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quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Meditação breve (201) Suspender o tempo

Rolando Sá Nogueira, sem título, 1959 (Gulbenkian)

Suspender o tempo e fixar o instante não é um prenúncio de eternidade, mas a destruição da narrativa. Se vemos um homem e uma mulher num banco de jardim, podemos descrever essa imagem, mas jamais saberemos se se estão a aproximar ou a afastar. É imperioso o retorno do tempo para que a narrativa encontre o que contar e revele o mistério que toda a imagem oculta.

domingo, 17 de novembro de 2024

Meditação breve (200) Floresta humana

Ana Hatherly, sem título, 1972 (Gulbenkian)

Olhamos e não sabemos o que vemos. Uma floresta? Uma multidão? O afastamento das coisas torna a sua imagem imprecisa e as nossas representações desadequadas. Talvez, vista do espaço sideral, seja uma floresta de homens, uma multidão petrificada, presa aos seus corpos vegetais, que começam a florir e haverão de frutificar quando chegar a hora.

sábado, 12 de outubro de 2024

Meditação breve (199) O saber do fogo

Carlos Calvet, sem título, 1967 (Gulbenkian)

É um saber selvagem o que nasce de olhar o fogo, uma ciência incendiária que se propaga como uma epidemia ou certos erros que tomam o freio nos dentes e reduzem a linguagem a cinzas. Só aquele que domina as artes do fogo tem poder para domar a sua ciência, reduzi-la fórmulas práticas de onde nasce todo o artifício que há no frágil coração de uma labareda.

sábado, 14 de setembro de 2024

Meditação breve (198) Aldeia

Francis Smith, Largo de aldeia (Petite place au Portugal), 1954 (Gulbenkian)

A doce fantasia de ver nas velhas aldeias locais de uma vida boa. Na aparente inocência de casas e pessoas, escondem-se os segredos mais terríveis, um exercício contínuo de vigilância mútua, o fogo aceso da inveja que nunca se extinguirá, uma mão sempre pronta para o crime.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Meditação breve (197) Realidade

Rui Filipe, Baixa-mar, 1973 (Gulbenkian)

A realidade de uma coisa diminui à medida que dela nos afastamos, torna-se difusa até desaparece do horizonte. Este é um pensamento trazido pelo hábito. Contudo, há uma outra experiência. Quanto mais nos aproximamos de uma coisa, menos a vemos. Podemos pensar então que a realidade de uma coisa aumenta conforme nos afastamos dela e, quando essa coisa desaparece do nosso horizonte e se torna em nada, devemos aceitar que é nesse nada que reside a sua realidade.

sábado, 29 de junho de 2024

Meditação breve (196) Mão

Henry Moore, The Artist's Hand III, 1973 (Gulbenkian)

A mão ainda não é o gesto, mas um começo, o sinal de uma promessa, o marco de uma esperança. Com ela, libertamo-nos da subjugação aos elementos da natureza e tornamo-nos os cuidadores do jardim, os que criam a expectativa de uma ordem na desordem espontânea de tudo o que é. Com ela, também trazemos a ameaça de apropriação daquilo que não é propriedade de ninguém e o anúncio de um caos mais terrível do que a espontânea desordem original, pois onde habita a promessa também dorme o desacordo e onde vive a esperança também se esconde o desespero.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Meditação breve (195) Esperança

Querubim Lapa, sem título, 1948 (Gulbenkian)

Quando a vida comum é tocada pela ausência de sentido, a expectativa do homem eleva-se da dureza da terra à imponderabilidade dos céus. Se se olha para cima, espera-se o auxílio e, com ele, o sentido que ajuda a viver no mundo que o perdeu. A esse movimento que transporta o olhar de baixo para cima deu-se, desde sempre e declinado em infinitas línguas, o nome de esperança.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Meditação breve (194) Ler e escutar

Manuel Filipe, Leitura clandestina / Audição clandestina, 1945 (Gulbenkian)

Toda a autêntica leitura terá um traço de clandestinidade, pois ler é ir para além da letra e procurar sem descanso, em morada abscôndita, o espírito que por ela fala. Ler é quebrar as regras do explícito e mergulhar no oceano do implícito, inventar-lhe sintaxes e semânticas que toquem aqueles que, oculto no segredo, escutam.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Meditação breve (193) Paisagem

João Navarro Hogan, Paisagem, 1939 (Gulbenkian)

Quando se ouve a palavra paisagem, um obscuro instinto leva-nos a imaginar espaços abertos e luminosos, onde a vida se desenrola num exercício de equilíbrio a que chamamos harmonia. Nesse hábito, esconde-se o desejo de que a vida seja assim, luminosa e aberta como bela paisagem campestre, mesmo que a luz, por intensa, oculte a obscuridade que ali habita. 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Meditação breve (192) Vibrações

Rafael Barradas, Paisaje vibracionista, 1918

A serenidade dos lugares, o calmo repouso que certas paisagens oferecem aos olhos mais incautos, o murmurante silêncio que se desprende da terra, tudo aquilo que sossega o pensamento e aquieta o coração emana de um intenso vibrar da natureza, da sua íntima inquietação que se transforma, à luz clara do dia, numa estância de aprazível tranquilidade.

