sábado, 30 de junho de 2012

Poemas do Viandante (285)

João Queiroz - Sem título (?) (1998)

285. EIS A ILHA MISTERIOSA ONDE ESCONDES O TESOURO

eis a ilha misteriosa onde escondes o tesouro
ao atravessá-la um nó apodera-se da garganta
abre-se terrível o universo em expansão
galáxias e desejos e poeiras cósmicas
tudo conflui para o centro da pequena vila
uma terra muralhada destruída pelo terramoto
as águas plácidas do rio sob a inclemência de julho

pego nas mãos das mulheres que amei
e sigo a sombra na calçada polida pelos anos
falam sobre a imprecisão das noites
as viagens feitas na leveza daqueles dias
a memória sepultada num hotel à beira da estrada

ela pensava no velho gato de schrödinger
enquanto compunha os jarros selvagens
a lembrança das flores trazidas nos braços
o prazer de ver a lua na janela sobre o lago
um coração de mulher regido pelo princípio de incerteza
tomado pelo exercício matinal do cálculo
a descoberta de uma inequação para inferir
a diferença entre os homens que amara

os avisos colados na porta eram um chamariz
todos se juntavam ali para os ler
e recitavam-nos como se fossem poemas
ou uma oração litúrgica na missa dominical
assim eram amados os editais
mais que todos o de abertura da época de caça
esse passeio tranquilo na memória longínqua

um violino expandia-se sobre a casa
começara um breve gemido no centro da terra
e lentamente as ondas cresceram
tomaram conta da desolação dos quartos
ocuparam as paredes e saíram pelas janelas
o mundo tornara-se uma onda sonora gigantesca
um tsunami a varrer a orla marítima
a noite que cobre de poeira a escuridão da lua
um fogo vindo da areia húmida e vazia

o odor de seda fresca vem dos teus braços
a cintilação da água no regaço azul das mãos

recomeço as contagens e as folhas mortas crescem
são uma ameaça dobrada pelos dedos
o eco de uma súplica desesperada no outono
não vim para medir a terra e construir um padrão
cavalgo os tumultos que o dia traz
e espero o matagal da noite
para compor um rosário de trevas

quero lá saber da batalha de waterloo
quero lá saber de napoleão e de wellington
escreverei apenas sobre o silêncio da montanha
dessa casa de pedra e colmo que me espera
as pernas despidas da mulher que amarei

quero lá saber da batalha de el alamein
quero lá saber de rommel e de montgomery
esperarei por ti no fundo do quintal
que venhas pura e sem biografia
página branca para a mentira do meu amor

fazia girar o pião sobre o cimento
enquanto a mãe cauterizava  a ferida
aquela que nasce selvagem no centro das células
inunda o corpo de frias respirações
e traz um grito o troar do cláxon  
a viagem vai começar
sem mapa nem bússola ou meta que te aguarde

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Poemas do Viandante (284)

João Queiroz - Sem título (?)

284. DAQUILO QUE SE SABIA APENAS A CERTEZA DO GRITO

daquilo que se sabia apenas a certeza do grito
um risco tracejado no mármore das encostas
o gesto com que se sentava ao chegar a casa
e esperava que a noite fechasse portas e janelas
para que o vento marítimo sossegasse nas ruas

algumas vielas reflectiam constelações 

e um saber ameaçador inscrevia-se nos recantos
onde sem desespero alguém discutia os equinócios
ou analisava a ortodoxia do celibato à luz dos concílios

era todo um saber feito de revoluções

uma epistemologia febril pendia das casas
traçava mapas em plantas inorgânicas
exaustas pelo roubo matinal do pólen

estranhos rictos inundavam as faces dos transeuntes

gente perdida e sem império pela baixa de lisboa
um pregão ouvido na distância do tempo
o exercício de juntar num aqui passado e presente
a linha laminada de onde parte o futuro

depois de aldrin e de armstrong 
a lua nunca mais foi a mesma
comentou e sentou-se a olhar os céus à espera de chuva
ou de um pássaro nocturno que trouxesse notícias

para lá da montanha tudo é obscuridade e segredo
e se as aves não regressarem pela noite 
dos desvarios do mundo pouco saberemos

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Poemas do Viandante (283)

João Queiroz - Sem título (?)

