quinta-feira, 31 de março de 2022

O sal do silêncio (77)

Edward Hartwig, Blossoming apple tree, from the Spring series

Na Primavera, o silêncio é a casa onde floresce a velha macieira. Entra por ele, como se fora um palácio, e espera que a memória da seiva, pontuada pelo sal dos anos, se transmute em flor, anunciação da dádiva, presença ausente do fruto. 

terça-feira, 29 de março de 2022

Haikai urbano (70)

William Henry Fox Talbot, Old Waterloo Bridge, London, ca. 1846
Murmúrios das águas
ao passar p'la velha ponte.
Um rio em silêncio.

domingo, 27 de março de 2022

Câmara discreta (7)

Frank Eugene Smith,  Slumbering maidens, c1900

Discreta, a câmara foca as raparigas, apanha-as adormecidas, exaustas, cansadas de dançar, ou de um jogo de sociedade, ou das inúmeras confidências que têm sempre de partilhar entre si. Terão falado das expectativas, do alvoroço do amor, o que a vida lhes há-de trazer. Agora dormem, amparadas umas nas outras. O fotógrafo esconde-lhes os sonhos, os delicados segredos que, ao dormir, atormentam a consciência, imagens, imprecisas e insidiosas, vindas do fundo dos corpos, do princípio dos tempos.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Biografias 26. A sonhadora

Imogen Cunningham, The Dream, 1910
Vivia na delicada fronteira que separa o dia da noite, num território poroso, habitado pelas mais extraordinárias espécies animais, abrigo de delicadas plantas, de floração lenta e prolongada, nunca entrevistas noutros lugares. Ali firmara a sua casa. Havia quem afirmasse que construíra sobre areias movediças, mas ela ignorava opiniões alheias. O sonho era a sua vida. Não o sonho  dos visionários que pretendem enxertar os seus devaneios no mundo, mas o sonho puro, que é vivido apenas durante o sono. Tudo ali era mais real. Com o passar dos anos, a sonhadora começou a desprezar os estados de vigília, até que os aboliu. A sua vida era agora toda ela um sonho.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Sete Cartas - 2 Ao anjo de Esmirna

Max Ernst, El ángel doméstic, 1937

Ao anjo que sobrevoa os céus de Esmirna,

em suas asas, de frágeis filamentos,

cresce uma cobertura de ambrósia,

o fruto amadurecido pelo sal de Outono.


Cintila-te no vigor da voz o poder da palavra

daquele que fala no murmúrio do silêncio

e tece com mãos de ráfia dedos de ametista

a seda esquiva do arquipélago do tempo.

 

No entrelaçado fio das horas desenhou

uma serpente suspensa sobre as ínsulas

perdidas na caverna do esquecimento,

nimbadas pela pétrea palidez do passado.

 

Fala por aquele que permanece

na inquietação das chuvas de Dezembro

sentado no vácuo da terra crua

preso ao bulício dos homens magoados

 

bêbados pelo álcool do crepúsculo,

pela cal a arder nas paredes nuas

da casa onde sentados escutam as aves

nas sílabas sopradas pela sirene do vento.

 

Conheço de vós as obras, as mãos queimadas

pelo coral roubado à inocência do mundo,

o coração desatinado pelo dédalo do desejo,

os sonhos regados pelo vinho da vitória.

 

Que um esgar de dor vos prenda o rosto,

o roube à erva e ao verde da Primavera.

Que a cinza das palavras desça sobre as cabeças

para vos arrebatar do vendaval da vergonha.

 

O pássaro côncavo voa nos céus de Esmirna,

esconde no feltro das asas o cristal da morte,

o casulo onde a larva da escuridão

se abre na crisálida da noite, a ninfa por chegar.


1993

segunda-feira, 21 de março de 2022

Impressões 94. Sobreposições e entrelaçamentos

Frederick Sommer, Venus, Jupiter and Mars, 1949
A realidade - ou aquilo a que damos esse nome - estará longe de ser unívoca. Será composta por múltiplas camadas que ora se sobrepõem, ora se entrelaçam, num jogo que provoca nos homens as mais discordantes impressões. Por vezes, pergunta-se o que será real. Talvez a resposta deva ser que tudo é real, incluindo ilusões, fantasias e quimeras. São reais as sereias e os antigos deuses. Vivem nas nossas impressões, as que dão conta das múltiplas camadas sobrepostas e as que manifestam os infinitos entrelaçamentos.

sábado, 19 de março de 2022

Câmara discreta (6)

Guido Rey, A Quiet Corner, c. 1900

Olhamos e compreendemos de imediato que também o tempo se pode suspender, afastar de si a ânsia que o faz correr para se despenhar no fundo abismo do futuro. A contemplação do gesto com que as mãos bordam a brancura do pano, os movimentos do corpo que acompanham o cumprimento da tarefa, o olhar cuidadoso que se retira do mundo para a peça que se tem nas mãos, tudo isso está já fora do barco da temporalidade, ou, para ser mais preciso, ainda não caiu da eternidade no rumorejo do tempo, que, por longos instantes, se encontrará suspenso.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Micronarrativa (59) Dança

Gjon Mili, Stroboscopic image of ballerina Nora Kaye performing a “pas de bourree”, 1947

