sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (10)

Albert Rafols Casamada - Viaje de noche (1981)
10. Escurece. Presságio desse reino

Escurece. Presságio desse reino
infestado de sombras, infestado
pelo terror aceso nessas mãos
que, assassinas, ardem pelos dedos.

Correm contaminados pela noite
rios cheios de solidão. Fantasmas pálidos
sussurram ao passar, querem a foz,
a luminosa lei do sal e luar.

Sombras prodigiosas deste mundo,
terras bravias e inóspitas calai-vos.
Deixem que a noite venha, flor sem pétalas,

caiar casas e muros, solidões
feitas de nuvens, pedras incendiadas,
o traço vagaroso, luz no mar.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (108)

Gustavo Torner - Erica, Arbórea, L

Um ramo partido
levanta-se para o céu.
Vai leve e dorido.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A via do viandante

Ernst Ludwig Kirchner - Il sentiero dell'alpe; Sentiero di montagna-paessagio montano con alpeggio (1921)

Muitas vezes pensa-se que, em oposição aos caminhos batidos, às sendas mil vezes palmilhadas, o viandante deve inventar novas rotas, caminhos que sejam singulares e só por ele transitáveis. Abrir um caminho não seria, nesse sentido, rasgar a terra por onde os outros passassem, mas dar o exemplo de encontrar o seu próprio caminho, de afirmar a sua singularidade, de se mostrar único. Tudo isto, por interessante que possa ser, ilude uma outra questão mais decisiva. O importante não é o caminho que se faz mas a forma como se caminha, como se viaja, como se peregrina. O inédito de cada viagem e a novidade de cada peregrinação não residem na estrada que se toma, mas na forma como o viandante a percorre. Não há via fora do viandante e aquele que ainda se preocupa com que estrada deve tomar, por muito que ande nunca sairá do lugar onde está.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (107)

Pier Luigi Lavagnino - Alberi (1969)

Tudo se desfaz.
Terra, céus, o coração
de amor incapaz.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (9)

Theodore Gericault - O beijo (1922)

9. Esse toque de sombra, essa queda

Esse toque de sombra, essa queda
infinita no abismo silencioso.
O escárnio de falar, suprema dor
de estar vivo na treva que nos cobre.

Rasgo-te na memória uma ruga,
entro na terra aberta como um pássaro
e canto em cada hora a tua figura
no rumor incendiado pelo vento.

Sempre que o deus nos olha, tudo cai.
As certezas que tínhamos são cinza,
montanhas calcinadas no horizonte,

restos de fogo e areia sobre o mar.
Entrego-me ao destino nessas mãos
e espero em silêncio a fria noite.

domingo, 25 de novembro de 2012

Sobre as águas

Lyonel Feininger - Regatta (1943)

Sopra o espírito sobre a água e os barcos, levedados no silêncio das tardes, correm, desenham esteiras no mar, precipitam-se para o porto que os aguarda. Assim são os homens, pequenas caravelas empurradas pelo vento. As pegadas que deixam na terra, logo se apagam. Quando chega a noite, alguns tremem outros cantam. O espírito, porém, permanece fiel a si mesmo e, no obscuro arbítrio que o rege, sopra onde quer, mesmo que sejamos incapazes de sentir, nestes dias de cinza e chumbo, o hálito dos deuses.

sábado, 24 de novembro de 2012

Poemas do Viandante (386)

Arturo Souto Feijoo - Ruínas clásicas (Vista de Roma) (1934-35)

386. O tempo chega com o seu manto amarelo

O tempo chega com o seu manto amarelo
e cobre casas e ruas,
o lugar onde nos amámos.

Não traz flores, o convidado,
nem há vinho sobre a mesa.

Ouve-se o veloz cavalo no horizonte
e em Tróia ou Atenas,
em Jerusalém ou Roma
tudo são pedras, ervas, poeira,
pegadas soltas,
a ruína do trabalho daquelas mãos.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (106)

Albert Bloch - Mountain (1916)

Subo a montanha,
e Deus nas cores segreda-me
que estou em campanha.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Dançar na tarde marítima

Nadir Afonso - Deusas do Vento

Abrir-se ao vento, abandonar o corpo no espaço, perder o norte, desconhecer tudo o que se sabe. Assim começa a viagem. Uma pergunta, a súbita estranheza de um mundo sem sentido, o chamamento daquilo que vem de longe e se aproxima trazido pela a aragem. A senda é uma dança com os elementos, com a terra de onde os pés se elevam, com a água que toca o corpo e o salva, com o ar que nos eleva ao fogo. 