283. VEJO A IMAGEM DO POEMA SOBRE A ÁGUA

vejo a imagem do poema sobre a água
o doloroso exercício de conjugar as parcelas do mundo
recolhê-las na concha de algum molusco
e fazê-las sair para o palco sob a ordem ali criada

o lodo das águas escorria pela areia
e se caminhávamos de mãos dadas pelas rochas
avistávamos a limpidez das casas ao longe
as chaminés onde corria o fumo da incerteza
os dias fustigados pelo vento a semeiam

recolho-me numa dessas casas
para ouvir o bater do mar na praia e sonhar
um exercício de melancolia de quem envelhece
sente o corpo preso aos desacertos do tempo
as articulações esquecidas da antiga mobilidade
agora arame farpado doente pelo óxido de ferro
vindo na inclemência do uso ou na acidez das chuvas

sonho deitado na areia um corpo de mulher
a incerteza da pele sob a inspecção dos dedos
o murmúrio da voz na quietação da manhã

não lhe vejo a idade
apenas amo esse corpo na fragrância de mulher
ele a traz consigo ao deitar-se e deposita-a em mim
e espera o momento onde corro a cortina
e num passo de dança o tomo de assalto

as muralhas há muito caídas
espreitam ao longe a ondulação daqueles seios
o torpor voraz com que se entregam
folhas mortas de outono
num tempo esquecido de vindimas

poiso os óculos e descanso no húmus da terra
o livro entreaberto descai
mistura com o pó as folhas mortas e algumas formigas
enquanto a cidade rumoreja ao fundo
zumbe na distância monstruosa com que se afasta
escondendo o pensamento que a devora
deixando casas e carros carcomidos pelas ruas
os jardins secos e ávidos de amantes
o tribunal fechado e a comarca suspensa

oiço um longo elogio às tempestades matinais
mas recolho-me na fímbria da água
e deixo de lado a contabilidade dos frutos
as pêras e maçãs perdidas a laranjeira seca
os alvores do mundo que ardem no fundo da minha alma

sentado e solene sou um gato a cismar no poema
as palavras entreabertas dão para o teu quarto
e pé ante pé aproximo-me febril e cheio de música
e entro-te no corpo para anunciar a madrugada

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Poemas do Viandante (282)

João Queiroz - Sem título (?) 

282. OS CAVALOS MARÍTIMOS SEGUIAM À DESFILADA

os cavalos marítimos seguiam à desfilada
abriam sulcos de fogo e ardósia na superfície do mar
sob a paleta inconstante de um céu amargo e sedicioso
um céu sagrado pelas nuvens e um rasto de tinta branca
com que pintavas a madeira do portão que abria para o quintal
algumas roseiras floriam na lembrança da tarde
e uma flecha de cetim desenhava um rombo no coração

a desordem crescia sobre os dias e os anos
fazia de cada coisa uma recordação breve ou um rasto de luz
à espera da crueldade presa nas mãos
a velha malícia de devolver à vida o que a vida rejeitara

a casa de meus pais era um aquário branco
um santuário de terra fina e flores plácidas
o assombrado desejo de ver a família crescer e multiplicar-se
pratos sobre a mesa e o mar carbonizado ao fundo
aspidistras e sardinheiras à volta do altar
os vidros partidos de algum copo a tilintar no chão
alguém batia à porta para afugentar o medo das águas
o temor reverencial pela brutalidade do destino
a ânsia de ver as rochas sobre as intempéries vindas do oceano

tenho um ofício marítimo herdado de ninguém
conto barcos abandonados na baía
anoto números e cascos velhos desejosos de pintura
e oiço o rugir dos couraçados a antecipar o mês da guerra
colinas marítimas que se aproximam
suspendem o tempo e negam os alvores da madrugada

retido o fôlego o corpo baloiça na água
ouvem-se suspiros e gritos
o trabalhar longínquo das gruas sobre o porto
o rosnar das gaivotas se chega uma traineira
um relâmpago de silêncio crepita pelas águas
desenha o galope aceso do cavalo
e rasga as paredes de todas as casas que habitei
abre-as para o segredo de uma iluminação
para as breves orações que antecediam a páscoa
e o feliz acaso do meu corpo ressuscitar no segredo do teu

terça-feira, 26 de junho de 2012

Poemas do Viandante (281)

João Queiroz - Sem título (2005)

