William Turner - Light and Color - The Morning After the Deluge (1843)
Naquele tempo, disse Jesus aos
judeus: «Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a
luz da vida.» Disseram-lhe, então, os fariseus: «Tu dás testemunho a favor de
ti mesmo: o teu testemunho não é válido.» Jesus respondeu-lhes: «Ainda que Eu
dê testemunho a favor de mim próprio, o meu testemunho é válido, porque sei
donde vim e para onde vou. Vós é que não sabeis donde venho nem para onde vou. Vós
julgais segundo critérios humanos; Eu não julgo ninguém. Mas, mesmo que Eu
julgue, o meu julgamento é verdadeiro, porque não estou só, mas Eu e o Pai que
me enviou. Na vossa Lei está escrito que o testemunho de duas pessoas é válido;
sou Eu a dar testemunho a favor de mim, e também dá testemunho a meu favor o
Pai que me enviou.» Perguntaram-lhe, então: «Onde está o teu Pai?» Jesus
respondeu: «Não me conheceis a mim, nem ao meu Pai. Se me conhecêsseis,
conheceríeis também o meu Pai.» Jesus pronunciou estas palavras junto das
caixas das ofertas, quando estava a ensinar no templo. E ninguém o prendeu,
porque ainda não tinha chegado a sua hora. (João 8,12-20) [Comentário de Agostinho de Hipona aqui]
Eu não julgo ninguém. Esta
espantosa frase surge em oposição ao juízo dos homens. Estes julgam segundo
critérios humanos. O que significa isso? Significa que esses critérios são
limitados, finitos e falíveis. Em oposição a estes critérios, abrem-se duas perspectivas
judicativas que devem ser tomadas em consideração. Por um lado, a existência de
critérios não humanos, aqueles segundo os quais Cristo e o Pai julgam. Esses
critérios aparentemente não surgem no texto. Há contudo fortes indícios para
esses critérios. Por outro, a ideia de que Cristo não é um juiz. Estamos
perante um aporia que deixa o pensamento perplexo e desafia o homem a
meditá-la.
O juízo divino é um não juízo. O julgamento é ainda uma categoria
humana, demasiado humana. Talvez a chave se encontre na sentença que, de certa
maneira, é complemento da sentença Eu não
julgo ninguém. Este Eu não julgo
ninguém deve ser lido conjuntamente com as primeiras palavras de Cristo Eu sou a luz do mundo. A luz ilumina, dá
a ver, revela. E essa revelação tem o efeito mostrar o que cada um é, de discernir
aquilo que as trevas ocultam. E aquilo que é um não juízo, o que é uma pura
Luz, torna-se um princípio de discriminação e de separação segundo o coração de
cada um, ou como o texto deixa entender entre aqueles que O seguem e estão na
Luz e os que não O seguem e estão nas trevas, no domínio da obscuridade e da
errância.
O conceito de errância, muitas vezes usado nestes comentários, recebe
uma nova precisão. Significa não conhecer o Cristo e, ao desconhecê-lo,
desconhecer a Deus, o totalmente Outro, pois o conhecimento do divino, para o
homem, reside no conhecimento de Cristo. Este é a face de Deus que o homem
consegue suportar, é a luz que o mundo consegue tolerar, mas é também o
totalmente Outro que reside no íntimo de cada um, sendo ao mesmo tempo aquilo
que é real e efectivo, apesar da sua radical alteridade, em cada ser humano.
Andar nas trevas é quebrar a ligação com esse Outro que é nós mesmos, é entregar-se à sentença do não julgamento.