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domingo, 3 de abril de 2016

Construções espácio-temporais

Theo van Doesburg - Construcción espaciotemporal II (1923)

Também a vida espiritual é uma construção espácio-temporal. Rasga um caminho na terra ao ritmo do tempo. Não se trata, contudo, do espaço exterior captado tridimensionalmente pelos sentidos nem do tempo cronológico. O tempo é o tempo oportuno, o kairós, e o espaço é aquele que, interior e exteriormente, se traça entre as diversas manifestações desse tempo oportuno, o caminho que torna a vida uma resposta aos desafios que se manifestam segundo o Kairós.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O momento oportuno

August Macke - Pescadores no Reno (1905)

Esperar como um pescador espera. Sentar-se na margem do rio, ver as águas fluir, deixar o tempo passar até que chega hora em que o peixe vem e puxa a linha. Toda a vida espiritual não é outra coisa senão o aguardar do momento oportuno, a hora em que aquilo que é essencial se revela. A viagem na sequência infinita de Chronos interrompida pela súbita irrupção do Kairós.

quarta-feira, 27 de março de 2013

A hora que se aproxima

Salvador Dali - A persistência da memória (1931)

Naquele tempo, um dos Doze, chamado Judas Iscariotes, foi ter com os sumos sacerdotes e disse-lhes: «Quanto me dareis, se eu vo-lo entregar?» Eles garantiram-lhe trinta moedas de prata. E, a partir de então, Judas procurava uma oportunidade para entregar Jesus. No primeiro dia da festa dos Ázimos, os discípulos foram ter com Jesus e perguntaram-lhe: «Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?» Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.’» Os discípulos fizeram como Jesus lhes ordenara e prepararam a Páscoa. Ao cair da tarde, sentou-se à mesa com os Doze. Enquanto comiam, disse: «Em verdade vos digo: Um de vós me há-de entregar.» Profundamente entristecidos, começaram a perguntar-lhe, cada um por sua vez: «Porventura serei eu, Senhor?» Ele respondeu: «O que mete comigo a mão no prato, esse me entregará. O Filho do Homem segue o seu caminho, como está escrito acerca dele; mas ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue. Seria melhor para esse homem não ter nascido!» Judas, o traidor, tomou a palavra e perguntou: «Porventura serei eu, Mestre?» «Tu o disseste» respondeu Jesus. (Mateus 26,14-25) [Comentário de Catarina de Sena aqui]

Em parte, o conteúdo do texto de Mateus foi já comentado aqui e aqui. Não se retornará à questão colocada pelo acto de Judas. Comentar-se-á apenas o estranho versículo 18: Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.’» A estranheza do versículo deriva da conexão entre “um certo homem” e aquilo que lhe deve ser dito.

As perguntas que surgem são óbvias. Quem será esse tal homem, que o texto apresenta de forma tão indeterminada? A importância desta figura invisível não advém apenas do facto de ser na casa dele que Cristo quer celebrar a Páscoa com os discípulos, embora o facto de ser aí precisamente e não noutro lugar não seja coisa despicienda. Esse alguém parece ter uma capacidade de compreensão do mistério crístico muito acima dos próprios discípulos, pois entende a expressão “o meu tempo está próximo”, a qual funciona como uma verdadeira senha que o leva a abrir a porta para  que seja aí realizada a Última Ceia. Quem é homem? O que sabe ele para que entenda a senha? Que relação tem ele, que não é um dos discípulos, com o próprio Cristo?

Kαιρος μου εγγυς εστιν, esta é a expressão grega do texto recebido que pode ser traduzida por a minha hora aproxima-se. É preciso distinguir entre kairos e cronos. Ambos podem ser traduzidos por tempo. Contudo, cronos remete para um tempo cosmológico que os calendários tentar fixar e dar sentido. Já kairos é o tempo existencial, e a expressão designa a hora certa ou própria de um determinado acontecer. Isto significa que aquela hora que se aproxima não se inscreve tanto na cronologia do cosmos ou da própria história humana, mas é da dimensão da irrupção de um acontecer decisivo que aguarda a hora oportuna.

Quando se diz que esse acontecer que pertence ao kairos não se inscreve na história humana, diz-se algo de muito parcial, diz-se que ele não pertence ao normal decurso dos acontecimentos sociais. Esse acontecer, todavia, acaba por se tornar inaugural dessa mesma história, pois desenha – e a história do Ocidente é a sua comprovação – um antes e um depois, ao qual toda uma civilização acabará por reportar os acontecimentos históricos.

Retorne-se à questão – que parece absolutamente decisiva – sobre a identidade daquele homem a quem os discípulos levaram o recado do mestre. A palavra grega presente no texto é δεῖνα. Ora este termo é usado quando não se especifica quem é a pessoa de quem se fala. Podemos dizer que é um espaço vazio à espera de ser preenchido por alguém com uma dada biografia. Reformule-se a questão: a quem levaram, na cidade, os discípulos  o recado do mestre, a quem foi apresentada a senha? Esse espaço biográfico vazio parece estar vago para ser preenchido com o nome de cada um de nós.

Para além da misteriosa figura histórica do dono da casa onde a Páscoa será comida, é a cada homem que o Mestre anuncia – e a anuncia a cada instante – que a Sua hora se aproxima. A cada momento é apresentada a senha – a minha hora aproxima-se – a cada homem. Esta senha solicita uma determinada resposta: abrir-lhe a casa (essa metáfora do nosso próprio ser) para que o mistério seja consumado no mais fundo e no mais secreto de cada um. Podemos negar, fugir, até trair, mas a hora que se aproxima é também a nossa hora.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Teoria da leitura

Há aquela velha polémica de Platão contra a escrita, contra os livros, contra o silêncio ostensivo com que respondem se forem interrogados sobre o que pretendem significar. O enigma, porém, está do lado de Platão e não dos livros. Por que razão terá escrito tanto? Não é verdade que os livros, no seu silêncio, não respondam. Os livros são um corpo silencioso nas mãos do leitor, e como um corpo precisam de ser tacteados lenta e suavemente, precisam de ser tocados para se abrirem e deixarem ouvir a voz reservada que trazem dentro de si. Ler é um corpo a corpo, um jogo em que as peles se tocam para os espíritos se fundirem. Há porém livros tão especiais, pelo espírito que anunciam, que o leitor se mantém na distância a que se convencionou dar o nome de respeito. Fico sempre perplexo quando vejo alguém excessivamente jovem com certos livros na mão. A profundidade de algumas obras não se compadece com os verdes anos. O respeito, contudo, não é sintoma de ausência de desejo, de falta de vontade de abrir o livro, de o tactear, de deixar correr o corpo que lê pelas páginas que se dão à leitura. O respeito é apenas o sinal de reverência pelo mistério que se pressagia, o sintoma do apreço pela luz que emana do espírito que o corpo do livro suporta. Talvez o respeito esteja ligado ao kairos, esse tempo oportuno que desce do espírito e toca os corpos, que vem do céu para iluminar a terra. O mundo vive um singular paradoxo relativamente à leitura. Ler tornou-se um imperativo generalizado, um indicador de desenvolvimento, um programa de acção. Mas a relação entre leitor e livro não é da ordem da moral, nem da economia ou da política. É uma relação presidida por esse estranho deus a que os gregos deram o nome de eros. O culto do deus – um deus impetuoso e intempestivo – exige essa especial reverência com que um corpo se deve abrir a outro, com que um espírito se funde noutro, com que um leitor se entrega nas mãos de um livro, com que certos livros se abrem para a leitura.