domingo, 30 de junho de 2013

O olhar retrospectivo

René Magritte - El maestro de escuela (1954)

Disse-lhe ainda outro: «Eu vou seguir-te, Senhor, mas primeiro permite que me despeça da minha família.» Jesus respondeu-lhe: «Quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado, não está apto para o Reino de Deus.» (Lucas 9:61-62)

Há dias, no contexto do Antigo Testamento e a propósito da mulher de Lot, abordou-se aqui a questão do olhar retrospectivo. Com estes versículos do evangelho de Lucas, mas também com os que os antecedem, retorna-se à punição do olhar para trás. A questão é introduzida pelo desejo de se despedir da família ou, noutras traduções, dos que que estão em sua casa. Esta indicação é preciosa, pois permite alargar o grau de compreensão  da resposta dada. Naquele que quer despedir-se da família ainda permanece um desejo do que é familiar, daquilo que pertence ao reino do habitual, à forma convencional de ser, de estar e de olhar o mundo. Não se trata de uma crítica à família, mas de tornar claro que a via proposta (o Reino de Deus) não está no hábito, não está naquilo que se tornou  familiar para a consciência. Ela não é uma convenção mas uma efectiva aventura.

Olhar para trás é o sinal de pertença a este mundo, que a sua imagem ainda move o desejo e o coração, que ainda não se está perante uma consciência pura e uma vontade liberta das seduções que o familiar traz consigo. O uso da metafórica agrícola - deitar a mão ao arado - é de uma grande precisão. Olhar para trás quando o arado sulca a terra implica o enviesamento, o sulco deixa de ser um recto caminho para passar a ser o fruto da distracção e do acaso. Quem olha para trás não vê aquilo que à frente chama por si. Naquele que diz que quer seguir o Senhor e, ao mesmo tempo, deseja olhar para trás, nesse, o coração ainda está dividido entre a segurança do familiar e a incerteza e a aventura de penetrar no não familiar, no inabitual. Todo o olhar retrospectivo é uma confissão de uma vontade que ainda não abriu mão daquilo que a seduz, que ainda não está pronta para o caminho.

sábado, 29 de junho de 2013

Preconceitos modernos

Albano Vitturi - Gli eremiti di Faida (1934)

O triunfo da modernidade sobre o modo de vida medieval manifestou-se também na substituição dos velhos preconceitos por novos. Assim como os medievais não compreendiam os seus preconceitos como preconceitos, também os modernos são incapazes de reconhecer, enquanto tal, os seus. Dois preconceitos tomaram conta da vida dos homens e quase destruíram a herança espiritual do Ocidente. 

O primeiro preconceito diz respeito ao desprezo que os modernos patenteiam à vida contemplativa. A modernidade é o triunfo do negócio e a imposição a todos os homens de uma vida activa, de onde a contemplação foi pura e simplesmente banida. Mesmo a vida académica, hipoteticamente herdeira da tradição filosófica grega, uma tradição contemplativa, se tornou em dura actividade, em negócio puro e simples. 

O preconceito contra a vida contemplativa acentua-se quando se trata da opção pela solidão. Aquele que se separa dos homens para se confrontar consigo e com o Absoluto tornou-se de tal maneira estranho, que os modernos, presos à acção e ao medo de estar sós, destruíram o desejo e a possibilidade de erguer eremitérios, onde os homens, libertos dos negócios do mundo, possam entregar-se à vida do espírito. Nada mais repelente do que os antigos conventos de contemplativos transformados em edifícios para turistas.

Não se compreende, porém, que o cerne da nossa tradição espiritual reside naquilo que a contemplação permitiu criar, naquilo que, em solidão, homens e mulheres puderam descobrir. A crise do Ocidente não é económica ou política, mas uma crise espiritual, uma crise que nasce do preconceito contra a contemplação e a vida de solidão, que todos os homens deveriam, em certos momentos da sua vida, aceder, confrontando-se consigo, com o seu destino e com aquilo que o Absoluto lhes propõe como caminho.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Poemas do Viandante (423)

Benvenuto Benvenuti - Frate foco (1925)

423. Descrevo a sintaxe do fogo sobre a terra

Descrevo a sintaxe do fogo sobre a terra
e espero a hora em que nasça
uma gramática subtil feita de faúlhas,
os frutos breves da amendoeira,
a velha servidão sob o peso da terra.

