sábado, 27 de abril de 2024

Micronarrativa (65) Um deus na tormenta

Sebastião Salgado, Oil wells firefighter, Greater Burhan, Kuwait, 1991

Um fogo magnético eleva-se do fundo da terra. Atrai com as suas chamas ascensionais os seres celestes, que, espantados, olham a inconstâncias das chamas. Preso na sua solidão, um homem desloca-se, com a lentidão de um deus, para o centro da tormenta. Traz nele a sabedoria do hábito e a inspiração que a hora exige. Está na argúcia das suas mãos o poder de devolver o fogo à caverna de onde o acaso da natureza ou a impotência dos homens o deixou escapar.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (5)

Anny Heimann, Im Garten, 1906

Tarde de tempestade anunciada

na negrura dos céus de anil e chumbo.

O calor prende os pássaros nos ramos

de árvores tolhidas no sol de Abril.

 

Um vento no silêncio do crepúsculo

abre as avenidas aos rumores,

ao desejo da memória, ao incêndio

dos dias de fantasia primaveril.

 

A chuva prometida que não cai.

O soar do trovão no trem da tarde.

O enigma dos pássaros de cinza.

 

A vida na memória se recolhe

aberta ao desejo de quem canta,

fechada ao fulgor da noite fria.

 

Abril de 2024

terça-feira, 23 de abril de 2024

O sal do silêncio (113)

Augusto Gomes, sem título, 1953 (Gulbenkian)
A mulher senta-se na areia, a vastidão do oceano entra-lhe pelo olhos e toca-lhe o coração, abrindo-o ao medo da desmesura. Inquieta, entrega-se na pedra do silêncio, enquanto o sal das águas cintila como uma mensagem viva na terra morta.

domingo, 21 de abril de 2024

Diálogos morais 65. Raízes

Unknown, Cypress Trees on Side of Roadway, 1912

- É estranho ser um cipreste.
- Não mais do que ser qualquer outra árvore.
- Usava apenas a nossa situação como exemplo.
- Exemplo de quê?
- Vivemos ao lado de uma estrada onde as coisas se movem, mas nós somos imóveis, estamos presas pelas raízes.
- Estarmos ancoradas na terra, será uma prisão?
- Não é uma prisão? Como podemos acompanhar quem por aqui passa?
- E quem aqui passa estará seguro do seu lugar? 
- Pode ir a onde queira.
- E nós ficamos a onde pertencemos. Temos raízes.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Pintura e haikus (39)

Fernando Calhau, sem título #80, 2000 (Gulbenkian)

Tinta sobre tinta,

desespero de cinzentos,

entre branco e preto.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (4)

Lucas Van Valckenborch, Animals Grazing beneath Trees, 1573

Sigo pela vereda junto ao rio,

os campos do Inverno se despedem.

Viandantes sem nome, extasiados,

olham o despertar da natureza.

 

A vida rude anima o turbilhão

das águas que procuram o caminho.

Depois dos rios, um mar as aguarda.

Levam a voz dos campos, luz e cal.

 

Olho o longo adeus, oiço calado

o rufar dos tambores na voz quente

dos pássaros do Sul, junto ao rio.

 

A súbita memória do Verão

incendeia de luz rios e campos,

um fogo de água arde frio no mar.

 

Abril de 2024


segunda-feira, 15 de abril de 2024

Meditação breve (194) Ler e escutar

Manuel Filipe, Leitura clandestina / Audição clandestina, 1945 (Gulbenkian)

Toda a autêntica leitura terá um traço de clandestinidade, pois ler é ir para além da letra e procurar sem descanso, em morada abscôndita, o espírito que por ela fala. Ler é quebrar as regras do explícito e mergulhar no oceano do implícito, inventar-lhe sintaxes e semânticas que toquem aqueles que, oculto no segredo, escutam.

sábado, 13 de abril de 2024

A memória do ar (29)

Mário de Oliveira, Paisagem, 1973 (Gulbenkian)

Os campos que se abrem ao peso do ar florescem em Primaveras tardias, onde a memória do passado se constrói na lentidão com que o tempo, embalado pelas brisas matinais, se apodera da terra e perscruta aquilo que o ar esconde na opacidade da sua pura transparência.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Geometrias de fogo (29)

José Dominguez Alvarez, Rua ao Sol, 1930 (Gulbenkian)

A impiedade do fogo cai sobe a praça. Traz em si uma premonição infernal, pesadelos a assombrar almas que tremem perante um mundo rodeado de labaredas. Os homens, para se esconder da maldição, percorrem as sombras num ir e vir até que o Sol se esconda e o fogo se perca para lá da linha do horizonte.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (3)

Léon Kossoff, Red Brick School Building, Willesden, Spring, 1981

A luz da tarde abre o horizonte,

a cidade cintila crua e sôfrega

tecida no azul dum céu de cristal,

nascida no espelho da memória.

 

Ao longe, as muralhas do castelo,

mais perto, o rumor vivo do rio.

As pessoas caminham em silêncio,

presas na sombra pálida do dia.

 

Sigo as labaredas da memória,

inscrevo no cristal o céu azul

roubado ao espelho da infância.

 

Solícita, a cidade feita sombra

chama-me no rumor rude do rio,

fala-me no silêncio de quem passa.

 

Abril de 2024


domingo, 7 de abril de 2024

A sombra da água (29)

W. Eugene Smith, Iwo Jima, 1945

Também pela água chega, como uma milícia, a sombra da morte. Traz com ela uma lua de coral para alumiar os que entregam a alma à floresta do silêncio e deixam o corpo abandonado sobre as areias, onde poisarão bandos de gaivotas e anjos confundidos pelo calor da batalha.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

O Espírito da Terra (29)

Autor desconhecido, Hawaiian Tree Study, 1900-1910

É uma terra tocada pela sombra da solidão. Os que por ela caminham trazem nas veias o sangue tocado pela substância porosa da loucura. Sentam-se sob a copa das árvores e esperam que o espírito lhes sopre nos ouvidos o caminho a seguir. Então, levantam-se e enfrentam o horizonte com a resina luminosa do poente.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

A memória do ar (28)

Inês Cannas, s/título (PIQ 6), 2000 (Gulbenkian

Atmosferas tomadas pela corrupção trazida pelo tempo cercam de verde e oblívio o vigor ancestral das montanhas. Onde havia o apaziguamento dos olhos humanos, há, agora, um mundo de perturbação envolto pelo ar sulfuroso dos dias de cólera e pela alucinação de quem pensa sobre o devir daquilo que é tocado pela mão dos homens.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (2)

Paula Modersohn-Becker, Man lying beneath a Blossoming Tree, 1903

Veio Abril, o mês da vã promessa,

o tempo onde o sol e a fria chuva

se encontram nos olhos extasiados

de quem vai pelos campos, solitário.

 

Um ardor nupcial fulge na terra.

Cintilações e fogos de artifício

fendem as sombras ávidas da noite,

são cânticos de pássaros nos céus.

 

Pelos campos caminho solitário,

guardo a promessa nos meus olhos

abertos para o êxtase de Abril.

 

No fogo desta noite rasgo as sombras.

O que estava morto ressuscita

na voz núbil dos pássaros que cantam.


Abril de 2024