sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Impressões 108. Uma revelação

Andre de Dienes (Dienes Andor), Paris, 1936
O súbito matrimónio entre o fulgor da luz e a sombra da névoa abre aos olhos o segredo que, dia após dia, o tempo oculta. Tudo o que se vê não é mais do que uma impressão que os olhos desabituados do espanto das primeiras coisas tomam como realidade substancial, de contornos precisos e existência sólida. Passeamos no mundo caminhando de impressão em impressão, ignorantes de que nós próprios não somos mais que meras impressões inscritas nas areias movediças de uma praia de águas alteradas.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

A memória do ar (5)

Ernst Haas, Salzburg, Austria, 1945
A névoa é o ar condensado sobre os tectos da cidade. Assim, recolhe numa memória as pedras que se erguem aos céus e as pessoas que passam indiferentes, como se o ar não existisse e nele não pulsasse a possibilidade da vida, mesmo quando se desloca num torvelinho de violência, preso a uma vontade incompreensível. Então, é um pedra que bate e abre um caminho que ninguém tinha esboçado na fogueira da imaginação.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A Luz de Inverno 2

William Congdon, Winter, 1950

 A chuva inunda as ruas

com o seu véu de tristeza

presa na escarpa das horas.

 

Passou o Natal ao ritmo

das coisas vindas de longe

no turvo trenó do tempo.

 

Um silêncio sobre a terra,

a beleza do que passa

no veleiro do crepúsculo.

 

Dezembro de 2022

sábado, 24 de dezembro de 2022

Geometrias de fogo (4)

Thomas Cole, Expulsión. Luna y luz de fuego, 1828

Poderia ser uma canção lunar ou o rasto de um cometa perdido. Poderia ser o fogo que arde em todo o amor ou a explosão que trouxe do quase nada este universo. Poderia ser a sombra incandescente do silêncio ou o halo de um corpo transido de frio. Era, porém, outra coisa, transbordante e sem nome, pois tudo o que o fogo unge está para além de toda medida e de qualquer nomeação.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Câmara discreta (19)

Eugene Robert Richee, Marlene Dietrich, 1931

Os sonhos tinham-se esgotado, restava uma memória antiga, o cilício do passado e a cintilação abscôndita do olhar, onde o ódio e a raiva dançavam no vertiginoso ritmo da sagração da Primavera. O tumulto do coração e a revolta do corpo eram como um poema longamente decantado de boca para boca. Quando o vento suspendeu a sua viagem sem fim, uma sombra ofereceu-se à benevolência da câmara, para que o arquipélago da dor encontrasse um porto para ancorar.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

A memória do ar (4)

Clarence Laughlin, Imagination, 1944

O ar é uma musa discreta, inspira sem se deixar ver, arrasta quem o ignora, eleva a quem com ele sabe dançar. Por vezes, deixa-se arrastar na violência da tempestade. Outras, é o zéfiro que cobre com brandura discreta os corpos tocados pelo aguilhão do fogo.

sábado, 17 de dezembro de 2022

A Luz de Inverno 1

Camille Pissarro, Morning, Sunshine Effect Winter, 1895

Esperamos o Inverno

com a sua luz de cristal

e uma sombra de neve.


Esperamos os dias frios

recolhidos na caverna 

onde esquecidos sonhamos.


Esperamos a leveza

dos pássaros que partiram

para o silêncio do sul.


Dezembro de 2022

 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

O sal do silêncio (93)

R. Köhnen, Alte Mühle, 1908
O silêncio que devora os anos traz nele um vocabulário escrito com o alfabeto da memória. São palavras sem vocação para serem proferidas, sem poder de serem inscritas na folha rasa do papel, palavras que ressoam no bater do coração, na circulação do sangue, no sal que tolhe o movimento da língua e abre o espírito para a ciência da eternidade.
 

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Geometrias de fogo (3)

Maria Helena Vieira da Silva, A biblioteca em fogo, 1974

Cada livro é um incêndio e uma biblioteca não é mais do que uma estrela à volta da qual orbitam, na cegueira das suas próprias trevas, esses estranhos planetas que são os leitores. Cansados de escuridão, buscam a luz. Exaustos de frio, procuram o calor. Recebem um pouco de cada um. Se tiverem sorte ser-lhes-á oferecido o dom da inquietação.

sábado, 10 de dezembro de 2022

A sombra da água (4)

René Burri, Former Summer Palace. Dead lotus flowers on the Kunming Lake. Beijing, China, 1964

As águas do esquecimento dormem sob a vigilância dos céus. Cobrem-nas a folhagem da névoa, a sombra suave do dia que passa. Ali pulsa a morte destilada pelas flores de lótus que se precipitam na geometria a que o tempo as reduziu. Um segredo cresce, refracta-se nas pétalas desaparecidas, abre-se para o silêncio que a tudo resguarda do tumulto da vida.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

O Ritmo do Outono 12

George Iness, Spirit of Autumn, 1891

O tempo a tudo destrói

e o teu ritmo cessará

 

na minha dança outonal,

no instante em que o solstício

abre os dias à luz de Inverno.

 

Pobre e pálido coração

preso no cintilar da noite.

 

Novembro de 2022

 

domingo, 4 de dezembro de 2022

A memória do ar (3)

Artur Pastor, Exposição virtual Geometrias do Algarve, décadas de 60-70 (ver aqui)
A brancura dos sonhos fende paisagens de azul, para que o ar, com a sua memória inquieta, deixe crescer, sobre a terra, o espanto que os olhos dos homens hão-de descobrir, sempre que se sentirem perdidos entre a imensidão do oceano e o infinito dos céus.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Pintura e haikus (27)

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1995

A matéria líquida
faz-se pedra, faz-se cor,
faz-se ave e voo.