arbítrio de Judas Iscariotes? Se este fosse efectivamente livre a entrega do Filho do Homem era meramente ocasional, dependente da liberdade da vontade de Judas. A salvação seria meramente contingente e não decorreria de uma necessidade lógica da história da salvação.

O problema surge da tentativa de interpretar racionalmente o versículo, de submetê-lo à lógica apofântica, onde os juízos devem obedecer aos princípios lógicos da identidade e da não-contradição. O horizonte do nosso entendimento permite perceber a indeterminação quântica, o determinismo presente na física clássica e o livre-arbítrio do agir humano. Estes três estratos do real não são, para o nosso entendimento, incompatíveis. A grande dificuldade sentida reside na compatibilização da sobredeterminação providencial (aquela que determina, segundo a escritura, a entrega do Filho do Homem) e a liberdade humana.

Se dermos um passo para fora da tradição ocidental talvez possamos encontrar um caminho de resposta. Para o Budismo-Zen um koan é uma pequena narrativa ou, mesmo, uma simples questão que, à luz da razão, é impossível de compreender. A resposta racional é sintoma de uma mente não iluminada. Os koans são dados, pelos mestres, aos discípulos como caminho de meditação cuja finalidade é a iluminação. A verdade não é dada pela razão mas pelo transcender dos limites desta. Ora o versículo de Mateus constitui um verdadeiro koan. Isto não significa qualquer tipo de influência de uma tradição sobre a outra. Significa apenas que há algo no cristianismo que não se dirige à nossa razão, a não ser de forma secundária. Esse algo apresenta-se como um caminho de meditação. Esta não significa encontrar uma explicação racional para a aporia, mas fazer a experiência da verdade que ali se revela e, ao mesmo tempo, se oculta. A verdade de Cristo e do cristianismo será menos a verdade de proposições lógicas e mais a verdade de uma experiência existencial. Não disse Ele que era a verdade, a via e a vida?

terça-feira, 3 de abril de 2012

Poemas do Viandante (256)

Monet - La Plage à Sainte Adresse

256. MONET, LA PLAGE À SAINTE ADRESSE

a melancolia
dos dias de praia
solidão partilhada

nuvens e cinza
no desejo desejado

o teu corpo arde
barco solitário
na areia da tarde

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Pobres sempre os tendes

encontrado aqui

De facto, os pobres sempre os tendes convosco, mas a Mim não me tendes sempre (Jo 12:8).

Tratará este versículo do Evangelho de João da facticidade da pobreza? Estaria Jesus a informar os circunstantes acerca das ilusões existentes nas futuras, embora ainda muito longínquas, políticas sociais de erradicação da pobreza? Estaria a reafirmar como inelutável - uma espécie de condenação ontológica - a pobreza entre os homens. Se assim fosse, estar-se-ia a reduzir os textos evangélicos a uma espécie de manual de sociologia e de ideologia política. Não é nestes jogos de linguagem, para utilizar a expressão de Wittgenstein, que as palavras evangélicas se devem integrar e ler.

Se as colocarmos no âmbito da sotereologia, no jogo de linguagem da salvação, elas terão uma leitura mais pertinente e adequada. Podemos ousar ler o versículo da seguinte maneira: cada um de nós terá sempre em si os pobres, aquilo que é ontologicamente diminuído, aquilo é eternamente um ser e um não ser, uma existência precária e efémera. Os pobres não nos são exteriores, não são pobres sociais, gente sem bens materiais, mas aquilo que em nós nos desvia de algo mais essencial, da riqueza imperecível e eterna. Os pobres em nós podem inclusive ser as riquezas materiais, os bens intelectuais, a glória vinda da honra e da fama. Os pobres são as nossas múltiplas inclinações para o efémero, o inconsistente, a ilusão.

Esse que nem sempre temos também não é alguém exterior, mas o que está no mais fundo de nós. Mas esse «a Mim não me tendes sempre» não é o prenúncio da morte de Jesus? Sim. Mas o texto evangélico não é apenas - ou não é essencialmente - uma narrativa de factos históricos. Aquele que não temos sempre é, paradoxalmente, O que está sempre no mais fundo de nós mesmos, O que a nossa preocupação com os pobres - no sentido acima referido - nos faz perder constantemente. A semântica  do versículo joga-se nessa tensão entre pobres e Mim, entre a pobreza da nossa materialidade e a riqueza do espírito que nos habita. Não, por acaso, o contexto evangélico (Jo 12: 1-11) contrapõe o dinheiro para os pobres e o dinheiro gasto em perfume, com que Maria perfumou o Senhor. A nossa riqueza, isto é, a nossa atenção e o nosso cuidado deve ser dado ao Espírito que é a verdade mais funda que exista em cada ser humano.

domingo, 1 de abril de 2012

Haikai do Viandante (61)


a chuva chegou
lenta ave de primavera
e a terra cantou