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terça-feira, 30 de agosto de 2016

Eclipses e conversões

José María Yturralde - Eclipse (1996)

E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1:5)

O acto da conversão está longe de pertencer apenas ao domínio da religião. Ele é inerente a toda a vida espiritual do homem. Thomas S. Kuhn vê a transição, na ciência, de uma matriz disciplinar a outra como uma conversão, pela qual o cientista passa a olhar a realidade e a ciência de uma outra perspectiva. Encontramos isso também na arte e até em fenómenos mais prosaicos como a política. A conversão é sempre a adopção de um outro ponto de vista. Ela não é, contudo, apenas isso. É também o desfazer de um eclipse, a remoção de um objecto opaco que oculta a fonte luminosa. Não se trata apenas de olhar de outra maneira. A própria luz também é outra. Toda a vida espiritual do homem começa - e continua - com o enfrentar de um eclipse, um eclipse onde um ego obscurece a luz que vem do ipse, de si mesmo.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Metamorfose e metanoia

Jackson Pollock - Alchemy (1947)

A viagem do espírito - quero dizer: a vida que somos solicitados a viver - é, na verdade, um processo alquímico, para usar uma metáfora ao gosto revivalista desta época, um processo de transformação do que é vulgar e vil no ser humano em algo que seja nobre e elevado. É uma metamorfose do espírito servil num espírito livre. A questão, porém, é que este caminho só começa se houver uma metanoia, uma conversão. Isto significa que se adopte um outro ponto de vista sobre a vida. A natureza dá-nos um programa em que ela se reproduz e persiste. Conversão significa, porém, que o homem descobre para além da natureza dada, marcada pela estrita necessidade, uma outra natureza, aquela que o solicita a ser mais do que mera necessidade, que lhe dá o imperativo de ser livre.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Do jogo da conversão

Max Ernst - La bicicleta gramínea (1920-21)

O uso da palavra conversão, nos jogos de linguagem da religião, conduziu a uma degradação da palavra, de tal forma que, para além de um mero sentimento moral, nada mais se pensa nela. E contudo a conversão implica um novo olhar sobre as coisas e um novo modo de ser. A arte, por exemplo, é um jogo de conversões, onde se aproximam coisas que, pelo hábito, as temos como separadas. Converter-se é, então, um processo de aproximar o inaproximável, de, por exemplo, ver o inimigo como um próximo.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Tornar-se outra coisa

Werner Bischof - La bailarina Anjali Hora, Bombay, India (1951)

Uma das temáticas mais misteriosas da vida do espírito é a metanóia. Por norma, esse vocábulo de origem grega é tido como sinónimo de conversão. Conversão espiritual, uma mudança de ponto de vista sobre uma dada realidade. O exemplo mais famoso é o da conversão de Paulo de Tarso. Mas a conversão não diz respeito apenas ao espírito. Não se trata de mudar de ponto de vista, nem sequer de mudar de estilo de vida. Diz respeito a todo o ser, ao corpo, às entranhas mais recônditas, como se tudo, mas tudo mesmo, mudasse num homem e este se tornasse uma outra coisa.

domingo, 3 de março de 2013

Caminho e sentido

Max Klinger - Caminho

Naquele tempo, apareceram alguns a contar a Jesus, dos galileus, cujo sangue Pilatos tinha misturado com o dos sacrifícios que eles ofereciam. Respondeu-lhes: «Julgais que esses galileus eram mais pecadores que todos os outros galileus, por terem assim sofrido? Não, Eu vo-lo digo; mas, se não vos converterdes, perecereis todos igualmente. E aqueles dezoito sobre os quais caiu a torre de Siloé, matando-os, eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não, Eu vo-lo digo; mas, se não vos converterdes, perecereis todos da mesma forma.» Disse-lhes, também, a seguinte parábola: «Um homem tinha uma figueira plantada na sua vinha e foi lá procurar frutos, mas não os encontrou. Disse ao encarregado da vinha: 'Há três anos que venho procurar fruto nesta figueira e não o encontro. Corta-a; para que está ela a ocupar a terra?' Mas ele respondeu: 'Senhor, deixa-a mais este ano, para que eu possa escavar a terra em volta e deitar-lhe estrume. Se der frutos na próxima estação, ficará; senão, poderás cortá-la.'» (Lucas 13,1-9) [Comentário de Astério de Amaseia aqui]

