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terça-feira, 9 de agosto de 2016

A mulher adúltera e a consciência de si

Max Beckmann - Christ and the Woman Taken in Adultery (1917)

Um episódio central para compreender a dependência da modernidade ocidental - aparentemente, tão pouco cristã - do cristianismo é o da mulher adúltera (João 8:1-11). Dois elementos evidenciam já a ultrapassagem da leitura formal da tradição. Em primeiro lugar, a não condenação da mulher em contradição com a lei mosaica. Essa não condenação, porém, emerge da afirmação da subjectividade dos actores do episódio, dos acusadores e da acusada, e este é o segundo elemento. É a confrontação com a sua subjectividade que leva os acusadores a abandonar o projecto da acusação. A própria mulher é posta diante de si mesma e da sua consciência nas palavras finais de Cristo. O que há de notável neste episódio - mais do que a retórica gasta e inútil do amor - é o confronto entre as estruturas objectivas do mundo social exterior aos indivíduos e a consciência subjectiva. E é nesta que tudo agora se deverá decidir.

sábado, 6 de agosto de 2016

O filho pródigo e o homem moderno

Giorgio de Chirico - Ritorno del fliglio prodigo (1965)

Na parábola do filho pródigo (Lucas 15:11-31) há uma equivocidade central que tem o efeito surpreendente de transformar em filho perdido não aquele que dissipou os bens herdados mas o que se manteve fiel à casa paterna e à regra nela existente, isto é, que se manteve fiel à tradição formal. O reconhecimento é dado ao que experimentou o peso e as consequências da autonomia e se reencontrou depois de se ter perdido. Aquele que nunca se perdeu, o que se manteve fiel à forma, fica preso no ressentimento, incapaz de lidar com as mudanças introduzidas pelo tempo. Esta parábola é fundamental para podermos compreender por que motivo a modernidade, com todas as suas características, emergiu no âmbito do cristianismo. O filho pródigo é o arquétipo ancestral do homem moderno, o que faz de cada um de nós filho pródigo em busca de si mesmo.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A grande utopia

Adriano Sousa Lopes - Pastor na Serra da Estrela

Uma longa tradição - religiosa e política - associou aquele que dirige um grupo humano à figura do pastor. Este tem como missão cuidar do rebanho, evitar a perda de alguma ovelha. O pastor era a metáfora, num mundo tradicional, para o mestre espiritual e o chefe político. A modernidade aniquilou essa velha relação entre o pastor e o rebanho. Contudo, ela não destruiu a figura do pastor. Pelo contrário. Tornou-a um imperativo para cada homem. Cada um deve ser o pastor de si mesmo, cuidar de si espiritual e materialmente. Auto-governar-se. É esta - e não a sociedade igualitária - a grande utopia do tempos modernos.

sábado, 23 de agosto de 2014

A luz e as trevas

JCM - Mitologias (Sonho numa noite de Verão) (2014)

O tema da luz assedia a imaginação do homem de tal maneira que nunca estará esgotado. Sempre novas configurações do tema virão adicionar-se às anteriores, projectando novos clarões sobre as densas trevas. Seja a luz natural da razão que a modernidade e o iluminismo incensaram ou a luz sobrenatural vinda de não se sabe que primórdios, a verdade é que a luz parece ter apenas um parco poder, o de abrir uma clareira nas escarpas da escuridão. E isso tem sido o suficiente para o infinito trabalho da imaginação sobre a eterna luta entre a luz e as trevas. 

domingo, 27 de outubro de 2013

Um rasgão no véu

James Ensor - Calvário

Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. (Lucas 18:14)

Como, numa sociedade como a nossa, poderá ser recebida esta palavra de Lucas? Os tempos modernos têm na sua essência a exaltação do eu. Tudo está organizado para fortalecer e glorificar esse eu exaltado, um eu que, segundo o ethos moderno, deve seguir o seu interesse próprio. A própria medida do comportamento racional é-nos dada pelo acordo da acção com a defesa do interesse próprio. A humilhação do eu é, portanto, um desafio à lógica dos nossos dias, uma proposta que não pode ser olhada a não ser com desdém. Um escândalo, para retomar uma velha palavra. Mas não será o escândalo um rasgão no véu com que a realidade se cobre?

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Caminho de sabedoria

Pablo Picasso - Pareja de pobres (1903)

Segundo o bispo Alberto, um homem pobre é aquele que não se satisfaz com nada que foi criado por Deus; e isto está bem dito. Mas nós dizemos ainda melhor e tomamos a palavra pobreza num sentido ainda mais elevado: é um homem pobre aquele que não quer nada, não sabe nada e não tem nada. (Meister Eckhart, Sermão alemão n.º 52)