281. HAVIA RESTOS DE MINÉRIO PELA SUPERFÍCIE

havia restos de minério pela superfície
sombras soltas e uma vegetação rasteira
o céu acobreado e de longínqua reverberação adoecia
supurava nuvens de cobalto e enxofre
uma promessa de tempestade vinda do norte
sob o silêncio invernoso da tua respiração

naqueles dias entregavas-te às enumerações
de cada coisa fazias uma categoria
e o mundo era então fragmento e restolho
uma impossibilidade que se desfazia no calor da mão

se alguém soluçava ou um animal uivava
abriam-se caminhos de areia e pedra
restos de vegetação seca e sem préstimo

de casa avistava o cume
desenhava trilhos na memória
e assim construía paisagens sempre novas
impregnadas de árvores raquíticas
e sonhava naquele horizonte os cavalos de aquiles
perdidos num devaneio sem razão
ou o passeio dos filósofos na encosta sobre o neckar
onde holderlin o poeta inventou heidelberg

escrevia então longas cartas de amor
não porque amasse mas porque a vista empalideceu
perante a inclemência da paisagem
a encosta íngreme da montanha
e o céu repleto de ameaças furtivas
o odor a terebentina no patamar

piores eram os dias de junho
quando a primavera declinava e morria no verão
naquele calor que desperta o desejo da morte
ao afrouxar a vigilância das células
e infestar cada lugar com o suor das casas
a ameaça de orquídeas envenenadas pelos teus dedos

chegou a hora de subir a terrível encosta
o que nela me espera sabe-o o coração
ainda que uma jura secreta o impeça de o dizer
e assim fico na incerteza inconsolável
na ânsia de descobrir se o mal ou o bem são o meu lote

pego no saco vazio e tomo o caminho
desenhei-o nos dias quentes em que o verão me adolescia

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Poemas do Viandante (280)

João Queiroz - Sem título (2000)

280. FENDIDAS AS MURALHAS ABRE-SE UM CAMINHO DE LODO

fendidas as muralhas abre-se um caminho de lodo
e caminhantes mais afoitos julgam antever o peloponeso
confiantes no azul oceânico que se desdobra ao olhar
não sabem que perigo a vista encerra
nem da avidez da terra trazem ideia fundada
julgam apenas ouvir o canto de alguma sereia
e sonham os braços quentes molhados de água fria

o mar cansou-se de marinheiros
deixou os barcos vazios a vogar sem destino
as velas quebradas e os porões sem préstimo
bandos de gaivotas recordam-me a infância
trazem-me um grito soterrado no peito
o prenúncio dos grandes incêndios se o verão aquece

sento-me e digo isto é a porta da enseada e espero
espero a tua vinda ao cair da tarde
espero na esperança de entardecer ao teu lado
e enumero as bem-aventuranças prometidas

a morte não tem regra no seu operar
e se alguma contabilidade a rege não a conheço
ela vem e cobre com o seu véu o solitário perdido
dá-lhe por companhia o mais jovial dos transeuntes
estabelece aliança entre famílias inimigas
e rapta subitamente o herdeiro de uma longa estirpe

por isso todos a veneramos no segredo do coração
a ela erguemos altares de pedra e aço
e cobrimos o mar de náufragos exaustos
ou suspendemos a mecânica solar para que ela chegue
quando tarde a tarde anoitecer

tudo em mim freme nesta noite de azeviche
e o meu sexo duro entra no teu corpo
na infalível certeza da tua compaixão
empunho a lira e dedilho-te pobre eurídice
quero-te sob o vento marítimo ou nas areias azuis 
conto-te os dedos como se fossem estrelas
e construo constelações na incerteza dessas mãos

ofereces-me o lodo do caminho para a paisagem oceânica
para depois me dizeres eu sou a tua morte
e vivo no teu coração desde que foste concebido
guio cada um dos teus desejos sob a tempestade da vida
e faço-te cantar os passos que dás no segredo do mundo
sou a tua vida e o teu mundo sou a luz que te alumia a noite
e as trevas que te fazem suportar o meio-dia
eu sou a que te espera quando te deitas com outra
e a outra com que te deitas ainda sou eu
pois além de mim nada há no mundo
apenas um véu de ilusão criado pela minha arte
uma armadilha disfarçada de labareda
a canção de amor que nenhum outono suportará

esquece a muralha aberta sobre o oceano
são doces as pradarias onde apascento o meu rebanho
sou a mais suave das pastoras
ofereço-te o seio e o sexo e o sangue
dou-te a beber o mênstruo
e os meus lábios embalar-te-ão 
para que sonâmbulo me digas meu amor
enquanto se ouve o suave balir das ovelhas
e em mim encontres o aprisco onde a eternidade te recolhe

domingo, 24 de junho de 2012

Poemas do Viandante (279)