O texto do Evangelho seleccionado, pela Igreja Católica, para este terceiro domingo de Quaresma conjuga o que parece uma conversa informal, embora de âmbito doutrinal, e uma parábola com a sua natureza alegórica e simbólica. É da tensão entre o explícito e o não explícito que se poderá encontrar um sentido para o texto. O diálogo inicial termina com um apelo à conversão, a uma radical mudança de ponto de vista e de caminho existencial. Esta conversão, porém, parece conter uma promessa, uma promessa paradoxal perante o próprio destino do Promitente.

Os galileus executados sob Pilatos ou os dezoito que morreram sob a torre de Siloé são vítimas da injustiça e do acaso, segundo as regras políticas e o entendimento humano. Não são melhores nem piores do que todos os outros. A morte aconteceu-lhes segundo uma lógica que não dominamos e que não se inscreve numa contabilidade de méritos e deméritos. É esta natureza ilógica da morte que é confrontada pela promessa. A promessa parece prometer que a conversão nos salva de uma morte injusta ou casual. Mas é a própria morte de Cristo, marcada pela injustiça e pelo acaso da decisão da opinião pública, que surge como refutação desta ideia.

A morte dos homens não deixará de ser um acidente – seja provocado pela injustiça, pelo acaso, pela doença, pela desconcerto próprio, etc. – e um acidente que nenhum cuidado poderá evitar. A conversão, porém, poderá trazer-lhe aquilo que lhe falta, o sentido. E o sentido da morte não é dado por esta, mas pela própria vida. A conversão inscreve-se na vida como uma forma de transição da errância ao sentido, um sentido que une aquilo que a morte separa. Encontrar o seu próprio caminho é o sentido último da conversão e é ele que retira tanto a vida como a morte do reino da insignificância e do ilógico.

A parábola da árvore que não dá fruto enxerta-se, para usar ainda uma metáfora agrícola, neste caminho e na conversão que se lhe associa. Duas ideias são sugeridas. É preciso tempo e é preciso alimento para que esse encontro do caminho frutifique. É na história humana e na história individual que a conversão se coloca, e coloca-se como uma inscrição no real, como um sentido que se abre e que torna significante a vida humana, a desprende da irrelevância a que uma vida meramente animal e social a condena. Frutificar é encontrar a raiz profunda da sua humanidade.

sábado, 2 de março de 2013

Uma estranha justiça

Antonio Pérez Rubio - La aventura de Don Quijote cuando ataca a la procesión de los disciplinantes

Naquele tempo, os publicanos e os pecadores aproximavam-se de Jesus para O ouvirem. Mas os fariseus e os doutores da Lei murmuravam entre si, dizendo: «Este acolhe os pecadores e come com eles.» Jesus propôs-lhes, então, esta parábola: Disse ainda: «Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao pai: 'Pai, dá-me a parte dos bens que me corresponde.' E o pai repartiu os bens entre os dois. Poucos dias depois, o filho mais novo, juntando tudo, partiu para uma terra longínqua e por lá esbanjou tudo quanto possuía, numa vida desregrada. Depois de gastar tudo, houve grande fome nesse país e ele começou a passar privações. Então, foi colocar-se ao serviço de um dos habitantes daquela terra, o qual o mandou para os seus campos guardar porcos. Bem desejava ele encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. E, caindo em si, disse: 'Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome! Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e vou dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros.' E, levantando-se, foi ter com o pai. Quando ainda estava longe, o pai viu-o e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o de beijos. O filho disse-lhe: 'Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho.' Mas o pai disse aos seus servos: 'Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha; dai-lhe um anel para o dedo e sandálias para os pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado.' E a festa principiou. Ora, o filho mais velho estava no campo. Quando regressou, ao aproximar-se de casa ouviu a música e as danças. Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo. Disse-lhe ele: 'O teu irmão voltou e o teu pai matou o vitelo gordo, porque chegou são e salvo.' Encolerizado, não queria entrar; mas o seu pai, saindo, suplicava-lhe que entrasse. Respondendo ao pai, disse-lhe: 'Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos; e agora, ao chegar esse teu filho, que gastou os teus bens com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo.' O pai respondeu-lhe: 'Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado.'» (Lucas 15,1-3.11-32) [Comentário de Bento XVI aqui]