No éter eterno, quem espera por nós, quem espera por aquele que dança? O corpo é uma labareda. Ergue-se sobre a terra, dança no céu com o fogo que se aproxima, que o chama, o rapta, e rouba-lhe cada palavra, pois o silêncio é a casa onde o fogo ilumina aquele que, sob o vento, dança na tarde marítima, na pureza azul de todos os mares batidos pela primavera, pelo verde onde um moinho nasce no centro da memória perdida.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (105)

Paul Signac - Above Saint-Tropez, the Customs House Pathway (1905)

Derrama-se o tempo
num velho herbário de cores,
mar e sentimento.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Poemas do Viandante (385)

Paul Klee - Casa giratoria (1921)

385. Na floresta

Na floresta
rodopia 
a velha casa.

Negro pássaro
preso ao céu
perdeu as asas.

domingo, 18 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (104)

Frantisek Kupka - Aguatinta (1913)

Frágeis universos.
As cores são velhos mundos
feitos de água e versos.

sábado, 17 de novembro de 2012

Caminho de sabedoria

Marcel Duchamp - Étant donnés: 1º la chute d'eau, 2º le gaz d'éclairage (1946-66)

A experiência da porta é uma das mais essenciais na viagem. Cada porta representa um enigma, mas também um desafio e uma possibilidade. O viandante faz a experiência do limiar, desse não estar dentro nem fora, sente a perplexidade por estar prestes a deixar o conhecido e entrar no desconhecido. É neste desconhecido que está o enigma, o desafio e a possibilidade. Quando se chega a uma porta fechada é porque todas as possibilidades anteriores estão consumadas e um instinto certeiro nos conduz aquele limiar. Perplexo, o viandante sente o coração dividido entre o conhecido e realizado e o não pensado, o não sabido, o não realizado. Naquele instante, a viagem pode terminar ou, então, ganhar sentidos inesperados, pois novos possíveis se escondem atrás da porta. Tudo depende do viandante, da sua disposição, da atracção que ele permite que o atinja vinda do outro lado da porta. Um livro, um quadro, uma pessoa, uma situação. Tudo isso pode ser uma porta, isto é, um enigma, um desafio e um possibilidade que chama por nós. A sabedoria está em discernir, no caminho, que portas devemos abrir e aquelas que devemos passar ao largo. Um caminho de sabedoria é aquele que é feito de porta em porta, um caminho singular e intransmissível.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (103)

Mon Montoya - ¿Hasta cuándo conservaron la ilusión de que podrían quedarse? (1999)

Símbolos, sinais,
sintomas desta viagem;
rudes e fatais.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Poemas do Viandante (384)

Anónimo Realista del Siglo XIX - The Train between Stokton and Darlington, Great Britain (1827)

384. A fuligem

A fuligem
que se solta
do ferro.

Pura poalha
à janela
do inverno.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (8)

Pierre Auguste Renoir - Gabrielle con la rosa (1911)

8. Deixas o olhar preso num sonho

Deixas o olhar preso num sonho
e com a mão suspensa no ar
quase me tocas, quase feres
o que em mim clama por ti.

Que f’rida purga no desmando
que arde no teu rosto cansado?
Um véu de cinza, a velha rosa,
tão desfolhada se perdeu.

Noite em que tudo desfalece,
onde os sorrisos de outrora
e o bravio cântico de amor?

Alma fechada e vazia,
perdeste o fogo e o delírio,
resta uma flor exausta e fria.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (7)

Ernst Ludwig Kirchner - Desnudo femenino de rodillas ante un biombo rojo (1912)

7. Seio descuidado aberto sobre o mundo

Seio descuidado aberto sobre o mundo,
luz matinal que me incendeia o desejo.
Pobre esperança de tocar o fundo
desse teu corpo que espero e vejo.

Seda e cetim, puro algodão em flor,
prazer secreto sob a minha mão.
Despida e nua – oiço sombrio rumor –
dás o teu corpo. Nunca digo não.