João Queiroz - Sem título (?) (2008)

279. NÃO ERA UM CAOS QUE NASCIA NO CENTRO DA FLORESTA

não era um caos que nascia no centro da floresta
nem um desejo de sangue puro e matinal
o teu corpo de mulher rolado no toldo destas mãos
velhas aspirações de homem solitário
sentado na orla da clareira
à espera de um pássaro ou do rosnar dos cães

se houvesse um espelho na água fria
ainda pensaria em narciso
mas nada por aqui devolve imagem ou som
e as ninfas há muito que partiram
o peso das sombras fazia desabar sobre elas o medo
e o deus cuidadoso recolheu-as em lugar incerto

uma floresta púbere ensombrada pelo sol
uma floresta perto do céu tocada pelos anjos
uma floresta de grifos e anémonas cantada em silêncio
invento pela manhã cada árvore e a sua sombra
desenho ramos e ervas e a terra negra
o fecundo respirar da tua boca
se o corpo se abre no húmus do chão
e o feto do meu amor te infecta
te traz uma doença prolongada e sem esperança
um estado terminal feito de ramos secos
e um barulho de buzinas na estrada ao longe
rio de alcatrão a circundar a floresta
uma raia plástica sem barreiras ou guarda fronteiriço

a estação avança por dentro da sombra
rasga um caminho de terra para trazer as primeiras chuvas
e o homem entregue ao celibato espera 
em cada ruído o sobressalto dos teus passos
o desejo desse corpo virginal
o dia de aleluia inscrito em delfos

os que tracejam caminhos na terra hesitam
todos os cheiros que ali crepitam são-lhes estranhos
uma ameaça de animal selvagem 
uma garra fria e mortal
todas as lâminas que a natureza esconde
a pedra com que david matou golias

é um lugar sem cor nem destino
um manto de vida a esconder a dança da morte
ali poisa o asceta para inventar um deserto
ali estaca o filósofo e desenha uma academia
ali um concílio de poetas faz o elenco das heresias

não era um caos que nascia no centro da floresta
apenas a minha pobreza crescia na vida minguada
e o tempo espairecia na obscuridade
e deus seguia o seu caminho de penumbra
e o amor de uma mulher gritava dentro de mim
e o desespero do mundo era uma paisagem fria de betão
a memória rememorada ao chegar
a entrega do passaporte para nunca mais voltar

sábado, 23 de junho de 2012

Poemas do Viandante (278)

João Queiroz - Sem título (?) (2005)

278. OS LUGARES ESCALAVRADOS NA ROCHA

os lugares escalavrados na rocha
noites que nunca chegam com o seu manto
veludo negro na melancolia do envelhecimento
campos de pedra e arenitos dispersos
sem cardos ou cactos
o grasnar incerto dos corvos ao meio-dia

de todas as histórias que me contaste
não retive uma
a memória pesa e inclina o corpo para as trevas
acende velas inúteis a santos já mortos
desfigurados no ócio da santidade
uma sina lida à entrada da igreja

o remoer dos intestinos acende uma vela
e a superfície lisa das encostas resplandece
enquanto se ouve ao longe o cacarejo do vento
o troar desabrido dos lábios sobre a pele

não há árvores de fruto ou prados tisnados pela geada
o lugar não se presta ao ofício de cuidar a terra
e as mãos cedem ao cansaço e adormecem
e a noite que nunca chega
para trazer os nomes que te fui dando
nos dias em que cantavas
nas horas submersas na lei do desprezo

trinta dias girou a terra em torno do sol
e as paredes de mármore um sublime grito de guerra
uma oração a um deus desvairado
o anteparo que protegia a terra da fúria oceânica
assim nos protegemos da memória
pequena deusa cruel e vindicativa
assim nos escondemos do punhal enferrujado
pronto para abrir um rio na planície do coração

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Poemas do Viandante (277)

João Queiroz - sem título (?) (2008)