Atiro longe o dardo do amor
e ele perde-se enovelado nos ares,
rodopia sob a inclemência solar
e traceja nuvens de cinza no horizonte de água.

A minha casa é feita de pedra e colmo,
e o fogo arde diante da porta.
Sentado, olho as labaredas
e conto os anos inscritos nas velhas árvores,
os troncos fendidos, ramos decepados.

Os fotões iluminam-me a memória
e com as mãos livres desenho o delicado rosto,
soberbo, suave, quase sonoro,
com que um dia te prendeste nos meus dedos.

E tudo em mim canta no prodígio dessa imagem,
a velha maçã que perdeu Adão,
a guerra de Tróia e o cavalo desejado,
e todos aqueles que enlouqueceram junto ao oceano,
presos no fascínio das ondas ao rebentar.

Da pobre janela, oiço o galope do futuro,
chega com as chuvas de Novembro,
coberto de feridas e uma sombra no olhar.
Abre-se numa fortuita constelação de ervas pálidas

e traça um cavalo lívido de fogo
nas paredes exaustas e negras da casa:
relincha, empina-se e parte campo fora,
sem uma morfologia que o classifique
sem um fogo que lhe incendeie de terra o coração.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Da autoridade do autor

Albert Gleizes - Autoridade espiritual e poder temporal (1939-40)

Quando Jesus acabou de falar, a multidão ficou vivamente impressionada com os seus ensinamentos, porque Ele ensinava-os como quem possui autoridade e não como os doutores da Lei. (Mateus, 7:28-29)

Surge muitas vezes, na opinião publicada, o delicado problema da autoridade dos professores. Por norma, as respostas dadas são insípidas e falham o alvo. De onde provém a autoridade daquele que ensina, seja ou não professor? Os  versículos citados de Mateus são uma porta por onde podemos penetrar no mistério da autoridade daquele que ensina. O que impressiona a multidão no ensino de Cristo é a diferença que apresenta relativamente aos doutores da lei, aos escribas. No escriba encontramos um certo tipo de autoridade. Eles têm a autoridade de quem conhece a lei, porque a interpreta, e os livros sagrados. Numa sociedade teocrática, têm ainda uma autoridade legitimada pelo poder político (mesmo que este esteja, como era o caso, submetido aos representantes de Roma). No entanto, nem a autoridade proveniente do poder nem a fundada na erudição constituem uma verdadeira autoridade (sobre isto ver o post de ontem).

Se não é nos livros nem no poder, onde residirá a autoridade que sustenta o ensino de Cristo? A palavra grega usada e traduzida por autoridade (ἐξουσίαν) tem um amplo campo semântico. Ela conjuga a energia, a capacidade, a competência e a liberdade do sujeito que possui a autoridade e, ao mesmo tempo, o direito, o poder, o domínio e a força que objectivamente lhe é reconhecida (ver aqui). Em síntese, pode-se dizer que esta autoridade reside na liberdade do autor, na liberdade da autoria. Cristo era o autor da ordem do mundo que ele próprio anunciava e, por isso, as suas palavras tinham autoridade que, ao serem escutadas, logo era reconhecida. Elas, as Suas palavras, não vinham de um exercício hermenêutico sancionado pelos poderes político-religiosos e académicos, mas da própria essência daquele que fala. A fragilidade dos doutores la lei reside na distância que vai entre aqueles que interpretam racionalmente a lei e aqueles que, ao vivê-la e ao torná-la vida, se tornam os seus autores. A verdadeira e única autoridade é aquela que nasce da autoria.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Do uso das bibliotecas

Helena Vieira da Silva - Biblioteca (1953)

Numa história onde, por várias vezes, grandes bibliotecas foram queimadas, num país onde, devido à escassez, as bibliotecas foram elevadas à condição de templo sagrado (tão sagrado que muito nem lá entram), a biblioteca tornou-se uma metonímia da sabedoria. Aquele é uma biblioteca ambulante. Morreu uma verdadeira biblioteca. Estas expressões acabam por estabelecer uma ligação estreita entre a leitura de livros e a sabedoria. Mas ler livros tornar-nos-á sábios? Não houve, na história da humanidade, grandes leitores cujo comportamento foi insensato ou, mesmo, absolutamente perverso?