domingo, 27 de agosto de 2023

Meditação breve (191) Uma sombra delida

Joaquín Torres García, Carnaval, 1897-98

Não há procissão de Ménades, nem estas se entregam ao culto do deus, mas o Carnaval ainda contém uma reminiscência dionisíaca, agora submetida ao cálculo do prazer, sem o rumor do sagrado nem traço de função cívica. Uma tão delida sombra nem chega a despertar o sobressalto de Apolo.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Meditação Breve (190) Assuntos domésticos

Max Ernst, El ángel doméstico, 1937

Ter-se-ão zangado os anjos domésticos, agora que desapareceram as fadas do lar, de quem cuidavam e a quem inspiravam os infinitos cuidados que elas, submersas na solidez férrea da sua função, prodigalizavam à casa e aos seus habitantes. Desempregados, esses anjos benevolentes deixaram-se tomar pela cólera e aspiram que a velha ordem seja trazida de volta e com ela as doces fadas com que pessoas desavisadas sonham noite dentro.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Meditação Breve (189) A imaginação

Raphael Colin, At the Edge of the Sea, 1892

A imaginação é como o fluxo das águas do mar. Vem e vai, comandada por um ritmo secreto, cuja lei inexorável ninguém conhece. Onde apenas existe água e areia, ela descobre corpos tomados pela beleza, transbordantes de ritmo, incendiados pelo desejo de quem os fantasia, prontos para se deixarem possuir pela arte do seu criador.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Meditação Breve (188) O tempo

Elliott Erwitt, Paris, 1989

Pode-se imaginar que a causa final que levou à invenção da fotografia tenha sido a de congelar para a eternidade um momento, do qual se expulsa o movimento e com ele o tempo. Depois, há fotografias em que o movimento se liberta e o tempo retoma o seu velho poder. O vento não deixará de fustigar os guarda-chuvas, o homem não parará o seu movimento em direcção aos lábios da mulher, o bailarino continuará a dar os passos que o mantêm entre o céu e a terra, como se a eternidade não fosse mais do que um tempo sem fim.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Meditação Breve (187) A Roda

James Valentine, The Wheel, ca 1900

Todas as coisas têm o poder de se tornarem símbolos e desse modo indicarem outras coisas. O que haverá  de mais prosaico do que uma roda de diversão? No entanto, ela facilmente se deixa ler como uma roda da fortuna. Os que nela vão fazem a experiência da mutação contínua da sua própria posição no mundo. Nada na terra é eterno. O que sobe descerá, o que desce elevar-se-á.

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Meditação Breve (186) Milagre

Artur Pastor, Série “Outras Geometrias”. Monsaraz, décadas de 40-60 (ver aqui)
Da alvura das paredes, da cintilação da cal, do peso dos anos, de tudo isso, como de um fruto longamente amadurecido, brota um murmúrio, logo transformado em canção, para se erguer ao céu como um hino de louvor àqueles lugares onde o tempo se dobra para, fruto de um milagre nascido da vontade de um Deus abscôndito, correr mais lento e apaziguado.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Meditação Breve (185) Troca de palavras

John H. Gear, Aus Chioggia, 1908

Uma conversa não é apenas uma troca de palavras. É também um jogo de expectativas. Haverá uma revelação? Chegar-se-á a acordo? O interlocutor continuará a ser idêntico ao que tem sido até aqui? Sem estas expectativas, a troca de palavras seria inútil. Elas são o horizonte de toda a comunicação. Dão-lhe sentido e, naturalmente, distorcem-na, pois não há expectativas sem mal-entendidos, que a troca de palavras poderá ou não sanar.

domingo, 28 de agosto de 2022

Meditação Breve (184) Entrelaçar

Ruth Matilda Anderson, Máxima Hernández García, 1928
Entrelaçamos os dias para compor o calendário com que construímos a passagem do tempo. É um modo de compor paisagens, não aquelas que se encontram no espaço e ferem os sentidos para que eles as não esqueçam, mas as que só o espírito, preso à cintilação do invisível, pode compor para dar um sentido ao que não tem sentido.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Meditação Breve (183) Náufragos

Francis James Mortimer, Wreck of sailing ship Arden Craig, 1911
De uma maneira ou de outra, todos somos náufragos. O frágil navio com que navegamos as águas agitadas do oceano da existência acaba sempre por ceder a uma inesperada tempestade. Resta-nos ter à mão um bote e talvez cheguemos a terra firme.

domingo, 3 de julho de 2022

Meditação Breve (182) A declinação do espírito

Irving Penn, Three Asaro Mud Men, New Guinea, 1970
São tantas as formas em que a humanidade se declina que, por vezes, podemos pensar que a cada momento dela podem, como rebentos de uma planta vigorosa, estar a brotar novas e novas espécies. E, no entanto, para além de algumas distinções de aparência sem relevo, a unidade física dos seres humanos permanece constante. O que é radicalmente diferente é o espírito que os habita e às suas comunidades, como se esse espírito tivesse muitos rostos e os fosse mudando em conformidade com uma lei que a nossa razão desconhece.