277. HAVIA AINDA UMA LEMBRANÇA DO ÉDEN

há ainda uma lembrança do éden
e a verdade vem pintada nas faces
sem ocultar as rugas
e os sinais de imperfeição que nascem
ou o sorriso melancólico à chegada do calor

a paisagem verde e translúcida
sem casas nem plásticos nas bermas do caminho
sem o odor mutilado pela presença humana
o rasto de quinquilharia exposto
à sentença cruel dos céus

a longa planície anuncia a cordilheira
suspeitam-se pássaros
e um rumor na terra traz o réptil
lentos exercícios na humidade do solo
disparos longínquos no tempo de caça

encosto o ouvido às pedras do chão
e oiço um bater surdo e descompassado no peito
a memória que de ti trazia
agora um papel rasgado em fragmentos de solidão
perdido num lugar onde tudo desaparece

convoco todos os meu mortos
eles apressam-se e perguntam-me o porquê
olho a longínqua cordilheira
o denso matagal imagino-o esverdeado
e sorrio na paz - eles a trazem consigo

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Poemas do Viandante (276)

João Queiroz - Sem título (2009)

276. VIERAM DIAS TURBULENTOS

vieram dias turbulentos
tempestades sobre o mar
um rasto de vidros partidos
a pressa dos cães pela madrugada
anúncio de cinza e naufrágio

a dissolução dos elementos crescia
tracejava o horizonte de luzes
uma mulher chorava debruçada no cais
e tudo se esgotava na perfeição
com que as tuas mãos fechavam as janelas

quantas vezes seleccionava uma sintaxe
traçava uma armadura
e compunha a imagem revestindo-a de sílabas
baldes de areia e esperanças fugazes
na luz do meio-dia

ainda não peço dinheiro emprestado
mas cansa-me a realidade
a pobreza com que governo o poema
a espera dolorosa e fria
de uma traição em cada esquina

pudesse o meu coração amar
ainda que fosse a sombra da sombra de Deus
e o ritmo do sangue ao coagular
seria mais lento e mais distante
da gramática onde a morte se compõe

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Poemas do Viandante (275)

João Queiroz - Sem título (2007-2008)

275. O DILACERADO CORPO DA TERRA ABRE-SE

o dilacerado corpo da terra abre-se
um segredo de calcário
os mármores incertos do palácio
agora incêndio nas trevas do olhar

ao subir a encosta escarpada
os dedos rememoram o tempo primitivo
os dias tecidos pelo medo e a fome
o corpo exposto na clareira
ao uivo dos predadores
ao voo rasante das aves migradoras

assim crescem os anos
conto-os no breve rosário de pedra
e desenho calendários de folhas
onde anoto cada dia
o mal que consigo traz
e a esperança sempre perdida
de algum bem

traço uma cruz de carvão na pedra
e oiço o eco solitário de uma voz
o corpo freme
balança-se e na inclinação
entrega-se à dúvida 
à imprecisa fronteira 
do infinito céu a precária terra separa

terça-feira, 19 de junho de 2012

Haikai do Viandante (86)

Salvador Dali - Devenir geológico (1933)

fria sombra no mundo
um cavalo e duas rochas
paisagem sem fundo

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Poemas do Viandante (274)

João Queiroz - Sem título (2011)

274. DE OLHOS FECHADOS ATRAVESSEI A FLORESTA

de olhos fechados atravessei a floresta
e os cardos laceraram-me os pés
ao ritmo do vento sobre as folhas

ao entrar 
depois da lisa superfície da rocha
comecei a esquecer o nome
e o obscuro vento da liberdade
batia-me aos ouvidos

promessas desfeitas na ramagem dos fetos
um sonho tingido pelo desvario de um deus
a recordação de um corpo
levedado na esperança do meu

perdido na minúcia das sombras
ergui um altar de orvalho
e queimei o incenso que restava
quando o corpo sentia o frio
nascido da ausência do teu

de todas as noites
resta-me aquela pintada na tela
estranho musgo de quartzo
no rasto ardido dos pinheiros
essas pequenas palavras na floresta da língua
vingança tardia
secreto silêncio da sombra

domingo, 17 de junho de 2012

Metáforas do amor

José de Togores - Amor en el bosque (1930)