Sempre sentira dificuldade em estar de acordo consigo. Sobre qualquer assunto, enquanto os outros tenham uma opinião firme, ela tinha muitas e nenhuma delas era marcada pela força da convicção. Essa contínua e inexplicável guerra que a atravessa poderia tê-la exaurido e conduzido a uma morte prematura. Salvou-a a dança. Enquanto girava sobre si, os seus múltiplos corpos desligavam-se e reconciliavam-se com as suas próprias almas. Quando parava, todos se uniam num único corpo e numa única alma. Então, ela sabia quem era.

terça-feira, 15 de março de 2022

O sal do silêncio (76)

Otto Wunderlich, Casas Asturianas, 1920s

Há casas, velhas casas, salgadas pelo sal do tempo, pelo deslizar contínuo dos dias, dos trabalhos trazidos pelo passar das estações, pelo dedilhar do rosário dos anos. Nasceram entre a exuberância da alegria e a sonoridade da festa. Depois, os telhados escureceram, as paredes perderam a cal, e os homens entregaram-se ao desvario dos sonhos, até que o silêncio a tudo devorou.

domingo, 13 de março de 2022

Sete Cartas - 1 Ao anjo de Éfeso

Salvador Dali, Angel, 1950

Palavras dirigidas ao anjo dos efésios,

ao que vela dia noite sobre os ombros dos homens

e na sombra da árvore inscreve um incêndio:

fogo de palha, combustão de luz,

a labareda tecida com o feroz fio do esquecimento.

 

Anjo de asas recurvas e braço erguido

refrigério das praias banhadas pelo mar da memória.

 

Eu sou Aquele que em sua dextra ergue as sete estrelas

e nos céus componho uma constelação.

De noite, os homens olham-na

e na geometria do olhar suspeitam

a linha do horizonte, a luz estelar da minha face.

 

Escutam-me os passos perdidos

entre o azul da Terra e a alucinação do âmbar.

 

Olho do fundo do coração e vejo o mundo crescer,

a formiga lavra a poeira das tardes, as noites azotadas,

os dias feridos pelos tambores da morte.

Trabalhaste a dor insinuada na pele,

cresceste em cidades de mármore e escuridão.

 

Como um insecto poisado na carnação do fruto

abraçaste o nome tão breve que trazes em ti.

 

Dentro do peito abriu-se um muro, uma paisagem

toldada pelo nevoeiro. Embaciado, entregaste o fulgor 

à transfiguração da tarde e nela construíste casa de colmo,

morada sombria de silêncio na rua da verdade,

o castelo de muralhas incendiadas pelo lume da guerra.

 

Envelheces e a cor dos dias de festa

perde-se na areia desmaiada sob o sol da solidão.

               

Abre o peito à minúcia do gesto,

deixa correr como um rio o orvalho e o sangue.

Ao arderem, as ruas entregam a úlcera das casas

ao martelo de mármore, à carne salgada,

às asas recurvas do anjo dos efésios.

 

Um sulco de seiva na penumbra do pólen,

a abelha deliba o fogo no cálice da vida.


1993


sexta-feira, 11 de março de 2022

Haikai urbano (69)

Greg Girard, Yokosuka, Japan, 1976
 Eis a noite aberta
pela espada luminosa
da escuridão.

quarta-feira, 9 de março de 2022

O Espírito da Terra (8)

Francis Frith, Twickenham Thames, 1890s

Um rio, as margens tomadas pelo verde das ervas, os campos, o escasso casario. Ali a vida decorria sem pressa, ao ritmo das estações e dos trabalhos agrícolas. Havia pássaros e, por vezes, os campos tornavam-se prados onde os animais se demoravam gratos pelo alimento transbordante, ignorantes do destino. Nas tardes de calor, sob a sombra das árvores, havia homens segurando canas de pesca, indiferentes aos peixes, ao casario, concentrados num sonho feito de aromas de terra e água, de flores na Primavera.

segunda-feira, 7 de março de 2022

Impressões 93. Noite

Joan Fontcuberta, La Nuit, 1972
A noite cobre de escuridão a paisagem fremente da floresta. Traz-lhe o mistério, a inquietação, a comovida surpresa de uma mulher perdida no silêncio, salva pela névoa do luar.

sábado, 5 de março de 2022

Câmara discreta (5)

Roberto Rive, House of Marco Olconio, Pompeii 1860s

Observamos um passado do passado. As ruínas são uma recomposição daquilo que não pode ser recomposto. Olhamo-las e sentimos de imediato a verdade ausente daquilo que se vê. O que está presente é uma encenação para que os olhos humanos ou as câmaras fotográficas, um seu prolongamento, possam fornecer um sucedâneo material de vida para a imaginação se entregar à doce rêverie do entardecer.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Meditação Breve (176) Contra a parede

Dorothea Lange, Against the Wall, San Francisco, 1934
Estar contra a parede não é apenas sentir-se encurralado, não haver lugar para onde fugir, ter chegado ao fim da linha, sem que a expectativa de um futuro abra o horizonte. É não ter direito à melancolia do presente, nem à nostalgia do passado.

terça-feira, 1 de março de 2022

O sal do silêncio (75)

Roberto Rive, Woman found in Pompei in 1875

As cinzas raptaram a mulher ao rumor da vida, preservaram-lhe o corpo para memória futura, entregando-o ao reino da pedra, dando-lhe a voz do silêncio e o sal do esquecimento.