Não é a leitura de livros que nos torna sábios, mas uma certa disposição para a sabedoria que nos leva a encontrar nos livros um alimento dessa mesma sabedoria. Dito de outra maneira, a sabedoria não é a consequência de uma causa chamada leitura. Pelo contrário, a leitura é a consequência de uma certa disposição para a sabedoria. Só assim a leitura faz parte da viagem espiritual do homem. Caso contrário, mesmo que não tenha efeitos perversos em certas personalidades, ela não tem mais efeitos intelectuais do que o consumo de chocolates tem ao nível do corpo.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Haikai do Viandante (149)

Nikolay Dubovskoy - Calm (1890)

Ó pura quietude,
cais silenciosa e fria
sobre a vida rude.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

A vida e a morte

Ramón Pérez Carrió - Descida às entranhas da luz

Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1: 4-5)

Somos fascinados pela oposição entre luz e trevas. Um hábito ancestral leva-nos a ordenar o mundo em pares de opostos. Esse hábito é muito anterior ao texto de João. Este vai explorá-lo, estabelecendo duas relações entre luz e trevas. Em primeiro lugar, as trevas são o lugar onde a luz brilha intensamente (resplandece). Quanto maior a escuridão mais intenso é o brilho da luz. As trevas são o lugar da manifestação da luz. Em segundo lugar, as trevas não compreenderam a luz. Esta não compreensão deve ser lida, cumulativamente, como não entendimento (as trevas não entenderam a luz) e como não inclusão ou não abrangência (as trevas não incluíram a luz ou excluíram-na). A luz manifesta-se não apenas naquilo que não a entende como também no que a exclui, incapaz de a abranger.

Este jogo dialéctico é, em si mesmo, incompreensível. Contudo ele é antecedido por uma frase metafórica: a vida era luz dos homens. O que está em questão é muito mais que a tensão entre dois fenómenos ópticos (luz e trevas), ainda que tomados como metáforas da sabedoria e da insensatez. Se a luz surge como metáfora da vida, o leitor é levado a compreender, por analogia, as trevas como metáfora da morte. É na morte que a vida resplandece, mas é também a morte que não compreende a vida e a exclui. Este parece ser o núcleo central do mistério dos cristianismo, a afirmação de uma vida através da morte, de uma morte que a não compreende, que a exclui. Tudo está assente num paradoxo: a vida que se manifesta naquilo que a nega, que a exclui, mas que é, ao mesmo tempo o outro da vida, como se esta tivesse de descer ao coração da morte para de lá resgatar as entranhas da vida.

domingo, 23 de junho de 2013

O lugar da emoção

Ferdinand Hodler - Emoção (1894)

Encontrar o lugar da emoção será um momento essencial da viagem espiritual. Toda a emoção é uma alteração de uma certa ordem, uma desordenação. Se a razão nos traz uma ordenação do mundo e a desrazão a mais pura desordem, o essencial é encontrar na emoção o lugar onde ordem e desordem se encontram. A efectiva sabedoria joga-se não na razão mas na justa medida da emoção. A emoção deverá ser suficientemente viva para que faça cair a velha ordem do hábito e suficientemente moderada para que, evitando o caos das pulsões inconscientes e dos instintos, propulsione um novo passo para uma outra ordem do cosmos e do sujeito que caminha nesse cosmos.

sábado, 22 de junho de 2013

Poemas do Viandante (422)

Maxfield Parrish - Blue Fountain (1926)

422. A natureza sonha água e fontes

A natureza sonha água e fontes,
jardins de seda
nas margens bravias da floresta.

Um rumor lembra os primeiros dias
e em cada passo
abre-se a porta do tempo.

Rasgo o véu e as trevas dissipam-se
entre o fulgor dos teus olhos
e as mãos cobertas de terra.

Quando anoitece, as árvores sussurram
e trazem para a cidade
a cor que a vida arruinou.

Em cada fonte sonhada,
em cada Estio que chega,
um rio solitário enlouquece.