Há um estreita conexão, em vários tipos de literatura, entre o amor e o bosque. Uma perspectiva superficial da relação dirá que o bosque é o sítio onde, numa visão romântica da vida, o amor poderá ser consumado. No entanto, o topos do bosque não terá tanto a ver com o sítio onde os amantes se poderão entregar às exigências de Eros e de Afrodite, mas com uma metáfora. Mais interessante do que ver o amor no bosque será compreender que o amor é um bosque. A transferência das qualidades do bosque para o amor poderá completar a metáfora camoniana do amor é fogo que arde... Aos excessos de calor e luz camonianos contrapõe-se a dimensão sombria, protegida do calor e da própria luz que o bosque permite figurar. Há no amor toda essa dimensão intermédia, onde as sombras, ao irromperam da relação entre o claro e o escuro, vão desenhando novas configurações, como se o amor fosse uma construção contínua de mapas, os quais se vão substituindo uns aos outros, pois os diversos territórios vão alterando as suas fronteiras. Esta imprecisão pode ser encontrada na imagem do bosque que torna difusas as silhuetas de quem o atravessa. Mas a metáfora do bosque não se opõe à metáfora do fogo, pois o bosque oferece o material combustível para os grandes incêndios. O bosque é o lugar onde aqueles que o atravessam podem ser apanhados na emboscada do amor.

sábado, 16 de junho de 2012

Poemas do Viandante (273)

Kazimir Malevich - Peasant Women at  Church (1911)

273. MALEVICH, PEASANT WOMEN AT CHURCH

sobre o frio chão
erguem ao alto
obscuros pensamentos
são desejos
pequenas ânsias
a vida recolhida
em breve oração

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Haikai do Viandante (85)

Jackson Pollock - Troubled Queen (1946)

sorriso sem cor
da pobre e casta rainha
perdida de amor 

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Cegueira e sabedoria

Manuel Vega - Caravana de ciegos (1919)

Édipo não é sábio quando responde ao enigma da esfinge nem quando se torna rei de Tebas. A verdadeira sageza chega quando, perante a verdade do seu casamento com Jocasta, ele se cega. Também é no estado de cegueira que Paulo de Tarso acede à suprema sabedoria. Há toda uma tradição que assenta no paradoxo da necessidade de ser cego para poder ver. Como compreender isto? Vale a pena voltar ao livro A da Metafísica de Aristóteles, ao seu início: "Por natureza, todos os homens desejam saber. Um sinal disto está no prazer que têm nos seus sentidos; para além da sua utilidade, eles são amados por eles mesmos; e acima de qualquer outro o sentido da visão. Não apenas quando se visa a acção, mas mesmo quando não se está a fazer nada, preferimos a visão a todos os outros sentidos. A razão é porque a visão, mais que os outros, faz-nos saber e traz à luz muitas diferenças entre as coisas".

O prazer de ver, esse prazer enraizado na nossa natureza, vai muito para além da sua utilidade, permitindo ao homem uma determinada forma de saber. Ora o que o texto de Aristóteles nos diz é que esse saber tem uma natureza analítica, ele faz-nos ver as diferenças, permite introduzir cortes na realidade global. A particularização e especialização que o sentido da vista permite e fomenta acabam por tornar-se numa espécie de alienação e de enviesamento. Preso no prazer de ver, o homem entrega-se  ao divertimento da diferenciação, ao prazer da multiplicação de aspectos da realidade que, desse modo, são cindidos e tornados independentes.

Este saber visual torna-nos cego para a unidade da realidade, prende-nos na multiplicidade e nos jogos que essa multiplicidade permite. O saber natural, por prazer que vê, apenas permite um saber que não é sábio e não o é porque, seduzido que está pela capacidade de diferenciar, é incapaz de perceber a unidade de tudo, o sentido dessa unidade. Por isso, várias tradições sublinham a necessidade da cegueira para ver. Ver não o particular, mas o universal, o todo, aquilo que as diferenças escondem. O mundo é uma caravana de cegos, de cegos que o são porque dependem da visão e do prazer que ela permite. Tornar-se cego para ver é o caminho da sabedoria.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Poemas do Viandante (272)

Kazimir Malevich - River in the Forest (1908 ou 1928)

272. MALEVICH, RIVER IN THE FOREST

as horas em que nos perdíamos
um sonho de falcão
uma ânsia de alturas
são agora um reflexo sombrio
nas águas frias
traços amargos a romper
caminhos na floresta
chaga na memória

terça-feira, 12 de junho de 2012

Haikai do Viandante (84)

Jackson Pollock - Cottonpickers (1935)

em silêncio a mão
sob um céu de cinza azul
colhe o algodão

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O espírito e a obediência

Hans Baldung Grien - Adan (1520-1523)

