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sábado, 18 de agosto de 2018

Meditação breve (78) Mistério


O prazer que extraímos do mistério reside na derrota da razão. Não existe apenas a satisfação do triunfo, quando um enigma é decifrado. Aquilo que resiste aos avanços do nosso entendimento também provoca não pequena volúpia.

Pintura: Alphonse Osbert, El misterio de la noche, 1897

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

O mistério da dor

Karola Pęcherskiego -  Warszawa,1948

A organização laboriosa e quase geométrica da vida. Depois, de um momento para o outro, sem que se perceba bem porquê, vem a destruição. O que se manifesta em toda a destruição, mais do que o mistério da iniquidade, é o mistério da dor. Escuta-se o Stabat Mater Dolorsa, de Pergolesi e é esse mistério que se ouve. A que lugar a dor, vinda pelo vento da destruição, nos deverá levar? Esse é o mistério.

domingo, 19 de março de 2017

Enigmas e mistérios

Ángel Mateo Charris - El buscador de enigmas (1999)

Confrontar-se com enigmas ainda é confiar na razão como caminho para os decifrar. O enigma não exige nada mais que um raciocínio apurado e treinado, um raciocínio que será tanto mais eficaz quanto maior for a informação de que dispuser. Para além do enigma, porém, está o mistério. Perante este, a razão soçobra, a informação torna-se obstáculo. Os mistérios, na sua efectiva natureza, não se dirigem à decifração. Qualquer técnica hermenêutica esbarra no sem sentido que os constitui. Pode, paradoxalmente, o homem, impossibilitado de o conhecer, viver nele e ser transformado nele e por ele. O enigma dirige-se à razão. O mistério, à existência.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

A grande batalha

Yves Klein - La Grande Bataille

Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. (João 14:27)

A vida é entendida, muitas vezes, através da metáfora da guerra. É compreendida como uma sucessão de batalhas. Por maiores que sejam os conflitos que um ser humano atravessa na existência, está ainda perante pequenas batalhas. A grande batalha é a da paz que foi doada aos homens, lhes foi deixada em herança. Grandes são os perigos que ela traz consigo, pois o maior dos perigos está ligado ao que é misterioso, e nada é mais misterioso do que essa paz que o homem herdou e que o mundo não compreende.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Da leitura

Fernand Léger - A leitura (1924)

O ensino da leitura, por necessidade de eficiência, acaba por matar aquilo que é essencial no acto de ler. Ler é, antes de mais, um acto de decifração, a revelação do que está escrito. A eficiência adquirida no acto de ler naturaliza a leitura (a partir de certo grau performativo, ler parece uma coisa natural) e rouba-lha o sentido de penetração num mistério cifrado. Este não é o único problema. Decorrente dele, está a oclusão da leitura em si mesma, como se ela apenas servisse para a transmissão de uma mensagem ou a fruição de um prazer estético, na leitura literária. A leitura como decifração deve ser, contudo, um modelo ou arquétipo que se deve transferir para toda a realidade, a exterior e a interior. Tomar tudo como signo e cifra implica então que sejamos, de forma consciente, leitores contínuos do mistério do mundo e do enigma que cada um é para si mesmo.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O segredo do amanhecer

Guillermo Trujillo - Amanecer Chocoe (2000)

Há um momento do amanhecer em que tudo parece suspenso. A luz e as trevas travam uma dura batalha pela vitória. Nesse momento de indecisão, aquele que toma a natureza como um símbolo a meditar encontra um segredo. Não um segredo que esteja oculto e que a curiosidade pode revelar. Encontra um efectivo segredo que está velado e sobre o qual não há revelação possível. O segredo é o da estranha fraternidade entre luz e trevas, o das suas núpcias nas horas indecisas dos crepúsculos. Aquilo que não tem revelação é aquilo que dá que pensar, mas o pensar é ainda e só uma preparação para enfrentar o mistério, perante o qual a razão experimenta o seu limite e a sua impotência.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Levado pelo vento

Darío de Regoyos y Valdés - Una calle de Córdoba

Uma rua que de súbito se fecha e se torna em mistério. São assim os caminhos do viandante, ir por ruas que se fecham num enigma. Penetrar no mistério que se abre como uma avenida. Assim caminha, de mistério em mistério, de rua em rua, levado pelo vento que sopra onde quer.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

A inversão da gravidade.