Olho a fonte no centro do jardim
e oiço as águas do rio
perdidas entre o céu e o mar.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

A suspensão da mediação


Há dias, durante uma missa para os jardineiros e pessoal de limpeza do Vaticano, o Papa Francisco pede que todos orem em silêncio, cada um pelo que o seu coração deseja (ver aqui). Francisco, que preside à celebração, levanta-se e vai sentar-se numa das últimas cadeiras. É assim que ele faz a sua oração. Este gesto acorda-se com a exigência dos próprios evangelhos, de o primeiro ser o último, ser o mais humilde dos servidores. Mas, no seu gesto, há mais alguma coisa. Há, em pleno ofício litúrgico, uma suspensão da mediação. O supremo mediador entre Deus e os homens, o sumo pontífice, torna-se o último dos homens. 

Olhamos e cada um está confrontado, no silêncio da sua consciência e na imagem dos seus olhos, com o Cristo crucificado. O Papa, em vez de ser a ponte e a sombra, deixa, por um instante, que os crentes se olhem na figura do Cristo. Não há a grandeza do pontífice para ocultar a miséria da cruz, não há a sombra do sacerdote para ofuscar a luz que se abate sobre os fiéis. Não há abandono dos crentes, pois o Papa está com eles, mas uma indicação precisa sobre a importância de cada um ser autónomo e confrontar-se, sem a mediação de uma outra consciência, com a sua crença e o seu destino. Este gesto, aparentemente tão trivial, parece anunciar uma reconciliação do catolicismo com a modernidade e a autonomia da consciência. Francisco não nega a mediação da tradição sacerdotal - seria um protestante -, mas suspende-a, para que a subjectividade de cada um se veja no espelho da cruz.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Haikai do Viandante (148)

Caspar David Friedrich -  Doorway in the Fürstenschule Meissen (after 1835)

Súbito mistério,
porta aberta para a rua:
luz do teu império.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

A sombra

Albano Vitturi - L'ombrellone (1930)

O homem não suporta a luz, o seu regime é o claro-escuro, o meio termo entre a luminosidade pura e a completa ausência de luz, as trevas. A sombra torna-se uma possibilidade, a possibilidade do homem caminhar em direcção à luz, avançando de "claridade em claridade", como se o seu espírito precisasse de se ir aclimatando, pouco a pouco e com elevado esforço, ao luminoso. A sombra é o anjo da guarda daqueles que aspiram caminhar para a luz. Protege-os e refreia-lhes o ímpeto. A sombra é o sinal da fragilidade do homem e uma dádiva. É também um perigo. Quando o homem pensa que o seu destino é a sombra, perde a luz que o orienta e começa a cair nas trevas.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Estátuas de Sal

Raquel Forner - Mulher de Lot (1935)

Um dos episódios mais estranhos do Antigo Testamento é o da transformação da mulher de Lot em estátua de sal. A fuga da família de Lot, aquando do castigo de Sodoma e Gomorra, tinha como condição não olharem para trás. Esta estranha condição não é diferente da que foi imposta a Orfeu na sua tentativa de libertação de Eurídice do reino da morte. Não olhar para trás, não procurar a certificação do caminho com uma visão retrospectiva. Poder-se-ia ver nesta história da mulher de Lot ou no mito de Orfeu uma certa atenção ao futuro. Isso, porém, seria falhar o essencial. O castigo de Orfeu ou da mulher de Lot deve-se à incapacidade de estarem presentes, de se moverem aqui e agora, de se deixarem seduzir pelo que fica para trás ou pela necessidade de uma certeza. Em ambos os casos, o que está em jogo é o desejo, o desejo de uma certeza, mas também o desejo de algo que passou, e cuja memória, certificada pelo olhar retrospectivo, petrifica o espírito e o transforma numa estátua de sal.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

A visita

Pablo Picasso - A visita (1902)

Há uma dimensão social da visita, uma dimensão que a inclui no processo de sociabilização e de estruturação comunitária. A visita aproxima e, ao mesmo tempo, é sintoma de uma certa partilha de interesses. Mas olhar o acto da visitação apenas na sua dimensão social e comunitária é perder aquilo que ela simboliza de essencial. A visita é também um encontro entre espíritos, o contacto entre iguais, a participação de uma comunidade e de uma comunhão que ultrapassa a vida social e a sua regulação moral. As verdadeiras visitas são aqueles que assinalam um encontro e uma identidade ontológica. As visitas essenciais podem ser de muitas e diferentes naturezas, mas fazem parte de uma geografia onde os que estão a caminho entretecem laços que os auxiliarão a chegar a esse destino que não tem meta ou fim.

