sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Poemas do Viandante (448)

Lisa Milroy - Sky (1997-98)

448. Agora Janeiro parte

Agora Janeiro parte
Cinza e violeta.

O tempo transfigurado
Inscreve nos céus

Ramos de nuvens vermelhas,
Um súbito adeus.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Poemas do Viandante (447)

Caspar David Friedrich - Evening on the Baltic Sea (1826)

447. O inverno que anoitece

O inverno que anoitece
na sombra da tarde.

O dia que passa e se esquece
sem ninguém que o guarde.

O coração que adormece
quando tudo arde.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O lugar que me espera

Guillermo Pérez Villalta - Allì (1988)

É sempre lá ou ali o lugar que nos espera, como se a viagem fosse perpétua e o lugar, aquele que agora - em qualquer agora - ocupamos, fosse uma mera passagem. Ali é o lugar que torna a realidade do meu lugar irreal e me faz mover no caminho. E em cada passo dado, o ali avança um passo, como se ele esperasse mais e mais do viandante. Ali é o lugar que me espera.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

As mãos na massa

Ramón Rivas - Amassando o pão (1978)

A imagem do pão e do vinho é recorrente na cultura ocidental, nomeadamente na poesia. O seu poder evocador é associado à ideia de partilha - a última Ceia de Cristo, por exemplo - e, através dessa ideia, chegamos à vida comum, a uma forma, sempre sonhada e jamais realizada, de comunidade. É verdade que o pão e o vinho tornam-nos próximos uns dos outros, ampliando os vínculos e consolidando alianças. Todavia, a potência poética do pão e do vinho residirá noutra coisa, residirá na sua própria poeticidade, no facto de também eles serem uma produção (poiesis - ποίησις), de resultarem de uma dinâmica onde os homens são obrigados, literalmente, a pôr as mãos na massa. É este poder operativo que se manifesta na transformação dos produtos da natureza em pão e vinho que ressoa na poesia, como se o poeta intimasse o leitor a transformar-se, também ele, em pão e vinho.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Árvores no inverno

Alex Katz- A Tree in Winter (1988)

Uma e depois outra, e outra, mais outra ainda, num processo sem fim. Quantas vidas - e nós só temos uma - precisamos para aprendermos com as árvores no inverno? Deixar cair folha a folha, despir-se de cada uma das máscaras, das ilusões, de cada desejo, deixando o vento levá-los para longe. Em vez de acumular folhas, certas árvores abandonam-nas e entram na casa da morte, de onde regressam triunfantes. De quantas vidas precisamos para sermos como as árvores no inverno?

domingo, 26 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (173)

Sonia Delaunay - Broderie feuillages (1909)

paisagem bordada
no restolho da manhã
alma incendiada

sábado, 25 de janeiro de 2014

Um grão de areia no deserto

Frantisek Kupka - A via do silêncio (1900)

Qual é o poder do silêncio? O poder do silêncio é a sua impotência. O silêncio enquanto silêncio não tem poder. O silêncio puro é impotente. (Raimon Panikkar, Mystique plénitude de Vie)

Raramente reparamos que a palavra, o uso da palavra, é uma forma de potência, apesar de nunca esquecermos de sublinhar o poder da palavra, sobre o qual se constroem inúmeros desvarios. O silêncio não é apenas impotência, mas convite a uma atitude essencial, convite à perda de poder. Só pode abdicar do poder aquele que alguma vez o teve. Quem escolhe o silêncio não é o que está impedido de falar, mas o que, tendo a potência do logos, dela abdica para se tornar um grão de areia no deserto.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Poemas do Viandante (446)

William Congdon - Winter (1950)

446. Ainda soa o tambor da morte

Ainda soa o tambor da morte.
Rufa no incenso da tarde,
abre clareiras no Inverno.

Ardendo de fria devoção,
um pássaro canta,
ergue a voz ao vento
e sobre as nuvens espalha

uma tinta de água azul.
Os dias crescem lentos
e o tambor não pára de rufar.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Do sentimento de harmonia

Henri Matisse - Harmonia em vermelho (1908)

Facilmente, o espírito se deixa enredar num equívoco sentimento de saudade de um tempo em que, na vida, reinava a harmonia. Essa harmonia, contudo, nunca existiu, não passava do mero desconhecimento daquilo que já nos cindia e dilacerava. A desordem, a desproporção, a assimetria são a nossa condição originária. A harmonia é o sintoma de um cansaço que a vida inscreve em cada um de nós.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Da realização do real

