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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Da cisão do espírito

Antoni Angle, Acció Gallot, 1960

Há dias em que o espírito se cinde em mil línguas de fogo, não como o Espírito Santo portador da verdade mas como um corpo lacerado sob o efeito do chicote. Dividido, em luta consigo mesmo, perdido nessa guerra onde cada ideia é inimiga de outra ideia, o espírito sangra. Quando, exausto, se rende na sua cruz, descobre em si uma nova vida. Então, surge a aurora e o mundo retorna à infância como se tudo começasse de novo.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Da convergência

Jackson Pollock - Convergence (1952)

A vida, devido à multiplicidade de experiências que proporciona, é o lugar onde a consciência, ao romper com a sua unidade ingénua, é arrastada de divergência em divergência, o que a poderá conduzir à cisão absoluta, à mais escura das patologias. A vida espiritual é o exercício de um retorno a si, de uma convergência consigo mesmo para além da unidade ingénua e da dissipação na divergência, é o lugar da salvação, entendida esta como a terapia dessa cisão que torna o homem estranho a si mesmo.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Tudo é uno

Kenneth Noland - Caminho interior (1961)

Um dia o viandante descobre a futilidade de dividir a vida em vida do corpo e vida do espírito, em caminho exterior e caminho interior. Não há dois caminhos como não há duas vidas. Tudo é uno. Os passos que dou no mundo são ainda uma aventura do espírito e aquilo que vejo, por objectivo que seja, não deixa de ser a projecção do meu espírito.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Da dinâmica do desejo

Max Pechstein - Três nus numa paisagem (1912)

Os objectos mundanos que solicitam o nosso desejo têm uma dupla característica. Inscrevem-se sempre numa dada paisagem, que pode atenuar ou intensificar, por vezes até ao paroxismo, o desejo. São múltiplos e, desse modo, estilhaçam a intencionalidade do desejo, solicitado por múltiplos focos desejáveis. Descobrimos assim que, devido à inscrição numa paisagem, não há, no nosso estar no mundo, um desejo puro, mas sempre um desejo revestido pela ambiência. Descobrimos ainda que a multiplicidade dos objectos desejáveis fragmenta o desejo e cinde a vontade. Impuro e fragmentário, o desejo abre em nós uma brecha que a vida parece incapaz de cerzir.

quinta-feira, 7 de março de 2013

A cisão consigo mesmo

René Magritte - Auto-retrato (1923)

Naquele tempo, Jesus estava a expulsar um demónio mudo. Quando o demónio saiu, o mudo falou e a multidão ficou admirada. Mas alguns dentre eles disseram: «É por Belzebu, chefe dos demónios, que Ele expulsa os demónios.» Outros, para o experimentarem, reclamavam um sinal do Céu. Mas Jesus, que conhecia os seus pensamentos, disse-lhes: «Todo o reino, dividido contra si mesmo, será devastado e cairá casa sobre casa. Se Satanás também está dividido contra si mesmo, como há-de manter-se o seu reino? Pois vós dizeis que é por Belzebu que Eu expulso os demónios. Se é por Belzebu que Eu expulso os demónios, por quem os expulsam os vossos discípulos? Por isso, eles mesmos serão os vossos juízes. Mas se Eu expulso os demónios pela mão de Deus, então o Reino de Deus já chegou até vós. Quando um homem forte e bem armado guarda a sua casa, os seus bens estão em segurança; mas se aparece um mais forte e o vence, tira-lhe as armas em que confiava e distribui os seus despojos. Quem não está comigo está contra mim, e quem não junta comigo, dispersa.» (Lucas 11,14-23) [Comentário de Simeão o Novo Teólogo aqui]

As palavras de Cristo relatadas nos evangelhos são, muitas vezes, interpretadas de forma não política, como se dissessem respeito a uma esfera para lá da vida da pólis. Uma esfera ética e religiosa. Contudo, é possível pensar que isso seja uma mera aparência que não corresponde à verdade. O recurso, nas analogias presentes nas parábolas, à metáfora do reino é recorrente, o que deixa perceber uma atenção muito especial a esse fenómeno, como se ele fosse essencial na relação do homem com o divino e com o humano.

O texto de Lucas pode ser lido como uma reflexão sobre a cisão de si mesmo a partir da ideia de divisão de um reino. Qual a condição de possibilidade de existência de um reino? Que não esteja dividido contra si mesmo, que mantenha a unidade, que evite, em última análise, a guerra civil. A divisão do reino conduz à devastação, à destruição. A integralidade do reino é essencial à sua persistência na existência. E o que se diz do reino humano é extensível aos reinos de Satanás e de Deus.

É no âmbito da chegada do Reino de Deus aos homens que surge a afirmação final do texto: Quem não está comigo está contra mim, e quem não junta comigo, dispersa. Pode ser lida, certamente, como uma prefiguração da instituição da Igreja, da necessidade de uma comunidade reunida em torno de Cristo. O texto, porém, permite ir numa outra direcção e pensar a dispersão que ocorre no próprio homem.

O que homem que se divide a si mesmo, que opõe o Cristo que há em si ao eu empírico. É esta divisão de si consigo mesmo que conduz à dispersão e à errância, esse sentido originário daquilo que, posteriormente, foi denominado como pecado. Em cada homem, a dimensão empírica, a persona que a configura, tende, pela sua natureza intrinsecamente fragmentária, para a dispersão e o esquecimento do que há de mais essencial no interior do homem, para a obliteração dessa presença do Cristo em cada homem, pois ele o centro unificador da vida e do sentido. Tomando o modelo do reino, a dispersão de si, a derrelicção do Cristo interior, terá com fim a pura devastação de si.