Chegada a hora, as mãos e os dedos
abrem-se, flores, ervas, rios, segredos
que desaguam agora nesta rua,

onde te espero pura, branca e nua.
Vem na fria noite iluminar os astros,
somos lua e sol, não deixaremos rastros.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (102)

Ludwig Hirschfeld-Mack - Círculo cromático com 12 divisiones (1922-23)

Círculo de cor.
Entre o dia e a noite, a vida
é sombra e rumor.

domingo, 11 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (6)

William Hogarth - The times - plate 1 (1762)

6. Secreta mutação no ventre do tempo

Secreta mutação no ventre do tempo.
Horas sombrias, azedas, horas perdidas,
o rumo ensanguentado, a vida pobre,
um rosário sem rosas. Tudo estiola

sem rumo nem segredo, no silêncio
das coisas sem sentido, sem palavras
que sejam um relâmpago, a aurora
que chega e anuncia um outro tempo.

Vertigem, dor, o bem submisso ao mal,
um exercício ávido de gritos,
de noites que não têm fim nem retorno.

O tempo que nos cabe, sol de trevas
incendiado, inferno desmedido,
metástase hedionda, fria e sem fim.

sábado, 10 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (101)

Miquel Rivera Bagur - Assossec (1989)

Vermelho deserto,
areia, sol, vasto horizonte.
A morte tão perto.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O tempo dos vendilhões

Stanley Spencer - Expulsion of the Money Changers (1921)

O episódio da expulsão dos vendilhões do templo é, juntamente com o dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, um dos elementos matriciais da cultura ocidental. Se a separação entre Deus e César prefigura a separação entre religião e política, a expulsão dos mercadores do templo revela um topos cuja estrutura merece ser meditada. Há múltiplas leituras do acontecimento. Por exemplo, Mestre Eckhart, num dos seus sermões, faz uma leitura simbólica e espiritual, sem qualquer incidência política e social. A natureza simbólica dos textos evangélicos implica a existência de múltiplas leituras que não se excluem mas complementam. Este episódio, do ponto de vista social, não significa apenas a divisão dos espaços, a separação rigorosa do locus do espírito do locus do mercado. Significa também a sua hierarquia. As coisas espirituais estão acima das questões de mercado, de tal maneira que estas estão impedidas de se misturar com aquelas. No ideal regulador da vida do ocidente, esta separação e hierarquização sempre esteve presente, as coisas do espírito estão acima das questões do mercado e têm sobre estas preeminência.

A modernidade pode ser vista como um processo de subversão desta velha hierarquia. Lentamente, os mercadores expulsos do templo começaram a invadir as esferas que não lhe diziam respeito. Infiltraram-se na ciência e na política. Transformaram a ciência numa cadeia de apoio aos negócios e converteram a política à protecção do lucro privado dos vendilhões expulsos do templo. A vingança contra o templo de onde foram expulsos veio a seguir. Veio não apenas através da conivência entre os guardas do templo e os vendilhões, mas no acto de substituição do próprio templo. Os bancos são as novas catedrais onde os mercadores se entregam à corrupção do espírito e à corrosão do carácter dos homens. A vida, que um dia foi organizada em função do espírito, é agora toda ela voltada para o mercado e vivida em função do dinheiro. Os mercadores expulsos por Cristo voltaram e criaram os seus templos, onde o espírito não tem lugar, para invadirem e contaminarem todas as esferas da vida. No entanto, no fundo dos homens o episódio evangélico da expulsão dos vendilhões não deixa de ecoar, gerando a sensação de que alguma coisa está mal, de que alguma coisa insensata inverteu a natureza das coisas, de que o mundo está fora dos eixos.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (100)

Thomas Hart Benton - Impression, Camouflage (World War I) (1918)

Céus em turbilhão.
E nas águas partem barcos,
vai-se o coração.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Poemas do Viandante (383)

Gwen John - A Corner of the Artist’s Room in Paris (1907-9)

383. Esse lugar vazio

Esse lugar vazio,
não sei como preenchê-lo.
Espreito da janela,
vejo uma mesa e um livro,
vejo uma sombra lívida,
mas não consigo ver
onde está a tua mão
para perder-me nela.