domingo, 16 de junho de 2013

A cruz invisível

Paul Gauguin - O Cristo amarelo (1889)

A cruz foi um dos símbolos centrais - o mais central de todos eles - do mundo ocidental. Lentamente, porém, a cruz foi desaparecendo do espaço público, foi-se tornando invisível, foi esquecida e, para muitos, tornou-se desconhecida. A cruz é um símbolo muito desagradável, pois recorda aos homens aquilo que eles insistem em não querer ver. Lembra-lhes não apenas a sua condição mortal mas a natureza frágil e finita do seu corpo, de um corpo que é jogado, ao sabor de circunstâncias que ele não controla, entre o prazer e a dor. A cruz remete para a dimensão da dor e isso torna-a, para a consciência alienada dos homens modernos, absolutamente insuportável. O pior, porém, é que a cruz - usada pelos romanos no castigo dos escravos - torna patente a impotência dos homens e o arbítrio dos poderes. Na cruz estão todos os que são destituídos de poder, todos a quem o arbítrio dos poderes distribui sofrimento e injustiça. E é por isso que a cruz se torna invisível e, para muitos dos que lá estão crucificados, insuportável, pois recorda-lhes que a vida é, na verdade uma via crúcis

sábado, 15 de junho de 2013

Haikai do Viandante (147)

Emilio Sánchez Perrier - Atardecer sobre la ribera del Guadalquivir (1883)

No Guadalquivir
vê-se a vida entardecer:
o dia vai partir.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Poemas do Viandante (421)

Ramón Casas Carbó - Desnudo (1903)

421. O teu corpo cresce para as minhas mãos

O teu corpo cresce para as minhas mãos,
toca-as com o vidro ardente do amor,
e espera o mistério insondável dos seios
a cantar na luz irisada da tarde.

O puro silêncio da boca queima
e os meus lábios esperam o alvoroço dos teus,
a púrpura azul da noite,
o cantar dos dedos sobre a pele.

Uma súbita sombra irrompe,
traça um vestígio de sol no rumor do ombro
e os braços abrem-se luminosos
para me encarcerar na luz do ardor.

Fecho os olhos no teu corpo
e canto o odor que se desprende de ti.
Violetas, rosas, um tumulto de cores
abrem-te para o desejo que canta em mim.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Arrancar a máscara

James Ensor - O teatro de máscaras (1908)

A máscara não é apenas um instrumento da antiga tradição dramatúrgica grega e do culto de Diónisos, nem um acessório carnavalesco. A máscara é o nosso ser para os outros, a face com que representamos e nos presentamos na vida social. Ela tem, nesta última dimensão, uma função de protecção do sujeito na espaço público aberto. Essa função de protecção torna-se, a breve trecho, uma função de representação. O medo de sermos esmagados pela abertura perante os outros leva-nos à representação. De seguida, passamos a crer que somos aquilo que representamos. A máscara já não é sentida como a protecção de si perante a ameaça do outro mas a nossa verdadeira realidade. Nesse momento, entramos no caminho da mentira a nós mesmos. Uma mentira racional, cada vez mais racional e, por isso, cada vez mais geradora de crença, de uma falsa crença. A aventura do espírito, porém, significa o arrancar da máscara, o parar da representação, a suspensão da mentira a si. A pergunta quem sou eu? não é uma mera questão de retórica inscrita no começo de uma qualquer antropologia filosófica. Ela resulta da perplexidade com que o mascarado descobre, ao arrancar a máscara, que toda a vida mentiu a si mesmo.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

O olhar da noite

Cruzeiro Seixas - Quando a noite nos olha (1989)

Não se trata de estarmos na noite, de caminhar nela, mas de sustentar o seu olhar. O que significará olhar a noite nos olhos? A noite como metáfora da ausência de luz é ainda um placebo tranquilizador. É preciso ir mais longe, é preciso descer. Não é apenas a ausência de luz que se esconde na metáfora da noite, é a própria ausência de ser, é o nada. No olhar da noite é o nada que nos olha, é a dissolução do mundo, é o rasgão do tecido com que construímos as nossas imagens, as nossas crenças e as nossas esperanças. No olhar da noite, tudo isso se dissolve e o viandante, sem norte, abre mão de si e espera que a noite o recolha.