Albert Gleizes - Contemplação (1944)

Um estranho equívoco apoderou-se da ideia de contemplação. Pensa-se que é uma alienação do real, uma absorção do ego em si mesmo ou em algum objecto que o fascina e que, nesse fascínio, não é mais do que a projecção desse ego. A contemplação, porém, pouco tem a ver com os desvarios do ego. Contemplar é o encontro de duas presenças que, nesse instante, se tornam numa pura realidade. Não é uma alienação, mas, no verdadeiro sentido da palavra, uma realização. Na contemplação, a realidade realiza-se, torna-se efectiva, torna-se real.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (172)

Piet Mondrian - Composition in Blue, Grey and Pink (1913)

azul cinza e rosas
desenham pela planície
ruas misteriosas

domingo, 19 de janeiro de 2014

Do caminho rochoso

David Teniers the Younger - Landscape with Rocks

Se o deserto é o lugar da tentação, as paisagens rochosas convocam o viandante à elevação, à ultrapassagem. O monotonia da identidade - essa aparência de imutabilidade que o deserto faz nascer - tenta aquele que por ali se perde. O mundo rochoso e escarpado desafia o caminhante a cada instante, propõe-lhe novos e novos enigmas, esmaga-o com a inúmera diferenciação de tudo o que existe. Cada diferença na paisagem é uma provação. Caminhar é, então, vencer cada uma das diferenças que a paisagem traz e elevar-se ao lugar onde as pode contemplar na sua invencível diferenciação.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Anunciar e aproximar

Rafael Barradas - Anunciação (1928)

Em toda a anunciação há um dar a conhecer. Neste dar a conhecer encontramos um acto de partilha do conhecimento, um exercício de aproximação entre o anunciador e aquele que escuta. Este exercício de aproximação, porém, não basta para tornar o outro num próximo. É preciso que o outro se entregue activamente ao acto da escuta, o que inclui a escuta crítica, que se aproxima e se mantenha nessa proximidade.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O caminho na noite

Lucio Fontana - Ambiente espacial e luz negra (1948-49)

É nos dias em que a luz se tinge de negro, em que a escura noite desce sobre os sentidos e o coração, que o espaço se abre e intima o viandante a prosseguir a viagem. Cego, escuta o rumor e ouve o vento. O caminho é aquele que ele próprio, no espaço sem fim, desenha com cada um dos seus passos. A noite também é tempo de viagem.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (171)


Serena e cansada
abre-se nesta manhã
a pele rasgada.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A cidade abandonada

Fernand Khnopff - A cidade abandonada (1904)

Ressoa na ideia de cidade abandonada algo tão cativante que o viandante fica fascinado e incapaz de lhe medir o perigo ou de lhe analisar o sentido. Vazia, a cidade torna-se o lugar de todos os possíveis, a esperança de todas as mitologias, o sítio onde se escondem os milagres. O viandante, ao longe, olha-a e é a si que se vê no abandono que a viagem lhe traz.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O homem livre

Ignacio Iturria - Armário genealógico (1998)

Todos transportamos o peso do passado. Nobres ou plebeus, os homens são verdadeiros armários genealógicos, de onde salta o passado para nos assombrar ou consolar, para nos oprimir ou incendiar o orgulho de casta. O homem livre, porém, deixou a árvore genealógica e, separado das raízes, é uma semente que vai onde o vento a levar. Não tem pai nem mãe, não tem genealogia.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Uma flor esquiva

Agnes Martin - Flor al viento (1963)

Há quem pense que um tratado sobre a vida ensinará a viver. Socorridos pela razão teórica, amparados na geometria dos argumentos, os homens tornar-se-iam sábios e prudentes. A vida, porém, é uma flor esquiva que ama a incerteza e que medra no caos e no desconcerto. Pega na razão e rasga cada um dos seus tratados. Senta-se e espera que o vento sopre.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Sabedoria

Francisco Soto Mesa - 1.98.1 (1984)

Há aqueles  que andam à deriva e não sabem que rumo tomar, entregues à errância e à perdição. Outros traçam objectivos e, pela força da razão e da vontade, cumprem-nos. Os terceiros, porém, não estão perdidos, mas também não têm objectivos. Escutam e seguem uma voz que não sabem de onde vem nem para que terra os impele. É nestes que desce a sabedoria.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A terra da alegria


Deixar o silêncio branco da pedra chegar, abrir-lhe a porta, recolhê-lo no fundo do coração. Depois, cuidar dele, regá-lo dia a dia, até que floresça, se torne casa e pátria, o lugar que espera por ti. A terra da alegria.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O jardim abandonado