Saul Steinberg - Gravity Reversed (1961)

Sexta-feira de Paixão. Como é que nós, viandantes nos tempos modernos tão cheios de ciência, podemos interpretar este acontecimento fundador da nossa cosmovisão? Apenas uma expressão: inversão da gravidade. Aquilo que nos rebaixa tornou-se naquilo que nos eleva. E isso não é o menor dos mistérios.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O mistério da noite

Alphonse Osbert - O mistério da noite (1897)

As sociedades modernas dividiram a noite segundo uma tripla possibilidade. A noite como o tempo de descanso, como o tempo da diversão e como o tempo de trabalho. Esta tripla consideração do tempo nocturno tem por função matar o mistério da noite, impedir que ele simbolize para o homem alguma coisa de essencial. O mistério da noite reside na possibilidade que nela a luz se manifesta com mais intensidade. O mistério da noite é o da vitória luz sobre as trevas.

domingo, 1 de junho de 2014

Seguir em frente

Leo Matiz - Polígono

Adentrar-se mais e mais no mistério, percorrer a longa galeria onde luz e trevas se sucedem sem fim, seguir em frente sem olhar para trás. Orfeu não suportou a exigência que a vida lhe pôs e perdeu Eurídice. Quem busca uma certificação ganha a certeza da perda. Resta, ao homem, apenas seguir em frente, saber que a luz ofusca e que as trevas são a noite escura da purgação dos equívocos e das ilusões. O resto é o mistério indecifrável.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

O mistério do visível

Benvenuto Benvenuti - O portão fechado (1907)

A porta fechada surge muitas vezes como um símbolo fundamental da vida dos homens. Simboliza a diferenciação de territórios, simboliza os processos de exclusão e de inclusão num dado grupo, simboliza o mistério, ao ocultar o que está para além dela, simboliza também o desafio e prova. A porta propõe um exercício de ultrapassagem da situação em que se está para uma nova situação desconhecida e misteriosa. Ao olharmos para o portão fechado representado no quadro de Benvenuto Benvenuti não encontramos, num primeiro momento, as características mais perturbantes de uma porta. Na verdade, este portão partilha com a porta fechada a mesma potência de demarcação territorial e traça também as regras do jogo da exclusão e da inclusão. Como na porta,não é a mesma coisa estar num lado ou no outro do portão. Falta-lhe, contudo, a dimensão central do mistério. O portão deixa ver em vez de ocultar. O transeunte pode constatar a continuidade entre os dois lados da fronteira, de que o portão fechado constitui o sinal e o lugar de passagem.

Esta sensação de ausência de mistério e de desafio é, porém, ilusória. A transição de um lado para o outro do portão implica uma mudança territorial e a submissão do sujeito a novas regras, as quais estão longe de ser conhecidas. O mistério reside não no que está oculto materialmente, mas nas regras inexpressas daquilo que se vê, e que ao ser visto parece ser conhecido ou idêntico ao conhecido. O mistério - porventura um mistério perturbante - está agora naquilo que é visível, naquilo que é opressivamente visível. Não há mistério maior do que aquilo que não aparenta mistério algum, como se a sua claridade, distinção e transparência fossem apenas o sinal do maior dos desafios. Passar aquele portão pode ser a maior das provações e a mais perigosa das aventuras. Perante ele, deve o viandante interrogar o seu coração e perguntar-se se será por ali o seu caminho.