terça-feira, 11 de junho de 2013

O viajante invisível

Vieira da Silva - O passeante invisível (1951)

Um rasto de luz, apenas. A tradição moderna, que tem em Descartes e na sua angustiante busca da certeza um primeiro marco, é a mais avessa das tradições à aventura do espírito. Nela, o espírito reduziu-se à subjectividade, e tudo gira em torno do sujeito, seja a glória e a honra, seja a humilhação e a patologia. Mas todas essas figuras da vitória e da derrota do sujeito são apenas a compensação de um sentimento de desconfiança perante a possibilidade da fé no sujeito ser falsa. A aventura espiritual é, antes de mais, uma luta contra a ilusão da subjectividade. Aquele que se põe a caminho dirige-se para a hora em que se torna no viajante invisível. Ao passar, não deixa pegada nem sombra de corpo, apenas um rasto de luz.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Poemas do Viandante (420)

Díaz Olano - Desnudo (1895)

420. Deixo a mão escorregar no teu dorso

Deixo a mão escorregar no teu dorso
e sinto a pele sequiosa de água,
o rumor  do desejo na memória do mar,
as areias brancas batidas pelo vento,
o antecipado prazer de cada sensação.

Fosse a tua pele azul e os seios falassem.
fosse a tua voz sombra e a boca calasse.
Fosse a tua mão silêncio e o sexo cantasse.
O dia viria com o seu império de luz
e abriria para a noite a cortina do amor.

Deusa nocturna tragada de memórias,
concha aberta onde repouso,
serva fascinada pela voz do senhor.
Vem! Escurece em mim as trevas
e ateia um fogo no buraco negro da solidão.

Consome-me célula a célula,
rasga-me a carne e dilacera-me o peito,
deixa arder o sexo na água da minha boca.
Sonâmbulo, desenho-te o corpo
na poalha viva da memória fracturada,

e escrevo nessas ancas o casto segredo
dos dedos que se tocam e ressoam,
do eco do teu nome na fímbria do coração,
do lençol branco onde te desejo:
Pura, intocada, meretriz de sangue incendiada.

domingo, 9 de junho de 2013

A alegria do regresso

Giorgio de Chirico - A alegria do regresso (1915)

A questão do regresso tem, na tradição ocidental, duas figurações centrais. Na cultura clássica grega, o regresso - e as alegrias concomitantes - tem o seu símbolo no retorno de Ulisses à pátria, à ilha de Ítaca, que abandonou para seguir, com o exército dos helenos, para Tróia. Na vertente judaico-cristã, o regresso é pensado no retorno do segundo Adão, Jesus Cristo, ao Pai ou, para utilizar a simbólica do Antigo Testamento, ao paraíso, de onde o primeiro Adão tinha, angustiadamente, partido.

A alegria do regresso deve ser compreendida a partir de dois tópicos. Por um lado, a alegria de voltar chez soi, com o prazer de ser reconhecido e o prazer de reconhecer o lugar a que se pertence. Não se trata apenas de uma questão territorial, mas de um voltar àquilo que se é. Ulisses retorna à sua função de Rei, o segundo Adão restaura a natureza divina do homem. Esta alegria central, pois tem uma natureza ontológica, está escorada numa outra alegria, a alegria de ter superado as provações, sejam as da Guerra de Tróia e aquelas que a atribulada viagem de regresso trouxeram a Ulisses, sejam as colocadas pelo processo crucificação, morte e ressurreição do Cristo. 

A alegria do regresso não se trata do júbilo por um retorno ao lugar de onde se partiu, mas da alegria de uma nova condição que é, ao mesmo tempo, restauradora de uma condição perdida e uma condição absolutamente nova. Aquele que regressa retorna ao que foi tornando-se em algo de absolutamente novo.

sábado, 8 de junho de 2013

A angústia da partida

Giorgio de Chirico - A angústia da partida (1913-4)

