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terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Meditação breve (193) Paisagem

João Navarro Hogan, Paisagem, 1939 (Gulbenkian)

Quando se ouve a palavra paisagem, um obscuro instinto leva-nos a imaginar espaços abertos e luminosos, onde a vida se desenrola num exercício de equilíbrio a que chamamos harmonia. Nesse hábito, esconde-se o desejo de que a vida seja assim, luminosa e aberta como bela paisagem campestre, mesmo que a luz, por intensa, oculte a obscuridade que ali habita. 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Meditação breve (192) Vibrações

Rafael Barradas, Paisaje vibracionista, 1918

A serenidade dos lugares, o calmo repouso que certas paisagens oferecem aos olhos mais incautos, o murmurante silêncio que se desprende da terra, tudo aquilo que sossega o pensamento e aquieta o coração emana de um intenso vibrar da natureza, da sua íntima inquietação que se transforma, à luz clara do dia, numa estância de aprazível tranquilidade.

domingo, 27 de agosto de 2023

Meditação breve (191) Uma sombra delida

Joaquín Torres García, Carnaval, 1897-98

Não há procissão de Ménades, nem estas se entregam ao culto do deus, mas o Carnaval ainda contém uma reminiscência dionisíaca, agora submetida ao cálculo do prazer, sem o rumor do sagrado nem traço de função cívica. Uma tão delida sombra nem chega a despertar o sobressalto de Apolo.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Meditação Breve (190) Assuntos domésticos

Max Ernst, El ángel doméstico, 1937

Ter-se-ão zangado os anjos domésticos, agora que desapareceram as fadas do lar, de quem cuidavam e a quem inspiravam os infinitos cuidados que elas, submersas na solidez férrea da sua função, prodigalizavam à casa e aos seus habitantes. Desempregados, esses anjos benevolentes deixaram-se tomar pela cólera e aspiram que a velha ordem seja trazida de volta e com ela as doces fadas com que pessoas desavisadas sonham noite dentro.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Meditação Breve (189) A imaginação

Raphael Colin, At the Edge of the Sea, 1892

A imaginação é como o fluxo das águas do mar. Vem e vai, comandada por um ritmo secreto, cuja lei inexorável ninguém conhece. Onde apenas existe água e areia, ela descobre corpos tomados pela beleza, transbordantes de ritmo, incendiados pelo desejo de quem os fantasia, prontos para se deixarem possuir pela arte do seu criador.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Meditação Breve (188) O tempo

Elliott Erwitt, Paris, 1989

Pode-se imaginar que a causa final que levou à invenção da fotografia tenha sido a de congelar para a eternidade um momento, do qual se expulsa o movimento e com ele o tempo. Depois, há fotografias em que o movimento se liberta e o tempo retoma o seu velho poder. O vento não deixará de fustigar os guarda-chuvas, o homem não parará o seu movimento em direcção aos lábios da mulher, o bailarino continuará a dar os passos que o mantêm entre o céu e a terra, como se a eternidade não fosse mais do que um tempo sem fim.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Meditação Breve (187) A Roda

James Valentine, The Wheel, ca 1900

Todas as coisas têm o poder de se tornarem símbolos e desse modo indicarem outras coisas. O que haverá  de mais prosaico do que uma roda de diversão? No entanto, ela facilmente se deixa ler como uma roda da fortuna. Os que nela vão fazem a experiência da mutação contínua da sua própria posição no mundo. Nada na terra é eterno. O que sobe descerá, o que desce elevar-se-á.

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Meditação Breve (186) Milagre

Artur Pastor, Série “Outras Geometrias”. Monsaraz, décadas de 40-60 (ver aqui)
Da alvura das paredes, da cintilação da cal, do peso dos anos, de tudo isso, como de um fruto longamente amadurecido, brota um murmúrio, logo transformado em canção, para se erguer ao céu como um hino de louvor àqueles lugares onde o tempo se dobra para, fruto de um milagre nascido da vontade de um Deus abscôndito, correr mais lento e apaziguado.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Meditação Breve (185) Troca de palavras

John H. Gear, Aus Chioggia, 1908

Uma conversa não é apenas uma troca de palavras. É também um jogo de expectativas. Haverá uma revelação? Chegar-se-á a acordo? O interlocutor continuará a ser idêntico ao que tem sido até aqui? Sem estas expectativas, a troca de palavras seria inútil. Elas são o horizonte de toda a comunicação. Dão-lhe sentido e, naturalmente, distorcem-na, pois não há expectativas sem mal-entendidos, que a troca de palavras poderá ou não sanar.

domingo, 28 de agosto de 2022

Meditação Breve (184) Entrelaçar

Ruth Matilda Anderson, Máxima Hernández García, 1928
Entrelaçamos os dias para compor o calendário com que construímos a passagem do tempo. É um modo de compor paisagens, não aquelas que se encontram no espaço e ferem os sentidos para que eles as não esqueçam, mas as que só o espírito, preso à cintilação do invisível, pode compor para dar um sentido ao que não tem sentido.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Meditação Breve (183) Náufragos