quarta-feira, 27 de março de 2013

A hora que se aproxima

Salvador Dali - A persistência da memória (1931)

Naquele tempo, um dos Doze, chamado Judas Iscariotes, foi ter com os sumos sacerdotes e disse-lhes: «Quanto me dareis, se eu vo-lo entregar?» Eles garantiram-lhe trinta moedas de prata. E, a partir de então, Judas procurava uma oportunidade para entregar Jesus. No primeiro dia da festa dos Ázimos, os discípulos foram ter com Jesus e perguntaram-lhe: «Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?» Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.’» Os discípulos fizeram como Jesus lhes ordenara e prepararam a Páscoa. Ao cair da tarde, sentou-se à mesa com os Doze. Enquanto comiam, disse: «Em verdade vos digo: Um de vós me há-de entregar.» Profundamente entristecidos, começaram a perguntar-lhe, cada um por sua vez: «Porventura serei eu, Senhor?» Ele respondeu: «O que mete comigo a mão no prato, esse me entregará. O Filho do Homem segue o seu caminho, como está escrito acerca dele; mas ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue. Seria melhor para esse homem não ter nascido!» Judas, o traidor, tomou a palavra e perguntou: «Porventura serei eu, Mestre?» «Tu o disseste» respondeu Jesus. (Mateus 26,14-25) [Comentário de Catarina de Sena aqui]

Em parte, o conteúdo do texto de Mateus foi já comentado aqui e aqui. Não se retornará à questão colocada pelo acto de Judas. Comentar-se-á apenas o estranho versículo 18: Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.’» A estranheza do versículo deriva da conexão entre “um certo homem” e aquilo que lhe deve ser dito.

As perguntas que surgem são óbvias. Quem será esse tal homem, que o texto apresenta de forma tão indeterminada? A importância desta figura invisível não advém apenas do facto de ser na casa dele que Cristo quer celebrar a Páscoa com os discípulos, embora o facto de ser aí precisamente e não noutro lugar não seja coisa despicienda. Esse alguém parece ter uma capacidade de compreensão do mistério crístico muito acima dos próprios discípulos, pois entende a expressão “o meu tempo está próximo”, a qual funciona como uma verdadeira senha que o leva a abrir a porta para  que seja aí realizada a Última Ceia. Quem é homem? O que sabe ele para que entenda a senha? Que relação tem ele, que não é um dos discípulos, com o próprio Cristo?

Kαιρος μου εγγυς εστιν, esta é a expressão grega do texto recebido que pode ser traduzida por a minha hora aproxima-se. É preciso distinguir entre kairos e cronos. Ambos podem ser traduzidos por tempo. Contudo, cronos remete para um tempo cosmológico que os calendários tentar fixar e dar sentido. Já kairos é o tempo existencial, e a expressão designa a hora certa ou própria de um determinado acontecer. Isto significa que aquela hora que se aproxima não se inscreve tanto na cronologia do cosmos ou da própria história humana, mas é da dimensão da irrupção de um acontecer decisivo que aguarda a hora oportuna.

Quando se diz que esse acontecer que pertence ao kairos não se inscreve na história humana, diz-se algo de muito parcial, diz-se que ele não pertence ao normal decurso dos acontecimentos sociais. Esse acontecer, todavia, acaba por se tornar inaugural dessa mesma história, pois desenha – e a história do Ocidente é a sua comprovação – um antes e um depois, ao qual toda uma civilização acabará por reportar os acontecimentos históricos.

Retorne-se à questão – que parece absolutamente decisiva – sobre a identidade daquele homem a quem os discípulos levaram o recado do mestre. A palavra grega presente no texto é δεῖνα. Ora este termo é usado quando não se especifica quem é a pessoa de quem se fala. Podemos dizer que é um espaço vazio à espera de ser preenchido por alguém com uma dada biografia. Reformule-se a questão: a quem levaram, na cidade, os discípulos  o recado do mestre, a quem foi apresentada a senha? Esse espaço biográfico vazio parece estar vago para ser preenchido com o nome de cada um de nós.

