A suposição de ser alguma coisa, essa herança construída pela coligação entre as gramáticas indo-europeias e a filosofia grega - onde aquelas se pensaram e tomaram consciência de si -, é a imagem de uma infância nunca abandonada. Não daquela infância onde tudo é inédito e uma ânsia conduz à descoberta do mundo, mas da outra infância, concomitante dessa, aquela em que se luta desesperadamente para se convencer a si mesmo que se é alguma coisa, que se tem um lugar no mundo e uma voz que deve ser ouvida. Aquilo, porém, que poucos confessam é que esse convencimento é precário e que, no fundo de nós, uma dúvida persistente lança uma sombra sobre o que somos, o lugar que ocupamos, a voz que fazemos ouvir. Se deitarmos borda fora tudo isso, será que perdemos alguma coisa? Posso perder tudo o que não sou. Isso bastará? Não. É preciso ir mais longe. Não basta perder aquilo que não se é. É preciso perder aquilo que se é, mesmo que não saibamos o que somos. Aí haverá, então, a esperança de encontrar a voz do coração. Não a do nosso, porque o coração que fala não tem proprietário. É só uma voz, vinda sabe-se lá de onde, que clama no deserto.
Creio que é precisamente essa voz que clama no deserto que se deveria tentar escutar com mais atenção, pois é a única que nos diz quem verdadeiramente somos. O resto é ruído de fundo.
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