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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O reconhecimento

Maurice Denis - Os peregrinos de Emaús (1895)

O episódio dos discípulos de Emaús (Lucas 24:13-34) onde se narra a aparição de Cristo ressuscitado a dois discípulos é marcado por dois momentos ligados ao reconhecimento. O primeiro é o da ausência do reconhecimento, a incapacidade demonstrada em atentar na identidade do outro que segue caminho com eles. O segundo momento é o do reconhecimento dessa identidade. Esse reconhecimento, porém, não se dá numa situação trivial, como a conversação doutrinal da viagem, a qual se mostrou incapaz de gerar o reconhecimento, mas no momento em que é mobilizado um símbolo, a fracção e bênção do pão. 

É o símbolo que desencadeia o processo de reconhecimento, o que torna manifesto que todo o reconhecimento do outro, de qualquer outro, implica a suspensão da trivialidade e a mobilização de uma dimensão simbólica onde esse outro ganha sentido e valor. O paradoxal no texto é que o reconhecimento conduziu, de imediato, ao desaparecimento de Cristo. Reconhecer o outro não significa, então, prendê-lo numa esfera significativa, circunscrevê-lo em conceitos. Isso significaria reduzi-lo à trivialidade que se liga à significação usada na vida quotidiana. O outro, seja o Cristo ou o homem comum, pertence a uma dimensão simbólica e só esta permite conjugar o reconhecimento desse outro com o mistério, nunca desvendável, que o constitui.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Em tremor

Jesús María Cormán - 6.6 Richter scale (2001)

Não, não é a terra que treme, mas o viandante que, na sua viagem, sente, em temor e tremor, a presença inefável do totalmente Outro. Não é o fim do mundo, é apenas o começo, esse princípio que não tem fim, esse fim que não princípio. Não se trata da destruição mas do começo da revelação.

sábado, 18 de outubro de 2014

Derrubar o muro

JCM - Distopia (The Wall) (2007)

O pior na viagem são os muros. Não são apenas divisórias, linhas de fronteira e de fractura de territórios. São formas de oclusão, de fechamento, de incapacidade de perceber os outros. E quem não é capaz de ouvir os outros será capaz de ouvir esse totalmente Outro que fala para lá de todos os muros? Será capaz de discernir o seu chamamento? A viagem é também um derrubar de muros, uma purificação do espaço, um refazer de geografias. Para quê? Para que possamos escutar o outro e na voz desse outro escutar a voz que chama dentro de mim.

domingo, 29 de junho de 2014

Enfrentar-se a si mesmo

Leonard Freed - Naples, Italy (1958)

Enfrentar-se a si mesmo numa rua vazia, eis o maior desafio colocado ao homem. Quantas vezes o homem pensa que o seu adversário ou o seu inimigo residem no outro? Essa é a solução mais óbvia e, ao mesmo tempo, a mais equívoca e deslocada da realidade. O outro que surge nesse lugar adversarial não passa de uma projecção de si mesmo. O outro é o eu que se recusa a reconhecer-se na sua natureza. Qualquer conflito é ainda um conflito consigo mesmo, um conflito no vazio de si mesmo.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O outro lado

Henri Fox Talbot - The Open Door (1844)

Nunca dedicamos a atenção devida à forma metafísica como estruturamos a vida quotidiana. Em todo o lado, o homem recria as transcendências, semeando os espaços com linhas divisórias que cindem a continuidade espacial em lugares diferenciados, o aqui e o além, o dentro e o fora, o imanente e o transcendente. Uma porta não é uma mera porta, mas o símbolo de uma secreta transposição que conduz o homem da imanência à transcendência. Passar a porta e ir ao outro lado é, também, ir a um lado outro, transcender-se, sair de si em direcção ao Outro, ao totalmente Outro.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Cultivar a boa consciência

Robert Doisneau - Hell (1952)

Os outros, segundo a palavra de Sartre, por nos frustrarem a realização do desejo, são o inferno. Ateiam o desejo e pela negação com que o acolhem mantêm viva a dinâmica desejante, sem possibilidade desta se apaziguar no acto da consumação. Mas será que eu sou assim tão inocente no meu desejo? Será que cada um, ao desejar, é vítima duma conspiração vinda de fora? Ora negar a inocência do desejo será atribuir-lhe, na origem, uma decisão, o que contraria a ideia - ideia fundada em sólido senso comum - de que somos irresponsáveis pelo que desejamos. E traria ainda uma outra e não desejada implicação: o inferno não são os outros, somos nós, ou está em nós. O homem sempre gostou de cultivar a boa consciência.

domingo, 4 de maio de 2014

Os limites da lei moral

Wolf Suschitzky - Street Cleaner, Westminster, London (1937)

Então os seus olhos abriram-se e reconheceram-no, mas Ele desapareceu da sua presença. (Lucas, 24:31)

Pensamos muitas vezes que o reconhecimento do outro é o cerne da nossa conduta na comunidade, seja esta qual for. Esse reconhecimento é o centro da moral social e da vida ética. O estranho episódio relatado por Lucas mostra-nos todavia os limites do reconhecimento e da vida moral. Os discípulos de Emaús reconheceram-no, mas nesse reconhecimento perderam-no, como se a lei moral fosse ainda um obstáculo ao que o Cristo vinha trazer aos homens.

quinta-feira, 20 de março de 2014

O lugar da solidão

Robert Doisneau - Rue des Ursins - Paris 4e (1945)

Somos demasiado sensíveis à definição aristotélica do homem como animal social. Não percebemos, todavia, que a verdade dessa definição oculta uma outra realidade humana, a sua solidão. Nesta não devemos ver apenas o abandono, mas a forma como o homem pode realizar tudo o que lhe é essencial. Só na solidão o homem é, na verdade, capaz de escutar a voz do outro. A própria sociabilidade humana está escorada na solidão do homem.