Para além da misteriosa figura histórica do dono da casa onde a Páscoa será comida, é a cada homem que o Mestre anuncia – e a anuncia a cada instante – que a Sua hora se aproxima. A cada momento é apresentada a senha – a minha hora aproxima-se – a cada homem. Esta senha solicita uma determinada resposta: abrir-lhe a casa (essa metáfora do nosso próprio ser) para que o mistério seja consumado no mais fundo e no mais secreto de cada um. Podemos negar, fugir, até trair, mas a hora que se aproxima é também a nossa hora.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Uma questão de identidade

James Ensor - Ecce Homo

Naquele tempo, os judeus voltaram a pegar em pedras para apedrejarem Jesus. Jesus replicou-lhes: «Mostrei-vos muitas obras boas da parte do Pai; por qual dessas obras me quereis apedrejar?» Responderam-lhe os judeus: «Não te queremos apedrejar por qualquer obra boa, mas por uma blasfémia: é que Tu, sendo um homem, a ti próprio te fazes Deus.» Jesus respondeu-lhes: «Não está escrito na vossa Lei: 'Eu disse: vós sois deuses'? Se ela chamou deuses àqueles a quem se dirigiu a palavra de Deus e a Escritura não se pode pôr em dúvida a mim, a quem o Pai consagrou e enviou ao mundo, como é que dizeis: 'Tu blasfemas', por Eu ter dito: 'Sou Filho de Deus'? Se não faço as obras do meu Pai, não acrediteis em mim; mas se as faço, embora não queirais acreditar em mim, acreditai nas obras, e assim vireis a saber e ficareis a compreender que o Pai está em mim e Eu no Pai.» Por isso procuravam de novo prendê-lo, mas Ele escapou-se-lhes das mãos. Depois, Jesus voltou a retirar-se para a margem de além-Jordão, para o lugar onde ao princípio João tinha estado a baptizar, e ali se demorou. Muitos vieram ter com Ele e comentavam: «Realmente João não realizou nenhum sinal milagroso, mas tudo quanto disse deste homem era verdade.» E muitos ali creram nele. (João 10,31-42) [Comentário de Agostinho de Hipona aqui]

O texto de João começa com a exposição de um conflito em torno da identidade de Jesus. Para os judeus, Cristo blasfemava pois, sendo homem, fazia-se a si mesmo Deus. Quem era Ele? Um homem ou Deus? Surpreendentemente, a questão sobre a identidade de Jesus é transformada por Este na questão da identidade do homem, de qualquer homem. A opacidade da figura de Cristo surge assim como continuação da obscuridade que cada um é para si mesmo. Não é apenas Cristo que é um mistério para o homem, é o próprio homem que é mistério para si mesmo.

Como compreender a fúria daqueles que pegavam em pedras? De certa forma, a figura de Jesus Cristo funciona como um espelho. Ao verem-se nesses espelho, os homens não gostam do que vêem. A imagem de si-mesmos que lhes é devolvida está longe de lhes agradar. Observam-se numa figura onde sobressai uma mutilação e uma feiura que não podem, por orgulho, suportar. É como se a presença de Cristo lhes dissesse: vós sois deuses, como está na Lei, mas transformastes-vos em meros apedrejadores, pois já não sabeis quem sois nem qual o vosso caminho.

