Mostrar mensagens com a etiqueta Fraternidade. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Fraternidade. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Separação e reconhecimento

Edvard Munch - Separação (1894)

Naquele tempo, disse Jesus aos fariseus: «Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e fazia todos os dias esplêndidos banquetes. Um pobre, chamado Lázaro, jazia ao seu portão, coberto de chagas. Bem desejava ele saciar-se com o que caía da mesa do rico; mas eram os cães que vinham lamber-lhe as chagas. Ora, o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. Na morada dos mortos, achando-se em tormentos, ergueu os olhos e viu, de longe, Abraão e também Lázaro no seu seio. Então, ergueu a voz e disse: 'Pai Abraão, tem misericórdia de mim e envia Lázaro para molhar em água a ponta de um dedo e refrescar-me a língua, porque estou atormentado nestas chamas.' Abraão respondeu-lhe: 'Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em vida, enquanto Lázaro recebeu somente males. Agora, ele é consolado, enquanto tu és atormentado. Além disso, entre nós e vós há um grande abismo, de modo que, se alguém pretendesse passar daqui para junto de vós, não poderia fazê-lo, nem tão pouco vir daí para junto de nós.' O rico insistiu: 'Peço-te, pai Abraão, que envies Lázaro à casa do meu pai, pois tenho cinco irmãos; que os previna, a fim de que não venham também para este lugar de tormento.' Disse lhe Abraão: 'Têm Moisés e os Profetas; que os oiçam!' Replicou-lhe ele: 'Não, pai Abraão; se algum dos mortos for ter com eles, hão-de arrepender-se.' Abraão respondeu-lhe: 'Se não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, tão-pouco se deixarão convencer, se alguém ressuscitar dentre os mortos.'» (Lucas 16,19-31) [Comentário de Isaac, o Sírio aqui]

Como na generalidade dos textos aqui comentados, também neste há uma multiplicidade de leituras possíveis. Por exemplo, este poderá ser lido a partir da alusão final à ressurreição e à incapacidade dos contemporâneos crer nela ou ser tomado como núcleo central de uma espécie de apologia de uma justiça de classe de carácter transcendente. As possibilidades são inúmeras. A hipótese que se segue aqui centra-se, porém, numa reflexão sobre a separação. Em vários momentos do texto a temática da separação é central.

Em primeiro lugar, a separação encontra-se já presente nos interlocutores de Cristo, os fariseus. Um dos significados centrais do termo é o de “separados”, aqueles que se afastam dos outros, que, em nome do estudo da tradição, quebram os vínculos e rasgam a comunidade. Em segundo lugar, a separação está presente logo no início do discurso de Cristo, na separação radical entre o homem rico e Lázaro, o pobre coberto de chagas. Uma terceira separação surge na distância intransponível que afasta, no mundo dos mortos, o lugar do tormento e o lugar da consolação. Por fim, a separação dos irmãos do homem rico relativamente à tradição (Moisés e os profetas) ou ao ressuscitado.

A separação é, na sua essência, a quebra de um vínculo, o desfazer de uma aliança, a ruptura de um reconhecimento do outro. Por três vezes, no texto e em resultado do estado de separação, o reconhecimento do outro é obliterado. O rico não reconhece Lázaro como digno da sua atenção. Abraão não reconhece o rico como merecedor de consolação. Os irmãos do rico não haveriam de reconhecer nem a tradição nem o ressuscitado.

A separação é, deste modo, compreendida como fechamento em si, como um exercício solipsista (de um indivíduo ou de uma comunidade particular) que quebra a partilha de um destino comum com os outros homens. É a separação, com a concomitante ausência de reconhecimento do outro, que anula não apenas a compaixão como a própria comunicação inter-humana. A crítica das várias figuras da separação surge como um processo que visa a restauração da comunidade dos homens, do reconhecimento da fraternidade essencial que existe entre eles, da compreensão da sua complementaridade. Note-se que o texto não é uma proposta de dissolução das subjectividades individuais, a sua imersão num nós indiferenciado, mas um sublinhar da responsabilidade que cada subjectividade tem perante as outras, a atenção que lhes deve e a abertura que o cuidar do outro necessita. A comunhão, digamos assim, é uma comunhão de indivíduos.