O acto que está na origem da desordem espiritual do homem foi um acto pelo qual Adão se separou de Deus, de si mesmo e da realidade que o envolvia. Foi a ruptura deliberada da comunhão existencial que dava a Adão a sua plena realidade e o fazia participar naquela que existia à sua volta. Por um acto de puro orgulho, sem o menor traço de sensualidade, de paixão, de fraqueza, de erotismo ou de medo, Adão põe um abismo entre Deus, ele e os outros. [Thomas Merton (1969). Le Nouvel Homme. Paris: Éditions du Seuil, p. 82]

Como compreender a insistência a outrance da Igreja Católica no princípio de obediência? A obediência, entendida como submissão a uma autoridade, é um elemento estrutural de múltiplas instituições. Sem ela, sem a submissão dos cidadãos à autoridade politicamente constituída, um Estado não funciona. Um exército estará condenado à derrota se o princípio de obediência à hierarquia não for seguido de forma indiscutível. Outras instituições, como escolas, empresas, clubes desportivos, etc., só funcionam fundadas, ainda que de forma matizada, no princípio de submissão à autoridade.

Poder-se-ia pensar que todas estas relações de obediência à autoridade são idênticas às relações de obediência que a Igreja Católica exige dentro de si. No entanto, isso não é verdade. Em todas as instituições onde o princípio de obediência tem um papel, ele é sempre, apesar de estruturante, instrumental. A obediência do cidadão à lei, do soldado à hierarquia, dos jogadores ao treinador, dos alunos aos professores, em todos estes casos visa-se sempre outra coisa: a ordem cívica, a vitória militar ou desportiva, a aprendizagem. A obediência no campo espiritual, aquela que é exigida pela Igreja Católica, contudo é um fim em si mesmo e não um mero meio para se atingir alguma coisa..

Só se pode compreender essa obediência, se se entender o que está em jogo. Ao colocar de lado as leituras pueris do mito de Adão e Eva, Thomas Merton, no trecho supra citado, abre um caminho para compreender essa obediência. O pecado original, como ressalta do texto, não tem nada de erótico ou sensual. O que, na mitologia judaica, perdeu o homem foi a revolta e o orgulho. O que significa esta revolta e este orgulho? A perda da verdadeira realidade do homem, a sua diminuição ontológica, o que é figurado por um corpo frágil e mortal, por uma vontade fraca e corruptível. A obediência é o exercício contrário ao acto de orgulho de Adão. Aqui a obediência não é um comportamento estratégico que vise, no fim, uma reintegração no estado anterior à revolta adâmica. A obediência, do ponto de vista espiritual, é símbolo e prática efectiva desse estado que Adão recusou. 

A submissão à autoridade espiritual é o elemento estrutural da viagem do espírito, porque ela é o exercício e a vivência do estado prévio à Queda. Tudo isto não significa que a Igreja Católica não use a obediência de forma instrumental, mas, contrariamente a outras instituições, ela fá-lo porque a obediência à autoridade é o princípio central do cristianismo, cujo arquétipo reside na submissão de Cristo, o Filho, à vontade do Pai, submissão até à morte, e morte de cruz. Isto, porém, só é inteligível a partir da compreensão da Queda adâmica e da perda ontológica que ela significa.

domingo, 10 de junho de 2012

Haikai do Viandante (83)

Jackson Pollock - Blue Poles, Number 11 (1952)

uma seara densa
campo onde nasce a luz
daquele que pensa

sábado, 9 de junho de 2012

Viagem para si

Mario Sironi - Ciclista (1916-1920)

Primeiro os animais e depois as máquinas foram os meios que o homem inventou para imprimir velocidade à viagem. Nada mais estranho, porém, à viagem do que a velocidade. O caminho faz-se não para nos deslocarmos de um ponto para outro, mas para descobrirmos que o ponto de partida e o de chegada é o mesmo. Se assim é, que interesse tem a velocidade a que o corpo se desloca? O viandante não pretende ir de A para B, mas coincidir consigo mesmo, com aquilo que o constitui e o institui, no lugar onde está. Quanto mais lenta for a deslocação, mais intensa é a viagem. O ideal regulador de quem caminha é a pura possibilidade de permanecer estático.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Da adoração dos ídolos

Umberto Boccioni - Idolo Moderno (1911)