A solidariedade entre o mistério da identidade de Cristo e o mistério da identidade do homem tem como corolário a ideia de que a descoberta de Cristo é, para cada homem, uma viagem para si mesmo, uma descoberta de si e da sua própria verdade. Que isto indigne a razão torna-se evidente pelo facto de que nem as obras visíveis – essas provas materializadas de uma identidade que ultrapassa a mera consideração de um eu empírico – são o suficiente para acalmar os homens. A natureza do Cristo, a sua identidade, é um escândalo para a razão presa à abstracção lógica e limitada à informação empírica. Esse escândalo, contudo, não é diferente daquele que reside na identidade e natureza de cada homem. É esse escândalo que, através de Cristo, somos solicitados a aceitar e é esse mesmo que mais tememos em aceitar. Por isso, não faltam pedras nas mão.

terça-feira, 19 de março de 2013

Conferir realidade

Johan Thorn Prikker - A noiva (1892-3)

Jacob gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado Cristo. Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo. José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la, resolveu deixá-la secretamente. Andando ele a pensar nisto, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: «José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados.» Despertando do sono, José fez como lhe ordenou o anjo do Senhor, e recebeu sua esposa. (Mateus 1,16.18-21.24a) [Comentário proveniente da liturgia grega aqui]

O texto escolhido para hoje estabelece o vínculo entre uma filiação e uma função. Contudo, o vínculo funda-se num mistério e exige uma atitude. A função do Filho de Maria é a de ser Cristo, o Messias, aquele que salvará o povo da errância. O vocábulo σωσει (terceira pessoa do singular do futuro do indicativo do verbo σωζω) remete para um amplo campo semântico. O verbo σωζω significa libertar, proteger, curar, preservar, salvar, mas também guardar, guardar na memória, perdoar, não matar. Na figura e função de Cristo encontramos plasmadas todas estas significações. O vínculo com a filiação – que faz a conexão com David – mostra que esta função tem uma natureza real. Real porque se inscreve numa determinada estirpe, a de David, que tem por função reinar, mas real também porque produtora de realidade.

A salvação, a obra do Messias, é então uma obra de conferir realidade ao que a tem diminuída. Por isso, por esta dimensão ontológica da função atribuída ao Filho de Maria, se percebe por que motivo ele é um libertador, um protector, um salvador, um guardador. Liberta os homens de um determinado estado em que eles se encontram diminuídos, protege-os da queda nesse estado, cura-os e guarda-os da deficiência ontológica em que se encontram. É esta função que, apesar de real, se inscreve no mistério.

A experiência humana corrente é a da deficiência ontológica, é a da errância, é a da falta que o homem sempre sente mas que, mesmo se dotado de uma vontade poderosa, nunca consegue colmatar. É a sua natureza finita e falível, pensará submetido ao âmbito da experiência empírica. Que ele possa ser outra coisa, não pode deixar de ser, para si mesmo, um mistério. Este mistério requer o mistério da imaculada concepção do próprio Salvador. Ele é um homem mas não é um homem. A sua natureza plenamente humana é mais que humana e o mistério da sua concepção é o testemunho desse excesso de natureza.

Haverá um caminho para o homem compreender esse mistério? Segundo o texto, fica claro que existe um caminho para a compreensão do mistério. Para uma consciência moderna, educada na crítica e na recusa de qualquer autoridade que não a razão, é o mais terrível, cruel e decepcionante dos caminhos, o da obediência. José figura todos aqueles que se abriram ao mistério da natureza humana, ao mistério de que ela possa ser outra coisa para além de matéria corruptível, e obedeceram à voz interior que por eles chamava. Ele fez o que lhe foi ordenado, isto é, obedeceu e recebeu a sua esposa, abriu-se ao mistério, abriu-se àquele que, no fundo do seu ser, chamava por ele. Não rejeitando o filho de Maria, José não se rejeitou a si mesmo, não rejeitou o que de salvífico e libertador tinha em si mesmo, não rejeitou tornar-se efectivamente real, de se tornar naquilo que ele efectivamente era.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O homem crepuscular

Rafael Romero Barros - Crepúsculo (1890)