Francis James Mortimer, Wreck of sailing ship Arden Craig, 1911
De uma maneira ou de outra, todos somos náufragos. O frágil navio com que navegamos as águas agitadas do oceano da existência acaba sempre por ceder a uma inesperada tempestade. Resta-nos ter à mão um bote e talvez cheguemos a terra firme.

domingo, 3 de julho de 2022

Meditação Breve (182) A declinação do espírito

Irving Penn, Three Asaro Mud Men, New Guinea, 1970
São tantas as formas em que a humanidade se declina que, por vezes, podemos pensar que a cada momento dela podem, como rebentos de uma planta vigorosa, estar a brotar novas e novas espécies. E, no entanto, para além de algumas distinções de aparência sem relevo, a unidade física dos seres humanos permanece constante. O que é radicalmente diferente é o espírito que os habita e às suas comunidades, como se esse espírito tivesse muitos rostos e os fosse mudando em conformidade com uma lei que a nossa razão desconhece.

terça-feira, 7 de junho de 2022

Meditação Breve (181) A eloquência

Giorgio de Chirico, La estatua silenciosa Ariana, 1913

Presas na pedra, a língua tolhida pela mudez, acorrentadas ao silêncio, ainda assim as estátuas falam. São frugais no discurso, objectivas nas formulações, rigorosas no  questionamento, pois toda a verdadeira eloquência existe nesse hora em que se faz silêncio e a boca emudece para que o logos se solte do mármore e se torne vida no espírito de quem o escuta.

terça-feira, 24 de maio de 2022

Meditação Breve (180) Símbolos e palimpsestos

Albert Monier, L'écriture de la lumière, c. 1951
Nada é apenas aquilo que é. Nada é apenas puro existir. Tudo o que é, duradoiro ou efémero, ainda é símbolo de muitas outras coisas. Quando observamos uma certa realidade, caso saibamos lê-la, além dela vemos a sombra daquilo que ela é sinal, ouvimos o murmúrio daquilo que por ela fala. Cada coisa é um palimpsesto infinito, onde o leitor se perde no encantamento de descobrir, camada a camada, o que ali se oculta.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Meditação Breve (179) Tempo

Ilse Bing, Poster, Henry VIII, 1934
Olhamos a parede e vemos as pústulas semeadas pelo vírus do tempo. Este faz do corso a sua vida. Pilha as vidas e tudo o que o homem constrói. Empalidece a luz do meio-dia, erode as montanhas mais vigorosas, calcina o frio nas paisagens frias Norte. Reduz a poeira as palavras que os homens deixam aqui e ali.  Não há nada que não caiba na sua boca voraz.

terça-feira, 12 de abril de 2022

Meditação Breve (178) Moda

Horst P. Horst, Fashion model, 1938
Pode-se pensar que a paixão pela moda está ligada à esteticização da indumentária num mundo onde as aparências se tornaram essenciais ou, então, ao culto do corpo, a sua afirmação plena, feita pela oclusão do espírito através do sublinhar, pela roupa, dos traços físicos. No entanto, nos rituais da moda manifesta-se uma outra coisa, a liturgia do efémero e a ascese do passageiro. Nela afirma-se que apenas existe aquilo que passa e, após a cintilação de um instante, se reduz a nada. O brilho ofuscante da moda é uma outra modalidade em que o niilismo que corrói a cultura ocidental se torna ostensivamente patente.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Meditação Breve (177) Corpos

Gjon Mili, Nudes, 1940

Os corpos são, por vezes, flocos de luz. Outras, fundas cisternas onde se depositam águas lustrais. Se despidos, a luz irrompe pela pele. Quando adormecem e penetram no país do sonho, são como náufragos afogados no lago sombrio que os habita.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Meditação Breve (176) Contra a parede

Dorothea Lange, Against the Wall, San Francisco, 1934
Estar contra a parede não é apenas sentir-se encurralado, não haver lugar para onde fugir, ter chegado ao fim da linha, sem que a expectativa de um futuro abra o horizonte. É não ter direito à melancolia do presente, nem à nostalgia do passado.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Meditação Breve (175) Crepúsculo

Samuel H. Gottscho, Midtown Manhattan & Empire State building at Dusk, 1930s

A luz fulgurante que anima as grandes metrópoles, essa fantasia tecida pela técnica e que nos faz querer que a noite jamais chegará, não é outra coisa senão o sinal de um tempo crepuscular. Assinala a época em que, tomados por uma longa hesitação entre luz e trevas, os homens se preparam para entrar no grande império da noite.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Meditação Breve (174) O trabalho do tempo

Aaron Siskind, Rome 5, 1967

A pedra erodida é uma marca da passagem do tempo. É também uma lição dos efeitos deste. Apagamento dos contornos, simplificação da figura no seu esboço, redução de cada coisa ao magma da pura indiferenciação. O tempo é o mais feroz agente igualitário. Apaga os vestígios de tudo o que se quer proeminente e transforma em poeira o que, por uns momentos, ganhou individualidade.