O quadro de Giorgio Chirico representa uma reflexão pictórica sobre uma das experiências fundamentais da humanidade. O título junta as ideias de angústia e de partida. O que torna uma partida angustiante? O desconhecido, a incerteza, a coacção que torna necessária essa partida. Na tradição ocidental, qual é a partida simbólica que condensa todas as partidas angustiantes? A primeira partida é a de Adão e Eva, aquando da sua expulsão do paraíso. Nesse momento simbólico trazido pelo mito inscrito no Génesis, encontramos todos os elementos necessários para perceber a angústia da partida: a coacção que foi imposta ao par prevaricador, o desconhecido para onde se dirigem, a incerteza sobre a sua sorte na viagem imposta. O sair do paraíso, ou da pátria, ou do lar é sempre um momento angustiante onde o espírito vacila. É também o momento em que o homem, abandonando o estádio ingénuo da existência, toma consciência de si e do seu existir, é a hora em que le se torna viandante. E aqui percebe-se um segundo motivo de angústia para aquele que parte. Será que se perderá no caminho e se entregará à pura errância ou terá o talento para a alegria do regresso?

sexta-feira, 7 de junho de 2013

O corpo que dança

Henri Matisse - A dança (1909-10)

Talvez tenha sido Paul Ricoeur que tenha dito que a dança é uma luta contra a gravidade. Ao dançar, o corpo fluidifica-se, abole alguns limites, redefine as fronteiras do possível. Quanto mais exigente tecnicamente for um estilo de dança maior a ambição que nele se esconde. Que ambiciona um corpo ao dançar? Tornar-se um corpo mais  eficiente e com maior capacidade performativa? Tornar-se numa aparência arrebatadora para o espectador? Tornar-se fonte inesgotável de um prazer subjectivo? Tudo isso pode ser verdade, mas é secundário. Ricoeur, se não me falha a memória, tem toda a razão, o corpo pretende suspender o efeito da gravidade. O que significa, porém, esse desejo? Significa simplesmente que o corpo aspira a não ser corpo. A gravidade faz parte da corporalidade. A nossa experiência do corpo é concomitante ao nosso sentimento de subjugação à gravidade. Quando o corpo dança, quando responde ao anseio de suspender a gravidade, ele responde ao seu mais secreto desígnio. Ele pretende tornar-se puro espírito. Quando os corpos dançam é o espírito que neles se esconde que se manifesta. A dança é sempre uma hierofania.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Haikai do Viandante (146)

José de Togores - Afinidades (1930)

Traços que se querem,
manchas de cor, velhos corpos:
virão se vierem.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Idolatria e emancipação

Odilon Redon - O Ídolo (1886)

Um dos elementos centrais do Antigo Testamento é o combate contra a idolatria. O Deus de Israel, na sua invisibilidade e irrepresentabilidade, exigia um esforço intelectual e um mergulho na fé, para os quais a população, muitas vezes, se mostrava incapaz. A visibilidade do ídolo e a apreensão intuitiva de uma figura tornavam, na economia da praxis religiosa, a idolatria mais acessível ao homem comum. Impossível de figurar e com uma elevada exigência moral, o Deus de Israel surgia ao povo eleito como qualquer coisa contra-intuitiva, quase como uma monstrusidade abstracta.

Afastados há muito da velha discussão entre os defensores da adoração de ídolos ou dos adoradores do Deus verdadeiro, não damos conta de que a idolatria está sempre pronta a renascer. Hoje não surge no campo religioso mas na vida profana, tornando-a, muitas vezes, ritualística e religiosa. As técnicas de marketing e de comunicação acabam por criar condições para que a nossa relação com os objectos, as pessoas e connosco se torne idolátrica. Não interessa saber quanto tempo dura o culto de um certo ídolo (por exemplo, do iPad ou do iPhone, do Cristiano Ronaldo, etc.), pois a morte de um ídolo significa apenas a sua substituição. 

A relação idolátrica - a fetichização de partes da realidade - é um dos processos mais eficazes de alienação contemporânea. Alienação no sentido exacto em que nos tornamos estranhos a nós próprios. É deste estranhamento a si mesmo que nascem outras alienações, nomeadamente as sociais, onde o indivíduo, seduzido pelo culto idolátrico, é incapaz de perceber as relações reais em que vive e olhar, fria e objectivamente, para o seu lugar na sociedade. Mas, é preciso sublinhar com veemência, a fonte de todas as alienações está no estranhamento relativamente à nossa dimensão espiritual, à negação do espírito, ao esquecimento que não somo apenas pura materialidade. Toda a emancipação espiritual é uma luta contra a idolatria, seja qual for a forma que ela tome, pois esta é a grande cilada onde o espírito incauto sucumbe.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Poemas do Viandante (419)

William Bouguereau - Evening mood (1882)

419. A servidão gloriosa de um corpo despido

A servidão gloriosa de um corpo despido,
o dissimulado átrio que te espera,
o fôlego suspenso, trémulo, ansioso...
Submisso ao relâmpago, componho um hino,
traço uma rota de âmbar e flores,
suspendo a visão na cal do olhar.