Por vezes diz-se "somos homens crepusculares". Talvez se queira dizer com isso que somos homens tardios, que pertencemos a um tempo em que uma antiga luz envelheceu e tudo se prepara para entrar na noite, essa negra noite que culminará a tenebrosa idade de ferro que nos foi dada a viver. Mas esta mitologia esconderá antes uma outra coisa. No crepúsculo pensa-se esse momento em que o dia hesita entre a luz e as trevas. Ora essa é a situação de cada um, aquilo que no post de ontem se denominava como o impreciso e o sombrio. O importante, porém, é o destino que se escolhe, aquilo pelo qual o ser anseia. Escolher a luz significa caminhar de claridade em claridade, sem que, nesta vida, seja possível sair do impreciso que a sombra sempre nos impõe.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O impreciso e o sombrio

Pierre-Albert Marquet - Céu nublado em Hendaya (1926)

É nos dias nublados que melhor se vê, pois essa é a situação que se adequa à nossa condição mortal. As trevas tornam tudo negro e a pura luz cega-nos. O caminho do Viandante é feito de sombras, névoas e neblinas. Aí constatmos que tudo é misterioso e não alimentamos a ilusão que podemos compreender o que se nos apresenta. Houve quem procurasse a clareza e a distinção. O Viandante procura o impreciso e o sombrio.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Uma economia do dom

Tiziano - La venida del Espíritu Santo (1545)

L'un possède le don de parler avec sagesse ; l'autre, avec science. Un autre, le don de la foi ; un autre, le don de guérison ; un autre, le don des miracles ; un autre, le don de prophétie ; un autre, le don de parles diverses langues ; un autre, le don de les interpréter. Or, c'est un seul et même Esprit qui opère toutes ces choses : Haec autem omnia operatur unus atque idem Spiritus. (Jean-Joseph Gaume (1865) Traité du Saint Esprit)

Esta tradição viva da Igreja Católica de atribuir o conjunto das capacidades e potências presentes nos indivíduos, sob a denominação de dons, ao Espírito Santo sublinha uma coisa que, nos dias de hoje, se tornou quase incompreensível. Nenhum mérito nos pertence pela posse dessas qualidades. Elas foram-nos doadas, como sublinha a própria palavra dom. Pode haver em nós algum mérito na manutenção e desenvolvimento desses dons, mas a sua posse ou a sua falta não deixam de constituir para o indivíduo um mistério, um verdadeiro mistério do Espírito Santo, para usar os termos da tradição cristã. 

Este carácter misterioso presente na herança ou nos dons recebidos tem três consequências. Uma primeira coloca-nos no nosso lugar. Por mais dotado que eu seja, isso nada tem a ver com um mérito pessoal do qual possa orgulhar-me. Uma segunda consequência sublinha que os dons, não sendo mérito meu, apelam para a sua realização segundo uma perspectiva de serviço aos outros. Por fim, o dom, por não ser origináriamente meu, implica o dever de o desenvolver e de o consumar na realização do bem que ele contém. O dom traz consigo o imperativo da sua realização, da realização do Espírito doador que nunca deixa de estar presente em cada um dos dons com que presenteia os indivíduos. 

Nesta economia do dom, para usar uma expressão que remete para Marcel Mauss, percebe-se que somos parte de uma cadeia de reciprocidades, a qual estrutura a comunidade humana enquanto tal. E aqui podemos pensar mais fundadamente no mistério do Espírito Santo como o mistério da instauração das comunidades humanas, nas quais ele toma corpo e carne através dos dons distribuídos gratuitamente.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Solidão e mistério

Carlo Carra - Solitudine (1917)

Vivemos num tempo ambíguo relativamente à solidão. Por um lado, não apenas somos convocados para a vida em rebanho, como essa vida nos entra porta dentro sem que tenha sido convidada. Por outro lado, são inúmeros os seres humanos que vivem solidões indesejadas, abandonados à sua sorte, solidões que doem desesperadamente. A vida em rebanho e essa solidão indesejada são as duas faces da mesma moeda. Essa moeda é a alienação, o estranhamento a que as sociedades modernas parecem querer condenar os homens. Alienação significa aqui o estranhamento a si mesmo, à sua natureza mais funda, o estranhamento à essência que nos torna verdadeiramente humanos. 