Raoul Dufy - O jardim abandonado (1913)

Quando se pensa no jardim do Éden, pensa-se sempre na história da expulsão do homem e do duro destino que lhe coube. O mito, com o fascínio que exerce, acaba por ocultar uma outra vertente da narrativa. O homem foi posto no jardim para cuidar dele. O jardim era, desse modo, algo que precisava do cuidado do homem. Ao ser expulso, o jardim foi abandonado. Podemos supor, na nossa imaginação, pois é a ela que os mitos se dirigem, que esse lugar, ao perder o jardineiro, se tornou selvagem e espera pelo retorno do homem. Dito de outra maneira, há um jardim que espera por nós, pois precisa do cuidado do homem.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Poemas do Viandante (445)

Benvenuto Benvenuti - Inverno - Manhã (1905)

445. Terrível a solidão do Inverno

Terrível o silêncio do Inverno.
Desce pela manhã
e abre clareiras de bruma
entre sombras e arvoredos.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Do caminho e da viagem

Wassily Kandinsky - À volta da linha (1943)

Talvez a viagem que cabe fazer a cada um de nós seja sempre por uma linha recta. Isso significaria que teríamos o dever de a fazer o mais rapidamente possível. Porém, à volta da linha amontoam-se os objectos, as solicitações, as miragens, tudo aquilo que desvia o desejo e torna o caminho perigoso e lento, tão lento que uma vida generosa em anos não chega para o percorrer e consumar a viagem.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Abrir caminhos

Ferdinand Hodler - Triunfo da técnica  (1897)

Talvez fosse de bom tom afirmar que a técnica esmaga o homem, que este fica preso no artifício dos dispositivos que inventa para tornar a vida menos pesada. Mas haverá ainda homem se o despojarmos de todo e qualquer dispositivo técnico? Não é já a linguagem uma prótese técnica? Pensa-se, por vezes e não sem ingenuidade, que meditar e contemplar seria entrar num mundo não técnico, num mundo desprovido de dispositivos e próteses. Mas a mais singela meditação ou a mais profunda contemplação são fruto de um artifício técnico, como se o acesso ao "não técnico" exigisse a mediação da técnica, dos dispositivos e próteses que, pertencendo ao mundo dos objectos mecânicos ou ao mundo das técnicas do espírito, abrem caminho por entre as limitações da condição humana.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (170)


Um pássaro canta
no musgo verde da rocha:
a onda o levanta.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O caminho tortuoso

Remedios Varo - Caminhos tortuosos (1957)

É um desejo infantil que nada na vida seja sinuoso, que tudo se desdobre segundo o desejo do momento, que o caminho seja linear e desprovido de embustes, ilusões e obstáculos. Para que serviria, porém, tal caminho? É na sinuosidade da viagem que o viandante escuta o sopro do vento e, na dificuldade dos obstáculos, aprende a obedecer àquilo que o caminho impõe. Na curva inesperada não está apenas a ameaça de morte, mas também a surpresa que o espera e lhe dá alento e vigor para continuar a viagem.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O tempo dos viajantes

Liubov Popova - The Traveler (1915)

Vivemos em tempos de nomadismo. Não se trata apenas daqueles que, pela imposição da estrita necessidade, se vêem obrigados a emigrar, mas do culto pela viagem induzido pela moderna indústria do turismo. Este viajar, porém, acaba por fragmentar o viajante, pois, levado pelo desejo, submete-se à multiplicidade de sensações sem nunca poder aceder ao centro nevrálgico que unifica os mundos pelos quais passa, nem encontrar o caminho para si mesmo. Viajar não passa de um divertissement, tal como o entendia Pascal, uma estratégia de esquiva perante a efectiva realidade humana. Viajar tornou-se um exercício de ideologia, se entendermos por esta uma visão distorcida da realidade.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A luz da verdade

George Inness - Winter, Close of Day (1866)

Os dias já começaram a crescer, mas a chuva persistente traz consigo a nostalgia de um tempo que parece ter acabado. Não a nostalgia do passado, mas a memória viva de um relação mais funda com a terra e o céu. Recolhido no dia, o viandante medita sobre a verdade, sobre essa estranha promessa que une o que está em cima e o que está em baixo. Nestes dias, tudo parece mais autêntico, como se a nossa verdade estivesse na luz contida e espessa que do alto se derrama sobre nós.