Se há característica específica do tempos modernos, essa é a da idolatria. Perante o desafio da vida e as exigências da viagem em direcção a si mesmo, o homem moderno de tudo faz um ídolo onde se aliena e se perde. A idolatria é a fuga perante o espírito, a deificação da materialidade evanescente, das pequenas coisas que a nossa faculdade de desejar toma como objecto momentâneo de prazer. No exercício idolátrico, contudo, cada ídolo arvorado pelo homem sofre, apesar do culto prestado, uma diminuição no seu verdadeiro ser. Um ídolo nasce da separação da realidade a que pertence.  É esse corte que permite a aparente absolutização que está presente na adoração. Mas essa separação destrói as ligações que mantêm na realidade o ente idolatrado, o tornam em nada, o despem de todo o conteúdo ontológico. É este nada, e não mais do que ele, aquilo que a coisa adorada tem para oferecer ao adorador. O niilismo não é outra coisa que o processo de idolatria em curso há séculos. Sob o efeito do ídolo arquetípico, o homem transforma-se à sua imagem e semelhança, isto é, toma o nada como a sua efectiva natureza.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Poemas do Viandante (271)

Kazimir Malevich - Por la mañana, después de la tormenta, en la aldea (1912)

271. Malevich, Por la mañana, después de la tormenta, en la aldea

veio a neve
incendiou a noite
trouxe clarões de seda
sobre as ruas

e na brancura da tempestade
o sol inscreveu
frio e cortante
o sopro do dia

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Haikai do Viandante (82)

Jackson Pollock - Alchemy (1947)

súbita alquimia
transforma o chumbo nocturno
em oiro do dia

terça-feira, 5 de junho de 2012

O peso da sombra

Francis Bacon - Study for a Portait of Van Gogh V (1957)

Aquilo que pesa na viagem não é a materialidade do corpo. O grande obstáculo, o que está submetido ao império da gravidade, o que torna o passo mais lento é o peso da sombra. Quanto mais baixo estiver o sol, mais pesada se torna a nossa sombra. Ao nascer, a sombra é apenas uma possibilidade. Ao avançar na vida, a sombra pega-se a nós, cresce desmesuradamente, torna-se opaca, sólida. O pobre viandante está condenado a arrastar atrás de si essa sombra que foi acumulando. Sábio seria o homem que, ao viver, nunca acumulasse sombra, pois caminharia leve e nada o reteria na viagem. Mas nascemos sem sabedoria e, conforme a vida se vai desenrolando, mais longe ficamos dela, até que, vergados ao peso da sombra, ficamos estáticos e entramos no reino das sombras, onde a morte espera silenciosa por nós.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Haikai do Viandante (81)

Jackson Pollock - Convergence (1952)

este estranho mapa
traça rios na floresta
sob um sol que mata

domingo, 3 de junho de 2012

Poemas do Viandante (270)

Kazimir Malevich - Mujer cogiendo flores (1908)

270. MALEVICH, MUJER COGIENDO FLORES

colho-te  no olhar
a pele nua
e em cada flor
uma pétala voa
pássaro de água
no sussurro da rua

sábado, 2 de junho de 2012

Haikai do Viandante (80)

Jackson Pollock - Galaxy (1947)

galáxias de tinta
nascem dos olhos e mãos
astros de quem sinta

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A pobreza mais radical

Jiri Georg Dokoupil - Cuadro de neumáticos beige gris (1991)

Um rasto é aquilo que a vida vivida deixa atrás de si. Por vezes, confundimos a memória, esse estratagema da ilusão de si, com o acontecido. Mas este desvaneceu-se, pulverizou-se, foi deglutido pela gula de Cronos. O que fica são traços, leves sinais, um risco no tampo da mesa, o rasto de pneus no alcatrão da vida. Incapazes de suster o momento, de permanecer perante o instante, sublimamos a nossa impotência olhando o que deixámos para trás ou refugiando-nos na expectativa do que há-de vir. Reside aqui, nessa impossibilidade de coincidir com o tempo onde existimos, todo o desconforto da espécie humana. Por isso, evadimo-nos ora para o passado ora para o futuro, como se fosse impossível fazermos do presente, desse presente pontual onde somos o que somos, a nossa casa. A nossa pobreza, aquela que é mais radical, não se encontra no facto de termos sido pobres ou no de o virmos a ser. Ela reside no simples facto de não encontramos abrigo no tempo presente.