Num mundo como o nosso, onde a questão da justiça distributiva tem um papel central, esta parábola continua a ter uma força desconcertante. Se observarmos as teorias rivais sobre a distribuição justa dos bens resultantes da cooperação social, depressa percebemos que a rivalidade não põe em causa o essencial. Deve ser dado a cada um aquilo que lhe é devido. Onde não há acordo é sobre o que se deve a cada um ou o que cada um merece. Os critérios usados para determinar o direito dos indivíduos não geram consenso e, na verdade, são formas particulares para justificar as pretensões de cada grupo ou indivíduo.

A parábola inscreve-se na controvérsia com o formalismo religioso farisaico. O formalismo abandona os homens, abandona aqueles que estão transviados e perdidos na errância, usa um princípio de segregação que opõe justos e não justos. A questão central para Cristo, porém, está nos que estão perdidos, naqueles que não são contados, pelos homens, como pertencentes ao grupo dos justos. É uma faceta do velho conflito entre sedentários e nómadas. Perante a lei moral e religiosa, os sedentários – tipificados pelos fariseus – instalam-se no território da lei, privatizam-no e excluem do território aqueles que chocam com essa mesma lei. A errância em que estes se encontram – a ideia de pecado está intimamente ligada à errância – torna-os em nómadas, gente sem território, gente que se desterritorializa a cada momento. Enquanto nos justos o impulso vital seca, parece ser transbordante nos nómadas. É a este impulso que Cristo se dirige, que convoca. É esta convocatória que traz consigo o estranho princípio de justiça presente na parábola do filho pródigo.

Nele, o princípio de igualdade não é negado mas mostrado nos seus limites. Isto significa, antes de mais, um reconhecimento de que as várias teorias sobre a justiça distributiva e o princípio de igualdade possuem apenas um valor relativo. Esta relatividade não resulta de uma vitória de teorias individualistas ou socioculturais, mas do confronto com um padrão que ultrapassa a medida humana. A justeza (mais do que a justiça) do comportamento do pai perante os dois filhos emana de uma ordem que não é a que provém da razão calculadora (tipificada pelo filho justo). Implica um elevar-se ao padrão que faz com que um pai se alegre pelo retorno de um filho perdido na errância. Provoca os homens a deslocar a sua perspectiva do mundo e do bem e a aceder a um topos que integre e ultrapasse as conjecturas sobre a justiça fundada numa visão puramente humana da razão. O que não deixa nunca de ser chocante para esta e desconcertante para os homens.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Turbulências


A palavra turbulência tem, na sua pluralidade semântica, uma feliz capacidade de captar certas fases da vida humana. Por um lado, ela remete para a dimensão psicológica do desassossego e da perturbação; por outro, ela descreve, ao nível da Física, os movimentos irregulares dos fluidos, nos quais as diferentes partículas que passam em determinado ponto podem variar, no tempo, em grandeza e direcção. Há momentos da vida que ao desassossego ou perturbação do espírito corresponde uma conduta irregular do corpo - de um corpo que nessas horas se fluidifica -, como se essa irregularidade e variabilidade direccional e essa perturbação se reforçassem mutuamente. Será um exercício inútil determinar qual dos fenómenos é causa do outro. A sua concomitância mostra antes a unidade do espírito e do corpo. Mais importante que isso, porém, é perceber o que significa essa turbulência que por vezes atinge o ser humano. Que provações lhe são propostas? Que experiências se abrem ao corpo e ao espírito? O que, vindo de fora, pretende romper a imanência em que nos colocamos e protegemos da vida? A turbulência é sempre um sinal da transcendência, um apelo à abertura. Quem não se recorda da turbulência que atingiu Paulo de Tarso na estrada de Damasco? Por vezes, somos levados a considerar que o episódio paulino como algo excepcional. Contudo, cada ser humano passa inúmeras vezes por essa experiência da turbulência sem reconhecer que se encontra na sua estrada de Damasco.