Crua e luminosa, cai a tarde,
e os teus ombros esperam quietos
o murmúrio de um barco rasgando o mar.
Uma cotovia incendeia o céu
e na boca ardem equinócios de veludo
sobre a palha queimada do amor.

Deito-me sobre o corpo inacessível
e espero o lento rumor de uma voz,
a secreta e sagrada semente,
a pétala marítima que se desprende,
ave de seda ateada:
fogo que canta, luz de sombra, alma ferida.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Alegorias e parábolas

André Masson- Alegoria (1935)

Platão recorre a alegorias, Cristo a parábolas. Tem-se a sensação que a linguagem comum, ou mesmo a linguagem unívoca utilizada na ciência, é impotente para exprimir a verdade. Seria um problema da linguagem e dos seus limites que conduziria à necessidade do uso deste tipo de figuras linguísticas. Pode haver, todavia, uma outra abordagem da questão. Podemos pensar que a forma como concebemos a realidade é já ela alegórica, que as nossas representações da realidade são verdadeiras parábolas. Por que motivo se usará, então, as alegorias e as parábolas se tudo o que concebemos como realidade é já alegoria e parábola? 

Se pensarmos a alegoria e a parábola não como revelação de uma verdade mas como a criação de uma tensão, poder-se-á encontrar uma chave para o problema. O que está e causa é criar, através da tensão que as alegorias e as parábolas ditas ou escritas criam ao confrontarem as alegorias e parábolas com que representamos a realidade, um espaço vazio onde o espírito possa, em liberdade, mergulhar e encontrar um caminho para a verdade. A verdade não está nem na representação da realidade nem oculta na alegoria e na parábola, mas no vazio - onde a linguagem está suspensa assim como a representação do real - que o choque cria para que o espírito nele mergulhe.

domingo, 2 de junho de 2013

Compor mundos

Wassily Kandinsky - Composição n.º 5 (1911)

Estamos, desde que nascemos, demasiado treinados para vermos em nós e naquilo que nos rodeia um mundo ordenado. Isso é de tal maneira assim que não suspeitamos que apenas acedemos a uma composição de elementos heteróclitos, acidentais e, muitas vezes, fantasmagóricos. A educação que os neonatos recebem desde o ventre materno visa treinar o olhar e o modo de estar na vida para essa organização, de tal maneira que, com o decorrer do tempo, acreditamos que as coisas são tal e qual nos aparecem e que a realidade é aquilo que aprendemos a ver e que o único caminho de vida é o que nos foi ensinado (com uma ou outra alteração de percurso, claro).

O primeiro passo do viandante talvez seja descobrir que a forma como compreende o mundo é uma composição que lhe foi transmitida pela educação, mas uma composição entre outras possíveis, uma composição útil mas que em si não tem outra verdade que não a utilidade quotidiana. A via, a partir dessa compreensão, torna-se, então, um caminho de descomposição e de recomposição, de um desfazer de mundos para os refazer, nessa experiência que nos afasta deste mundo que não é o nosso e nos conduz, se não nos perdermos na errância, à pátria perdida.

sábado, 1 de junho de 2013

O sintoma melancólico

Edvard Munch - Melancolia (1894-5)

No processo de transformação da vida em patologia, podemos compreender a melancolia como um estado depressivo ligado à sensação de impotência e ao desgosto perante a vida, algo que pertencerá ao foro psiquiátrico. Podemos, por outro lado, questionarmo-nos se a melancolia - aquela que, uma vez ou outra, se abate sobre qualquer um - não será sintoma de uma perda ontológica, como se viver fosse um processo de desrealização e de diminuição do nosso próprio ser. A melancolia antes de ser uma patologia é o sintoma de uma falta, de uma perda essencial. Representa um aviso de que aquele que está em viagem perdeu o caminho e corre o risco de soçobrar na mais pura errância.