Essa alienação tem ainda o condão de ocultar a necessidade que cada ser humano possui de solidão. Não da solidão negativa fruto da impotência, mas de uma solidão que permita o encontro de cada um consigo mesmo, com aquilo que de mais secreto habita no fundo dos homens. Essa solidão exige o silêncio. Em primeiro lugar, o silêncio exterior, o afastamento da algazarra feérica que anima a vida do rebanho. Em segundo lugar, o silêncio interior, o abandono das ilusões, mas também dos desejos e receios com que, continuamente, nos enganamos. A solidão, a verdadeira solidão, não implica o corte radical com os outros, mas uma vida temperada onde o estar só e o estar acompanhado se equilibram. Esse equilíbrio é uma condição necessária para que cada um se confronte com a verdade que traz em si, com o mistério que foi cifrado ao ser concebido e ter vindo à vida.

domingo, 8 de abril de 2012

Ressurreição


Começar mais uma vez? Recomeçar? Uma ressurreição que seja uma retorno ao começo não é uma ressurreição, mas o eterno retorno do idêntico. O que haverá no mistério da ressurreição de Cristo que prenda ainda a fé dos homens? Sim, certamente, a promessa da vitória contra a morte, a ideia de uma vida eterna, a expectativa de um além onde não haja condenação ao nada eterno, tudo isso é atraente, tudo isso fixa a imaginação popular, e dá-lhe um suporte intuitivo para a fé. Será, porém, isso que está em jogo? Melhor, será apenas isso que se jogo no mistério da ressurreição de Cristo? 

Se for apenas isso, então é uma espécie de desafio para que se protele a vida nova, que se adie para depois da morte a ressurreição. A ressurreição crística, todavia, é um desafio a nós que estamos mortos e não o sabemos. A nossa morte não é a mera morte zoológica ou biológica, mas a morte em que mergulhamos na vida biológica, nessa preocupação excessiva com a nossa animalidade. A ressurreição de Cristo é o chamamento para uma vida plena aqui e agora. A morte de Cristo não é uma morte metafísica, puramente simbólica, mas uma morte no aqui e agora da História da humanidade. 

A historicidade dessa morte (mesmo que essa historicidade seja apenas uma mera crença não justificada) é o indício que nos evidencia que a ressurreição é aqui e agora, a ressurreição da nossa vida diminuída e diminuta, da nossa vida mesquinha e sem sentido. Ressurreição não é um mero facto. É um desafio que é lançado ao homem vivo, para que na vida, em cada um dos seus instantes, triunfe sobre a morte. Não se trata de retornar ao mesmo, ao idêntico, à pura biologia, mas de se diferenciar, tornar-se outro, tornar-se naquilo que se é, resolver o mistério da sua própria existência.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O Corpo de Deus

Dia de Corpo de Deus, dia de afirmação da presença substancial do corpo e do sangue de Cristo na hóstia consagrada. Mas o que de mais fundo agora podemos pressentir, para lá do mistério eucarístico, é a sagração do corpo. Estranha visão esta. Não será o cristianismo a religião adversa do corpo e da carne? Mas como pensar então no corpo de Deus? Como estabelecer a conexão entre Deus e corpo? O corpo de Cristo simboliza o carácter divino do próprio corpo. E o corpo não é apenas corporalidade reduzida à mera extensão, reduzida a uma geometria tri-dimensional. O corpo e o sangue enviam-nos para a ideia de carne, de corpo vivo, mas também aqui não estamos perante uma dimensão puramente biológica. O corpo é mais do que um elemento físico e biológico, o corpo humano, com tudo o que contém, é um mistério e um caminho que leva o homem para além daquilo que é meramente humano, ou, dito de outra forma, sendo humano é, por isso mesmo, sobre-humano.