Será preciso, para compreender estas palavras de Eckhart, distinguir entre ciência e sabedoria. A ciência é a posse de qualquer coisa, de uma imagem da realidade, de uma representação das coisas. A sabedoria, porém, nasce do desapossamento total. Ela é, de facto, pobreza de espírito. A importância da pobreza não deriva de haver pobres socialmente, mas no facto de que quem procura a sabedoria deve aprender a tornar-se pobre de espírito. O que significa isto? Significa que deve abandonar todo o conhecimento ilusório adquirido no mundo, todo o domínio das aparências com que se auto-ilude. A pobreza de espírito, porém, não é apenas uma purga cognitiva e uma limpeza teórica. Ela é também uma purificação da vontade, ao abandonar toda a vontade de poder e todo o desejo de posse. Aniquilar em si a vontade de poder, de saber e de possuir é o primeiro passo para uma abertura à verdadeira sabedoria. Estas são as mais estranhas palavras que se podem dizer a uma consciência moderna, tão orgulhosa das suas conquistas, dos seus poderes e dos seus saberes. Não compreende que na verdade, por útil ou agradável que tudo isso seja, não deixa de ser vento que passa.

terça-feira, 9 de abril de 2013

O espírito e a história

Maurice Denis - Paradise (1912)

Na sequência de um post anterior, O horror da história, retorna-se à questão da história e ao seu cruzamento com experiência espiritual da humanidade. Os tempos modernos substituíram a ideia de um progresso histórico, de carácter providencial, em direcção à Parusia, a segundo vinda do Cristo, e ao Juízo Final por uma história puramente profana vista como progresso material e moral da humanidade. Em Kant, a humanidade europeia encontrou o seu pensador do progresso moral e no Conde de Saint-Simon descobriu o seu profeta da técnica. A religião cristã, já dividida pela Reforma protestante, vai deixar de ocupar a preeminência que tivera no espaço público e tornar-se um assunto do foro subjectivo dos indivíduos, agora cada vez mais atomizados. Esta subjectivação do espírito do cristianismo teve uma dupla consequência. A perda de uma compreensão global do sentido da espiritualidade, em primeiro lugar. Depois, e como corolário, a transformação da religião em mera moralidade e ritualismo, ou a sua negação, nas formas da indiferença, do agnosticismo e do ateísmo, muitas vezes organizado de forma militante e, nos últimos tempos, adquirindo uma espécie de tonalidade religiosa invertida.

A experiência da humanidade europeia, e por arrastamento da humanidade em geral, do século XX veio tornar patente os limites na crença do progresso moral da humanidade. A perda de vitalidade espiritual ocorrida nos séculos XVIII e XIX abriu as portas para as terríveis experiências totalitárias do século XX e para duas guerras mundiais. A grande experiência que a humanidade europeia, e com ela, mais uma vez, toda a humanidade, começa a fazer neste início do século XXI - uma experiência que talvez tenha começado no outro lado do Atlântico - é que as esperanças depositadas no progresso técnico-científico se estão a mostrar infundadas. O desenvolvimento do conhecimento científico e as revoluções tecnológicas, apesar dos benefícios que trazem com elas, são fontes indescritíveis de dor e de desespero. No cerne das nossas sociedades, a racionalidade tecnocientífica mostra-se impotente para gerar sociedades equilibradas e de bem-estar. Pelo contrário, apesar de alguns momentos onde as sociedades parecem querer encontrar uma forma justa de distribuição dos bens resultantes da ciência e da indústria humanas, logo se sucedem períodos de graves crises, onde o desespero cresce e a injustiça alastra. O paraíso terrestre que a modernidade, sob a ideia de progresso moral e material, prometera aos homens mostra-se, a maioria das vezes, como um verdadeiro inferno para milhões e milhões de pessoas.

Estas constatações não invalidam a bondade de uma educação virada para o progresso da moralidade nem o valor da ciência e da técnica. Mostram apenas os seus limites, os quais são muito mais profundos do que aquilo que o optimismo séculos XVIII e XIX pensou. A dolorosa descoberta que se está a fazer é que a evacuação da religião, e fundamentalmente da espiritualidade cristã, do espaço público, o seu exílio no foro subjectivo, aniquilou um espaço crítico das ilusões mundanas do homem. Destruiu também uma fonte de inspiração para a procura da verdade e do bem. As sociedades ocidentais, e por arrastamento parte das outras, passaram por um momento onde eram animadas por forças meramente mecânicas, que tiveram a sua expressão máxima nas sociedades fordistas e tayloristas do século XX, para chegarem a sociedade caóticas, onde cresce a fragilidade da generalidade das pessoas, ao mesmo tempo que pequenos grupos as submetem ao seu arbítrio e à tirania dos seus desejos, apresentados como interesses legalmente defendidos. É neste caos, já bem visível na Europa do Sul mas que em breve atingirá o centro e o norte, que se deve recolocar a questão da religião e da espiritualidade, como as forças vivas que poderão trazer um novo princípio ordenador às existências individuais e à vida das sociedades. Não uma praxis religiosa vinda da Idade Média ou dos tempos da moderna Inquisição, mas um reinvenção do cristianismo eterno e da eterna busca espiritual da humanidade. É preciso um espaço extra-mundano para olhar criticamente o mundo e as nossas ilusões sobre ele, para descobrirmos modos de vida alternativos ao caos em que nos estamos a precipitar.